SE ISTO É UM POVO (WHETHER THIS IS A PEOPLE), de MIGUEL GRANJA

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL OBSERVADOR DE PORTUGAL


ARTICLE ORIGINALLY PUBLISHED IN THE PORTUGUESE NEWSPAPER  OBSERVADOR. FOR THE ENGLISH TEXT (IN BLUE), SEE BELOW.




Das centenas de disputas territoriais actualmente em curso no mundo, apenas aquela que envolve Israel surge sempre, e não por acaso, enquadrada em termos legais. Mais do que enquadrada – reduzida a, e armadilhada em, termos legais. Em nenhum outro conflito ou disputa a questão legal é tão central e invariável: o conflito em Caxemira, que envolve a Índia e o Paquistão, nunca é qualificado em termos da sua legalidade: Caxemira é “disputada”. Ponto final. Não há registos, por exemplo, de grandes manifestações em Londres e Paris contra a ilegalidade da ocupação turca do norte de Chipre, e o conflito curdo-iraquiano não desperta o mínimo interesse, nem legal nem outro, na opinião pública ou publicada. Se na maior parte dos casos as esferas do direito e da geopolítica são totalmente distintas e autónomas, e analisadas tendo como pressuposto essa distinção e essa autonomia, no caso de Israel elas são praticamente fundidas até à total indistinção. A forma como enquadramos um conflito também é parte do conflito.

 

O actual conflito na Ucrânia permite uma comparação oportuna. As análises ao exercício de legítima defesa da Ucrânia nunca incluem, por parte dos “especialistas”, recomendações a Zelensky sobre “proporcionalidade” e prelecções sobre a inocência dos civis russos. José Milhazes, por exemplo, é capaz de ir à rádio de manhã defender que a Ucrânia está a travar uma guerra defensiva e, portanto, todos os meios de defesa de que se sirva são legítimos contra a agressão russa (“a Ucrânia tem direito a defender-se com os mesmos meios que a Rússia emprega”) – e à noite estar numa televisão a fazer a defesa de que Israel, travando uma guerra defensiva contra uma organização terrorista que usa os seus próprios civis como escudos humanos e hospitais como centros de comando (admitido pelo próprio), não tem legitimidade de se defender plenamente (“Esta ofensiva de Israel irá despertar um espírito anti-israelita nos países árabes e em algumas capitais europeias”).

 

Israel tem, pois, todo o direito de travar uma única guerra, que é ao mesmo tempo uma guerra única: a guerra em que ninguém morre, a não ser judeus; em que ninguém sofre, a não ser judeus; em que ninguém é desalojado ou hospitalizado, a não ser judeus. Em que a parte agredida tem como responsabilidade primeira a de proteger a parte agressora mais do que a parte agredida que está à sua responsabilidade; em que Israel tem mais deveres de protecção da população de Gaza do que o Hamas que a governa; em que Israel é obrigado a preservar intactos os hospitais, as escolas e as mesquitas que o Hamas armadilha e a partir dos quais ataca Israel. De acordo com o enquadramento legal vigente que rege estas matérias sensíveis, a guerra que não existe é a única guerra que Israel pode travar pela sua existência. Israel tem todo o direito de travar uma guerra impossível – e nenhuma outra.

 

No caso (sempre único e isolado) de Israel, o especialista em relações internacionais, tornado advogado instantâneo, suspende o seu ofício de compreensão do mundo e activa o seu anseio de transformá-lo: não há “análise” (que é a designação que actualmente a propaganda atribui à propaganda) que não se sirva de expressões como “direito internacional”, “proporcionalidade”, “crimes de guerra”. Obviamente que o uso destas expressões, fortemente armadilhadas para paralisar a compreensão, se dirige apenas a Israel e à sua acção, nunca aos seus agressores e às suas agressões. Esta hiper-juridificação do conflito não é, no entanto, acidental. Ela é essencial ao seu propósito, o qual visa sobretudo um duplo condicionamento: (1) condicionar Israel à absoluta inacção – em termos práticos, à capitulação – perante as agressões de que é vítima e (2) condicionar os “analistas” à escolha entre duas escolas: a da cobardia e a da indecência. Ou seja, ou a equivalência moral entre bebés degolados e degoladores de bebés (em termos musicais, “Imagine there’s no heaven”) ou a superioridade moral dos degoladores de bebés (em termos musicais, “From the river to the sea”).

 

A partir da articulação deste duplo condicionamento, é possível construir a percepção generalizada de que tudo aquilo que é feito a Israel é legítimo, mesmo que ilegal (como degolar bebés), e de que tudo aquilo que Israel faz é ilegal, mesmo que legítimo (como punir a degolação de bebés). Israel tem toda a legitimidade de se defender, obviamente – desde que não se defenda. Porque defender-se é simultaneamente um direito e um crime: exercer o direito é, ipso facto, cometer o crime; a única forma de não cometer o crime é não exercer o direito. Maravilhoso Catch-22. É o direito como criminalização do próprio exercício do direito. É o direito como criminalização daquilo mesmo que o direito tem como função assegurar. É o direito como impossibilidade de exercer o direito. O nome deste direito anti-direito, esplendorosamente orwelliano, é “direito internacional”.

 

Quando incide sobre Israel, o direito internacional – raramente especificado e invariavelmente distorcido – constitui a própria abolição do direito. Na medida em que visa a proscrição de um único povo e a sua remoção da família dos povos, actuando assim como um instrumento de discriminação legalizada, o “direito internacional” são as Leis de Nuremberga das nações. Israel não é uma nação, é o Untermensch das nações, é o dhimmi das nações, criatura de classe inferior e proibida, agora como outrora, de se defender: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris). O acto de atirar pedras aos judeus por parte das crianças muçulmanas tem raízes muito anteriores ao surgimento do corrente conflito. Constitui, como conta Bernard Lewis em The Jews of Islam (1984), um velho fenómeno relatado por vários observadores: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth to offer to strike a Mahommedan”. A “dhimmização” de Israel, essa sim, não acontece num vácuo.

 

Décadas de desumanização dos israelitas por parte da imprensa ocidental conduziram à absoluta dormência moral relativamente ao sofrimento de um dos lados do conflito. Desumanização que persiste, mesmo após o pogrom de 7 de Outubro. Quem se der ao trabalho de fazer um levantamento das primeiras páginas do Público dedicadas ao conflito desde o passado 8 de Outubro, verá que nem por uma vez o sofrimento israelita é captado e transmitido. Em Israel, que não passa de uma grotesca abstração militar, não existem humanos, apenas soldados; não existem casas, apenas tanques; não existem mortos, apenas estatísticas. Todas as crianças apresentadas, mortas ou aterrorizadas, são palestinianas. Não há mater dolorosa israelita neste conflito: toda a Pietà é palestiniana. Os bebés israelitas carbonizados e mutilados, as raparigas israelitas violadas e desfiladas, os idosos israelitas mortos e humilhados nunca fazem primeira página. Não se vêem nem se ouvem. É como se nunca tivessem morrido. É como se nunca tivessem sequer existido. É como se fossem apenas, de novo, cinza cuspida da chaminé de um crematório nazi e levada pelo vento: “nem os mortos estarão em segurança”, alertou, não há muito, Walter Benjamin.

 

É uma segunda morte em cima da primeira. Um novo rapto a somar ao velho. A inexistência de fotos na imprensa não é, no essencial, moralmente diferente da nova moda que consiste em rasgar e deitar ao lixo os cartazes com as fotos dos sequestrados em Gaza. O sofrimento judaico não pode ser visto nem exposto em público. Sob pena de começarmos a colocar a nós mesmos a eterna questão de Shylock: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?

 

Nem uma foto dos reféns. Nem uma foto dos bebés mortos. Nem uma foto das jovens violadas. Se compararmos esta ocultação deliberada com as famosas fotos da guerra no Vietname, teremos uma ideia, ainda que vaga, do ponto a que a nossa imprensa desceu. Expor o monge budista que se auto-imola numa rua de Saigão (World Press Photo of the Year, 1963), ou o tiro na cabeça de um suspeito vietcong por parte de um oficial vietnamita (World Press Photo of the Year, 1968), ou a menina aterrorizada que foge, completamente nua, de um ataque acidental de napalm (World Press Photo of the Year, 1973), era revelar à opinião pública “the terror of war”. Onde está a menina israelita? A menina nua, aterrorizada, sequestrada, violada, morta? Não existe. Nunca existiu. Todas as meninas são palestinianas. Em casa, em agonia, não há nenhuma mãe à espera da menina israelita. Porque, como as meninas, todas as mães à espera em casa e em agonia são palestinianas. As primeiras páginas não mentem: a menina israelita, já morta ou ainda sequestrada, não existe. Nunca existiu.

 

Este conflito não é, na sua essência, sobre território. É sobre esta menina. Não é um conflito imobiliário. Não é um conflito geográfico. Numa coisa os anti-sionistas (isto é, os anti-semitas, de esquerda e de direita, cada vez menos envergonhados) têm razão: este é um conflito sobre o direito. Não sobre o direito internacional, mas sobre o direito de existir. Sobre o direito, portanto, de que dependem todos os outros. Sobre a existência, o direito à existência, daquela menina nua que não existe. Os milhares (milhões?) que hoje gritam nas ruas “From the river to the sea”, não disfarçam já que é – sempre foi e sempre será – sobre o direito de existir. Quem viu o pogrom daquela manhã sabe que o 7 de Outubro não é apenas mais um episódio do longo conflito. Não é parte do conflito: é onde o conflito se parte. O 7 de Outubro não é mais um capítulo da história do conflito – é o instante, paradoxalmente sombrio e luminoso, crepuscular e amanhecente, em que todo o conflito se suspende, se confessa e expõe, de uma vez por todas, o terrível segredo da sua origem e perpetuação: se isto é um povo.


WHETHER THIS IS A PEOPLE (Portuguese text by Miguel Granja, English translation by Myrna Herzog)


Of the hundreds of territorial disputes currently taking place around the world, only the one involving Israel always appears, and not by chance, framed in legal terms. More than framed – reduced to, and trapped in, legal terms. In no other conflict or dispute is the legal question so central and invariable: the conflict in Kashmir, which involves India and Pakistan, is never qualified in terms of its legality: Kashmir is “disputed”. Full stop. There are no records, for example, of large demonstrations in London and Paris against the illegality of the Turkish occupation of northern Cyprus, and the Kurdish-Iraqi conflict does not arouse the slightest interest, whether legal or otherwise, in public or published opinion. If in most cases the spheres of law and geopolitics are totally distinct and autonomous, and analyzed based on the assumption of this distinction and autonomy, in the case of Israel they are practically merged until total indistinction. How we frame a conflict is also part of the conflict.

The current conflict in Ukraine allows for a timely comparison. Analytics of Ukraine's exercise of self-defense never include, on the part of the “experts”, recommendations to Zelensky on “proportionality” and lectures on the innocence of Russian civilians. José Milhazes, for example, is capable of going on the radio in the morning to argue that Ukraine is fighting a defensive war and, therefore, all means of defense it uses are legitimate against Russian aggression (“Ukraine has the right to defend itself with the same means that Russia employs”) – and at night be on television making the case that Israel, waging a defensive war against a terrorist organization that uses its own civilians as human shields and hospitals as centers of command (self-admitted), does not have the legitimacy to fully defend itself (“This Israeli offensive will awaken an anti-Israeli spirit in Arab countries and in some European capitals”).

Israel therefore has every right to fight a single war, which is at the same time a unique war: the war in which no one dies except Jews; in which no one suffers except Jews; in which no one is displaced or hospitalized except Jews. In which the attacked party has the primary responsibility to protect the aggressor more than the attacked party who is under their responsibility; in which Israel has more duties to protect the population of Gaza than the Hamas that governs it; in which Israel is obliged to preserve intact the hospitals, schools and mosques that Hamas traps and from which it attacks Israel. According to the current legal framework that governs these sensitive matters, the war that does not exist is the only war that Israel can fight for its existence. Israel has every right to fight an impossible war – and no other.

In the (always unique and isolated) case of Israel, the specialist in international relations, turned instant lawyer, suspends his task of understanding the world and activates his desire to transform it: there is no “analysis” (which is the designation that currently propaganda attributes to propaganda) that does not use expressions such as “international law”, “proportionality”, “war crimes”. Obviously, the use of these expressions, heavily crafted to paralyze understanding, is only directed at Israel and its actions, never at its aggressors and their aggressions. This hyper-juridification of the conflict is not, however, accidental. It is essential to its purpose, which aims above all at a double conditioning: (1) to condition Israel to absolute inaction – in practical terms, to capitulation – in the face of the aggressions of which it is a victim and (2) to condition the “analysts” to the choice between two schools: that of cowardice and that of indecency. In other words, either the moral equivalence between beheaded babies and baby beheaders (in musical terms, “Imagine there’s no heaven”) or the moral superiority of baby beheaders (in musical terms, “From the river to the sea”).

From the articulation of this double conditioning, it is possible to construct the widespread perception that everything that is done to Israel is legitimate, even if illegal (such as beheading of babies), and that everything that Israel does is illegal, even if legitimate (such as punishing the beheading of babies). Israel has every right to defend itself, obviously – as long as it doesn't defend itself. Because defending oneself is simultaneously a right and a crime: exercising the right is, ipso facto, committing the crime; The only way not to commit the crime is not to exercise the right. Wonderful Catch-22. It is law as a criminalization of the exercise of law itself. It is the law as criminalization of the very thing that the law has the function of ensuring. It is the right as the impossibility of exercising the right. The name of this splendidly Orwellian anti-law is “international law”.

When it affects Israel, international law – rarely specified and invariably distorted – constitutes the abolition of law itself. Insofar as it seeks to ban a single people and remove them from the family of peoples, thus acting as an instrument of legalized discrimination, “international law” is the Nuremberg Laws of nations. Israel is not a nation, it is the Untermensch of nations, it is the dhimmi of nations, a creature of an inferior class and prohibited, now as before, from defending itself: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris) . The act of throwing stones at Jews by Muslim children has roots long before the emergence of the current conflict. It constitutes, as Bernard Lewis says in The Jews of Islam (1984), an old phenomenon reported by several observers: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth offering to strike Mahommedan”. The “dhimmization” of Israel does not happen in a vacuum.

Decades of dehumanization of Israelis by the Western press have led to absolute moral numbness regarding the suffering on one side of the conflict. Dehumanization that persists, even after the pogrom of October 7th. Anyone who cares to survey the front pages of the Público newspaper dedicated to the conflict since October 8th will see that not once is Israeli suffering captured and transmitted. In Israel, which is nothing more than a grotesque military abstraction, there are no humans, only soldiers; there are no houses, only tanks; there are no dead people, just statistics. All the children shown, whether dead or terrified, are Palestinian. There is no Israeli Mater Dolorosa in this conflict: the entire Pietà is Palestinian. The burned and mutilated Israeli babies, the raped and paraded Israeli girls, the dead and humiliated Israeli elderly people never make the front page. They are not seen nor heard. It's as if they never died. It's as if they never even existed. It's as if they were just, once again, ash spit from the chimney of a Nazi crematorium and carried by the wind: “not even the dead will be safe”, Walter Benjamin warned not long ago.

It's a second death on top of the first. A new kidnapping to add to the old one. The lack of photos in the press is, in essence, not morally different from the new fashion that consists of tearing up and throwing away posters with photos of those kidnapped in Gaza. Jewish suffering cannot be seen or exposed in public. Under penalty of starting to ask ourselves Shylock's eternal question: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?”

Not even one photo of the hostages. Not even one photo of the dead babies. Not even one photo of the raped young women. If we compare this deliberate concealment with the famous photos from the war in Vietnam, we will have an idea, albeit vague, of the point to which our press has sunk. Exposing the Buddhist monk who self-immolates on a Saigon street (World Press Photo of the Year, 1963), or the shooting in the head of a Viet Cong suspect by a Vietnamese officer (World Press Photo of the Year, 1968), or the terrified girl who flees, completely naked, from an accidental napalm attack (World Press Photo of the Year, 1973), was to reveal to public opinion “the terror of war”. Where is the Israeli girl? The naked, terrified, kidnapped, raped, dead girl? She does not exist. She never existed. All the girls are Palestinian. At home, in agony, there is no mother waiting for the Israeli girl. Because, like the girls, all the mothers waiting at home in agony are Palestinian. The first pages don't lie: the Israeli girl, already dead or still kidnapped, doesn't exist. She never existed.

This conflict is not, in essence, about territory. It's about this girl. It's not a real estate conflict. It is not a geographic conflict. In one thing the anti-Zionists (that is, the anti-Semites, left and right, who are increasingly less ashamed) are right: this is a conflict over rights. Not about international law, but about the right to exist. On the right, therefore, on which all others depend. About the existence, the right to existence, of that naked girl who doesn't exist. The thousands (millions?) who today shout in the streets “From the river to the sea”, do not hide the fact that it is – always has been and always will be – about the right to exist. Anyone who saw the pogrom that morning knows that October 7th is not just another episode in the long conflict. It is not part of the conflict: it is where the conflict breaks out. The 7th of October is no longer a chapter in the history of the conflict – it is the moment, paradoxically dark and luminous, twilight and dawn, in which the entire conflict is suspended, confessed and exposed, once and for all, the terrible secret of its origin and perpetuation: whether this is a people.