Edmílson Caminha
Em Moacyr Scliar, tão notável quanto o escritor ilustre era o ser humano digno, a pessoa ética, o cidadão exemplar que mereceu, ao longo da vida que lhe foi dada viver, o afeto dos amigos e o reconhecimento dos leitores. Entrevistei-o no ano de 1987, em Porto Alegre, quando me recebeu na Secretaria da Saúde, onde trabalhava como médico sanitarista. Publicada primeiramente no Diário do Nordeste, de Fortaleza, a conversa também se acha no meu livrinho Palavra de escritor (Brasília : Thesaurus, 1995). Em carta que gentilmente me enviou, o entrevistado faz elogios ao texto, e diz que providenciou cópias para entregá-las aos jornalistas e estudantes que o procuram.
À pergunta sobre como a condição de judeu se revelava em sua obra, Scliar respondeu, com a inteligência e o saber que todos admirávamos:
— Os povos da antiguidade legaram ao mundo grandes monumentos, como as pirâmides, os templos, importantes obras de arte; o povo judeu nada deixou a não ser um livro, mas um livro que condicionou o destino de milhões de criaturas neste nosso mundo. Essa veneração pela palavra escrita, pelo livro de maneira geral, na minha família era muito acentuada: embora pobres, nunca nos faltou, a mim e aos meus irmãos, dinheiro para comprar livros. Desde cedo fomos induzidos ao hábito de escrever, tanto mais que a minha mãe era professora primária, do próprio colégio onde eu estudava, e me estimulou muito a escrever. Além disso, no contato com os imigrantes ouvi muitas e muitas histórias interessantes.
Uma delas foi, certamente, a que lhe contou o pai José, imigrante russo chegado ao Brasil na década de 1920. Ouvi-a narrada por Moacyr no ano passado, quando juntos participamos da Feira do Livro de Guarulhos:
— A viagem de navio, longa e desconfortável, foi um pesadelo. Ao desembarcar com a família, a aparência daquele menino de oito anos devia ser péssima, pela pobreza dos trajes, pela fome estampada no rosto e pelo medo que lhe dava o país estranho em que punha os olhos pela primeira vez. Sensibilizado pela expressão de sofrimento, um homem se aproxima e lhe entrega... uma banana. Era o que podia oferecer, antes que o pequeno desfalecesse e fosse de encontro às pedras do cais. Ocorre que a generosidade trouxera um problema para a criança: que diabo de fruta era aquela? Como comê-la? Se fosse maçã, uva, pera, cultivadas nos campos da Rússia... Mas aquela coisa amarela, meio curva, que jamais vira nem desenhada em livros? José olhou, examinou e, afinal, decidiu: começou a descascá-la, jogou fora o que lhe pareceu um caroço meio mole... e comeu a casca!
Muitos anos depois, Scliar ouviria do pai a conclusão que lhe soava como a moral da história:
— Sabe que comer casca de banana não é assim tão ruim como a gente pensa? Até que dá pra engolir, principalmente quando se está com fome...
Essa, a experiência de vida e a sabedoria humana que o escritor converteu em ficção da melhor qualidade, a exemplo do romance O centauro no jardim. Em 27 de fevereiro, aos 73 anos, Moacyr Scliar, com a discrição e a elegância que lhe eram próprias, cavalgou pela derradeira vez o centauro, mito que tanto o fascinava, pois, metade homem e metade cavalo, é a um só tempo realidade e fantasia, as duas grandes matérias de que se faz a literatura. Partiu a galope rumo à eternidade, onde campeará para sempre nas coxilhas celestes, um suave e luminoso pampa que não tem começo nem fim...
Gostei muito da homenagem ao Moacyr Scliar, tão merecida. Algumas pessoas deveriam ficar pra semente. No caso, as sementes são as palavras. (enviado por e-mail)
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