REYNALDO VALINHO ALVAREZ

TEXTOS DE CYRO DE MATTOS E ALEXEI BUENO

 


Imagem obtida no site Recanto do Poeta


POETA NO GALOPE DO TEMPO, de CYRO DE MATTOS


Nascido no Rio de Janeiro, Reynaldo Valinho Alvarez (1931-2021) é autor de diversos gêneros, entre o romance, a crônica, o ensaio, a literatura infantojuvenil e o poema. Legítimo escritor nas diversas manifestações literárias, destaca-se com qualidades inconfundíveis de um discurso coeso e fecundo no último gênero. A crítica especializada vê neste poeta um dos nomes importantes que surgiu na linhagem melhor da poética brasileira, desde que fez sua estreia com Cidade em Grito (1973). O livro rendeu-lhe o Prêmio Olavo Bilac da Secretaria de Cultura da Guanabara.

Nessa geração de poetas que esplendem suas criações com a marca da transcendência, por meio do uso da mítica na palavra, Reynaldo Valinho Alvarez tem lugar garantido. Junta-se a vozes importantes da poética brasileira, como a de um Ledo Ivo, Cassiano Ricardo, Carlos Nejar, Francisco Carvalho, Marcus Accioly, Fernando Mendes Viana, Stella Leonardos, João Carlos Teixeira Gomes, Myriam Fraga e Telmo Padilha.

Com Cidade em Grito, pequeno grande livro, temos a estreia de um poeta que se expressa com recursos modernos, dono do ofício, argumentos lúcidos quando canta a metrópole do Rio de Janeiro, que está a girar sempre, de difícil apreensão no gesto solitário do viver. Apresenta-se para isso não apenas como um só cantor, mas constituído de vários, pois a jornada é complexa, exige padrões criativos de ricos significados.

Na jornada pontuada de gritos lancinantes é capaz de responder ao desafio de cantar a cidade grande com versos pungentes, que fluem em várias direções: asfalto, rua, travessa, beco, céu sombrio onde edifícios tentam escalar os altos com uma gente estranha. Ante “sentimento brutal nunca domado”, canta a colmeia gigantesca com seus milhões nas ruas, dos juntos ou dos sós. O poeta procede com gestos firmes nesse canto multifacetado, formado na dialética da paixão, tormento e sobressalto. No poema curto ou grande retira visões lancinantes da enorme forja urbana, que na semana se movimenta com o tempo da vida, avança no jogo do partir, colide no que nunca chega. Embora aconteça com a calma no jardim, o vazio da praia, é enganosa assim na paisagem com o seu grito abafado. Vestida com a pele do tédio sempre flui com as sombras que cercam os escritórios fechados.

No mais é sempre falar dessa cidade que tudo tem no vaivém das estações danosas, embora desfrute das alegres. Flui e reflui, está a rolar no asfalto, a sambar na passarela, a soltar da garganta os gritos da paixão no gigantesco estádio de futebol, que delira, pensa pelos pés na partida, na diversão que faz arte, imita a vida, se presta à fantasia, à religião cuja liturgia é mesclada com amor e raiva. Do samba no asfalto ao tédio no vazio de arredores, de gente na madrugada à invasão do povo na semana, há sempre esse grito agudo, nascido também por passageiros do hospital, em madrugadas solitárias, esquina, no torpor do vício, fumo, álcool. Vista na constante e desatinada viagem, segue atravessada pelo tempo indiferente às humanas dimensões terrenas, distante do abuso de ocorrências que se lastimam no tom menor ou maior dos absurdos.

Impossível de aprisionar esse grito lancinante que irrompe da vida em trânsito veloz. O poeta em vigília reveste-se com o fato de que cantar é muito pouco, confessa sua impotência, no discurso precário chega então a chorar. Os seres humanos mudam na rotatividade das estações, não muda o tempo, que é o mesmo, talhado nas dimensões cósmicas sem fim, com espaço e lugar que se confundem ante o efêmero que “procura o que ontem foi”, na vã pesquisa, que termina na colheita da “flor vidrada dos ladrilhos”.

Ao cabo, sem ter certeza de que respondeu com precisão ao desafio de celebrar a cidade de milhões, resta ao poeta o consolo de quem tem o prazer desse canto, fez o que pode para expressá-lo na junção de gritos e ais, em rito agudo da dicção afiada, em que entram elementos ásperos, frequentes consoantes expostas ao tormento. Entre poucos que sabem usar o talento verbal na construção do bom poema, nos meios que ficam com os fios lúcidos de “vestido rápido de fada” pelo menos acha o consolo da alma, que no galope fala do mundo com as vozes do vento.

Não há dúvida que o poeta aqui na sua estreia produz valiosa poesia. Inventa o poema com conteúdo palpitante, forma virtuosa, sedenta, faminta de vida que atropela, fere e não cura, se põe a serviço de uma lira que tudo lembra da cidade enorme com seu grito sem fim. Lancinante gravita com suas paisagens interiores, habita inquieta o cenário agarrado ao tempo que tudo dá e toma, escorre, bebe e lambe.

Depois da estreia marcante com Cidade em Grito, Reynaldo Valinho Alvarez só fez aumentar as qualidades de sua construção poética, de livro para livro, com níveis elevados. No alcance de um projeto estético universal produziu com a habilidade de um talento artesanal incrível a façanha de quem sabe que a poesia é forma de conhecimento da vida, fundamental como o amanhecer em tempo de estio ou chuva. Tornou-se dono de ideia fecunda advinda do homem em estado crítico no final do século vinte. Citemos como ilustração desse belo e sofrido fazer poético os livros seguintes: Canto em Si e Outros cantos, O Solitário Gesto de Viver, Solo e Subsolo, O Sol nas Entranhas, O Continente e a Ilha, Lavradio, Galope do Tempo e O Sol nas Entranhas.

Na estrada que se estende com uma vintena de livros de poesia, o poeta passou a acumular prêmios de primeira grandeza, outorgados como reconhecimento de sua vocação exemplar, por órgãos e instituições da importância do Ministério da Educação, Instituto Nacional do Livro, Academia Brasileira de Letras, Câmara Brasileira do Livro, União Brasileira de Escritores (Rio), Pen Clube do Brasil, Biblioteca Nacional e Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil.

Em Galope do Tempo (1997), o poeta de rítmica variação estrutural nova surge das zonas da poesia feita com o melhor que se tem da razão e emoção. Brilha inteiriço como sendo a antena da raça preconizada por Ezra Pound. Operador hábil de formas modernas, também das convencionais como as usadas pelo exímio sonetista, tanto no soneto à moda inglesa como no formato de Petrarca, é eficaz nos dísticos que anunciam ou puxam a seguir o poema com seu sentido amplo, pulsante de símbolos, metáforas, imagens, e em tudo mais que encontramos nesta poesia com grande proveito de quem a lê. E vê o poeta alçar-se numa ideia que esplende novo passo. No texto conjugado com a harmonia da composição que impressiona há um processo moderno para “libertar-se e viver, para colher o fruto a mais que a vida oferecer.”

Domador dos sentimentos com o peso do mundo, pensador do tempo que sempre permanece na indiferença pela vida humana, passando com os seus sortilégios, dores e martírios, a evasão tomada emprestada ao sonho se faz necessária, prazerosa e útil nesse poeta emblemático. A experiência impõe que haja o voo e se apaguem as fronteiras quando então os gestos e os medos se fundem no espaço e no mesmo lugar, fazem com que as esperanças ganhem a forma de um abraço. Embora preso nas algemas desse senhor absoluto, que tudo sabe dos caminhos, valem na estrofação com profundidades esses versos pungentes, cantantes numa lira reflexiva quando medra a ternura com bases na solidariedade decorrente do duro embate.

Na composição de processo novo, a galopar no tempo que gira, em seu permanente estar no mundo, o poeta empreende a aventura áspera, mesclado de vida e sentimentos agudos. Na escritura ideal a alquimia da palavra movimenta-se com os achados certos do coração. E assim, corajoso e firme, incide no enfrentamento dos dias simulados numa linguagem condensada rica de significados. À equação em que são vistos os dias que se perdem nesta luta vã, mal surge a manhã, o poeta informa, canta, revela a notícia de que essa passagem dos muitos ligada no efêmero é forma fundamental para o conhecimento da existência. Tenaz é a busca para tocar na alvorada, nas fronteiras que se apagam, no espaço fazendo que o mundo ganhe a forma de um abraço. É nesse jogo em que o tempo não muda, mostra-se indiferente com as terrenas e abusivas ocorrências humanas, sendo nós que mudamos, que o poeta tenta ser visto no início de um alvorecer, embora “preso nas algemas quer voar, vencer, colher o fruto a mais que a vida oferecer”.

É conhecedor de que o tempo não engana com o seu peso do enigma, não se solidariza com a solidão, que é certeza absoluta de um dia em que tudo se dissolve. Fecham-se as cortinas de todas as coisas no trânsito da vida, do tempo limite onde não mais há o limiar. No terminal por conta de saudosa memória há o ocaso sem escape. Preso ao acaso do tempo contra o tempo, no galope de muitas uvas e poucas chuvas, amargura e ternura, noivar e separar, grão e imensidão, vaga do mar. Quando se escutam vozes ligadas nessas horas críticas em que o vento fala de flor, de homem, de terra, de estrela, da lavra de luar.

Nas vias da solidão e multidão, o poeta mede a vida, mente que divaga, nas ondas do transitar medita. Seu galope que se lança nos intestinos do intertexto acontece com as pinturas de Goya, viaja na palavra realista de Eça, mundo vertiginoso de Cesário, epicidade de Camões. Passa pela Escandinávia, adiante é puxado pela cauda da herança galesa, escorre nas ruas cinzentas de Londres, lateja com os lampejos do eterno. Inventa-se com a companhia de Pessoa. Machado de Assis e Lima Barreto, entre Capitu e Clara dos Anjos, enquanto dorme e sonha não sabe qual deles é seu guru. Tudo converge para sabermos que há um tempo passageiro, às vezes se mastiga, renasce com as esporas do ar.

Sempre nesses versos tocantes o tempo de conhecer a vida, embelezar mundividências do sofrer onde somos e estamos a passar com os passos do sol e da chuva. Tempo de dar, não tomar. Quando se entra em contato com esse galope do tempo forjado com maestria pelo poeta Reynaldo Valinho Alvarez, ficamos mais convencidos de que é inútil apressar. Não adianta, tudo no tempo tem seu tempo, até que seja a vez da hora absurda desse tempo tumular.

A vida inteira é menina, tão moça, alerta o poeta, nesse galope que o tempo faz com passos impassíveis. Com uma neutralidade que ao mesmo tempo espanta, atormenta, para a qual não se consegue chegar perto, pois fora ou dentro sempre está cercada por um mar.

Daí se dizer com o toque do poeta que vai fundo:


Quem aprende com as aves sonha mais.

Não há gurus. Há sóis, luas e ais.


Referência

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Cidade em Grito, Gráfica Danúbio, Rio de Janeiro, 1973.

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Galope do Tempo, Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1977.


TRECHO DE UMA HISTÓRIA DA POESIA BRASILEIRA ONDE O AUTOR, ALEXEI BUENO, ABORDA O POETA REYNALDO VALINHO ALVAREZ:



O carioca Reynaldo Valinho Alvarez, de ascendência galega, é dos maiores mestres da forma poética no Brasil, um poeta sobretudo urbano, de índole expressionista, que poderíamos dizer da família de um Augusto dos Anjos, sobretudo pela visão crítica das misérias sociais do Brasil que encontramos em alguns dos seus livros. Se a memória domina um grande livro como Lavradio, de 2004, um olhar apocalíptico sobre a civilização é o cerne de Corta a noite um gemido, de 2007. Afora essas características, Reynaldo Valinho pertence inegavelmente à linhagem dos poetas da morte, daqueles que, como homens normais que são, não conseguem ficar indiferentes ao maior de todos os assuntos, linhagem que, entre nós, vem desde um Alphonsus de Guimaraens até um Ivan Junqueira [...]

O PARADOXO DA REENCARNAÇÃO: HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE JOAQUIM KORYTOWSKI

TRECHO DO MEU LIVRO AINDA NÃO PUBLICADO EM HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO MEU PAI, EM 19 DE FEVEREIRO DE 2024. NA FOTO QUANDO, ADOLESCENTE NA ALEMANHA, AINDA SE CHAMAVA KARL JOACHIM KORYTOWSKI. AO SE NATURALIZAR BRASILEIRO APORTUGUESOU O NOME PARA JOAQUIM KORYTOWSKI. PARA OUTRAS FOTOS DO MEU PAI CLIQUE AQUI.


Em nova viagem do Joaquim e Thelma à terra do Tio Sam em 1972, deveriam retornar ao Brasil num voo na sexta-feira, dia 13 de outubro, mas por uma causa curiosa (não foi superstição em relação ao dia considerado azarento) protelaram a volta para a segunda-feira, dia 16. O motivo teve a ver com espiritismo.

Já no Brasil, antes da Thelma vir morar conosco, meu irmão mais velho, eu, nosso pai e um amigo do meu irmão que era médium espírita fizemos algumas vezes o que chamávamos de “brincadeira do copo”, que de brincadeira não tinha nada, ao contrário, levávamos muito a sério: era uma forma de comunicação com os espíritos que surgiu na Europa com o kardecismo na segunda metade do século XIX. A gente coloca um copo virado para baixo, dispõe as letras do alfabeto ao redor em círculo, mais as palavras SIM e NÃO, invoca um espírito para entrar no copo, faz perguntas ao espírito, e o espírito responde. Posso assegurar que ninguém de nós empurrava o copo, se alguém empurrasse daria para perceber, juro que o copo andava sozinho. Segundo a ciência, o movimento do copo se deve a um suposto “efeito idiomotor”: ele é empurrado de forma inconsciente, sem que os participantes percebam que estão empurrando. Mas quem já participou da experiência sente que essa explicação é forçada.

O espiritismo kardecista surgiu na França, mas foi no Brasil que encontrou mais adeptos, talvez por sua compatibilidade com as crenças de matriz africana. Meu pai acreditava e, a certa altura, passou a frequentar um centro espírita e me contou que desde então sua vida estava melhorando. Ilusão, já que no frigir dos ovos sua situação financeira degenerou.

Na teoria da reencarnação existe um paradoxo. As pessoas imaginam que as reencarnações são sucessivas: você nasce, vive, morre, e logo depois, ou pouco depois, ou não muito depois reencarna. Tanto é que, quando morre um Dalai Lama, pouco depois procura-se a alma reencarnada daquele Dalai Lama num recém-nascido. Não passaria pela cabeça de ninguém que a alma levaria cem, duzentos anos para voltar a encarnar. As pessoas que acreditam no espiritismo imaginam que encarnaram sucessivamente nas diferentes épocas da história humana: na época dos romanos, na Idade Média, no Renascimento, na era vitoriana, etc. Acontece que a população mundial no passado era bem menor que hoje. Há dez mil anos, éramos apenas uns 2 a 3 milhões. Há 2 mil anos, cerca de 200 milhões. Em 1800, a população mundial era de 1 bilhão. Em 1930, 2 bilhões. Em 1950, 2,5 bilhões. Em 1999, 6 bilhões. Agora somos 8 bilhões. Veja bem, no passado não havia pessoas suficientes para receber todas as 8 bilhões de almas que existem hoje. Este é o paradoxo da reencarnação.

Mas voltemos à viagem do Joaquim e Thelma aos EUA em outubro de 1972. Na noite de quinta-feira, dia 12, estavam na casa dos melhores amigos da Thelma, tomando um drinque de despedida. Quando estavam prestes a se despedirem, conversa vai, conversa vem, começaram a falar em espiritismo, e eis que o amigo era médium amador e tinha em casa um tabuleiro ouija. Nos Estados Unidos, em vez de um copo percorrendo letras sobre uma mesa, utilizam-se esses tabuleiros com letras e números (e algumas palavras como “Yes”, “No”, “Goodbye”), e um marcador (“um tripezinho com um furo, pelo qual se vê a letra”, na descrição do meu pai). Quando os participantes colocam o dedo em cima do marcador, ele se move e forma as mensagens.

Meu pai conta numa carta que logo apareceu um espírito que se dizia seu parente por parte do avô materno, mas de quem nunca ouvira falar. Primeiro se identificou como Jacob Katz, mas depois mudou o nome para Jacob Kantorovich, nascido em 1874 e falecido em 1939, que vivera em Düsseldorf. Respondia meio em alemão, meio em inglês, de forma que meu pai (cujo dedo não estava sobre o marcador) acabou “falando” com ele em alemão, língua que os dois médiuns que “manobravam” o marcador não sabiam! O que derruba a explicação científica para a “brincadeira do copo” ou o “tabuleiro ouija” de que se trata de um efeito ideomotor.

Passada a meia-noite (ou seja, já estavam no dia da viagem, 13), um outro espírito enviou uma mensagem para a Thelma: “Não viaje hoje em veículo algum!” Perguntaram se ao menos poderiam ir de carro para a casa dos cunhados, onde estavam hospedados, e a resposta foi “sim”. Ao perguntarem se poderiam viajar “amanhã” (sábado), a resposta foi “não”. Quando poderiam viajar? Só na segunda-feira, dia 16. Please do not ride, we fear danger. Conclusão: telefonaram para o atendimento 24 horas da Panam e remarcaram a viagem. “Fiquei impressionadíssimo e muito agitado com esta estória”, conta meu pai numa carta, “até agora, escrevendo a respeito me comove.”

Mas seria Jacob Katz/Jacob Kantorovich (1874-1939) de fato parente de meu pai por parte do avô materno? Parece que não. Os pais de Gertrud Lewin, mãe do meu pai, foram Rosa Bornstein (1874-1926) e Paul Lewin (1877-1950). Este emigrou com a segunda esposa, Rosa Wolff (1883-?), para São Paulo antes do início da guerra. Seus pais foram Gerson Lewin (1845-?) e Charlotte Romann (1850-1921). Estes foram os dados que achei nas páginas 30-31 e 54 (árvore genealógica) do citado livro do Pöllmann, já que meu pai nunca comentou comigo sobre a família de sua mãe. Observe que chamei as mulheres pelos sobrenomes de solteiras, que é o que interessa num estudo genealógico.

Pesquisei Jacob Kantorovich no Google e achei uma pessoa com exatamente este nome, nascida em 1885 e falecida em 1935, enterrada no Waldheim Cemetery Co., Forest Park, Cook County, Illinois, EUA. Parece não ter vivido em Düsseldorf, e as datas não coincidem com a do espírito. Mas encontrei um Jacob Katz, morto em 6 de fevereiro de 1939 e enterrado no cemitério judaico de Vorst, cidade de Tönisvorst, a 30 quilômetros de Düsseldorf! 

E last but not least: meu pai conta que o voo da Panam do dia 13 chegou ao Rio sem incidentes, mas naquela noite ocorreram dois desastres aéreos no mundo. Fui conferir e de fato a primeira página do Jornal do Brasil (que meu pai lia) de 15/10/1972 noticia:

Um jato soviético Ilyushin-62 da Aeroflot caiu e explodiu sexta-feira à noite perto de Moscou, matando todo os seus ocupantes [...] no que pode ser o pior desastre da história da aviação civil. Outras 47 pessoas – inclusive um time de rúgbi de Montevidéu – foram dadas como mortas ontem num bimotor F-27 da Força Aérea Uruguaia, que ia para Santiago. Um mineiro da região andina chamada Desfiladeiro Tibúrcio afirmou ter visto a queda do avião.

ERASMO DE ROTERDÃ: A VIDA DE UM NOTÁVEL HUMANISTA RENASCENTISTA

TEXTO EXTRAÍDO DO ENCARTE DO VOLUME X DA COLEÇÃO OS PENSADORES DA ABRIL CULTURAL PUBLICADO EM 1972


 

“Eu não lhe dei, Adão, nem um lugar predeterminado, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa tomá-los e possuí-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha.” Assim Deus fala na Oração Sobre a Dignidade do Homem, do pensador italiano Pico della Mirandola (1463-1494). Naquelas palavras está apresentado um dos temas centrais do humanismo renascentista: a liberdade do homem, que o torna um ser capaz de criar seu próprio projeto de vida.

Movimento literário e filosófico originado na Itália – na segunda metade do século XIV – e depois difundido em outros países da Europa, o humanismo constituiu um dos fatores fundamentais do surgimento da cultura moderna. Nascido nas cidades e comunas que, na época, lutavam por sua autonomia, o humanismo repudiou a ordem e a hierarquia cósmicas contidas na visão de mundo medieval e resguardadas pelo Império (o Sacro Império Romano-Germânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Dentro dessa ordem hierárquica o homem ocupava lugar insignificante e inalterável, imerso num mundo que era visto como ocasião para tentações e pecado. Em contraposição à mentalidade medieval, os humanistas exaltarão a dignidade do homem, proclamando que sua liberdade pode e deve ser exercida tanto em relação à natureza quanto à sociedade. Como aspecto do Renascimento, o humanismo reintegra o homem na natureza e na história, reinterpretando-o em função dessas coordenadas.

 

O humanismo

O termo “humanismo” é derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, correspondendo ao sentido da palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas ao homem e que o distinguiam dos animais. A autonomia do ser humano é buscada pelos humanistas da Renascença por meio de uma volta à Antiguidade, a seus modelos e a suas diretrizes pedagógicas. As chamadas “humanidades” – poética, retórica, história, ética e política – passam desse modo a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício de sua liberdade. Liberdade e capacidade humana de atuar sobre o mundo são temas fundamentais dos humanistas, aparecendo não apenas em Pico della Mirandola, como também em Gianozzo Manetti (1396-1459), em Marsilio Ficino (1433-1499), e ressurgindo nos humanistas franceses posteriores, como Charles Bouillé (1475-c. 1553). Mais tarde é que as especulações marcadas pela exaltação da capacidade humana serão contrabalançadas pela nota de ceticismo que o humanismo assumiu no pensamento de Montaigne (1533-1592), de Pierre Charron (1541-1603) e de Francisco Sánchez (1552-1581).

Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmativa do valor espiritual do homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e de seus prazeres. Opondo-se ao ascetismo medieval, humanistas italianos, como Lorenzo Valla (1407-1457), retornam às teses do epicurismo antigo de que o bem é o prazer e de que a virtude consiste num cálculo de prazeres. Em nome do hedonismo, Valla inclusive recusa a superioridade religiosa da vida monástica: os verdadeiros seguidores de Cristo seriam os que dedicam suas atividades a Deus, pertençam ou não a ordens religiosas. O combate ao ascetismo e à vida monástica é empreendido também por Gianozzo Manetti, Coluccio Salutati (1331-1406) e Poggio Bracciolini (1380-1459). A afirmação da naturalidade do homem leva ainda os humanistas a proclamar a superioridade da vida ativa sobre a contemplativa, e da filosofia moral sobre a física e a metafísica. “A filosofia moral é, por assim dizer, o nosso território”, escreve Leonardo Bruni (c. 1370-1444). A mesma idéia é defendida por Matteo Palmier (1406-1475) e por Bartolomeo de Sacchi (1421-1481). Nesse sentido é que o humanismo abriu caminho para a obra de Maquiavel (1469-1536) – em muitos aspectos considerado humanista.

O retorno à Antiguidade, que inspira o humanismo renascentista, confere-lhe agudo senso de historicidade, de que carecia a cultura medieval, construída em função do ideal de intemporalidade. A defesa da eloquência dos antigos, por exemplo, resultou para os humanistas num esforço de recuperação de linguagem genuína da época clássica e num laborioso empenho para restaurá-la de sob as deformações sofridas no decorrer da Idade Média. Os humanistas redescobrem a perspectiva histórica, fazendo no plano da temporalidade uma mudança correspondente à descoberta, ao nível do espaço, da perspectiva óptica pela pintura renascentista.

A rejeição do ascetismo e das filigranas teológicas não significou a adoção, pelos humanistas, de uma posição necessariamente antirreligiosa ou anticristã. O que fazem é rediscutir temas religiosos, como a providência de Deus e a natureza e o destino da alma, com o objetivo de defender a liberdade humana e a capacidade do homem de agir sobre o mundo e modificá-lo de acordo com suas necessidades. Por outro lado, no exame de problemas religiosos, deram preferência a dois temas que pareciam, na época, os mais importantes: a função civil da religião e a tolerância religiosa. A primeira associava-se ao naturalismo: na obra Sobre a Dignidade e a Excelência do Homem, Gianozzo Manetti defende a tese de que a Bíblia não contém apenas uma proclamação da felicidade celeste, mas encerraria também uma mensagem e um programa relativos à felicidade terrena. Por isso mesmo é que para Manetti, como para Valla e outros, a função fundamental da religião seria relativa à vida civil e à atividade política.

A tolerância religiosa constitui outro traço típico do humanismo renascentista. Nos séculos posteriores – XVI e XVII – a tolerância resultará de guerras religiosas que acabarão por determinar a coexistência pacífica de vários credos, que todavia permanecem distanciados e irredutíveis. A tolerância preconizada pelos humanistas era de outro tipo, pois sustentada pela convicção de que haveria uma unidade fundamental subjacente às diversas religiões. Isso implicava ainda a intrínseca identidade entre filosofia e religião. Perguntava Leonardo Bruni: “São Paulo ensinou algo mais do que foi pensado por Platão?”. Seguindo a linhagem da Patrística – a doutrina dos primeiros padres da Igreja –, os humanistas consideravam que o cristianismo teria levado à sua plenitude a sabedoria expressa pelos filósofos antigos: a Razão (logos) grega seria uma antecipação do Verbo (Logos) que se encarna em Cristo. O retorno às origens significava, assim, para o humanismo da Renascença, a possibilidade de conciliar diferentes concepções filosóficas (como pretende Pico della Mirandola com o platonismo e o aristotelismo) e ainda harmonizá-las com a Cabala, a magia, a Patrística e a Escolástica. Com isso, poder-se-ia retornar às fontes de diversas correntes filosóficas e recuperar a paz religiosa que fora destroçada pelas disputas teológicas. A tolerância religiosa, sustentada por argumentos que já então exprimem o despontar da mentalidade moderna, ressurge como um dos ideais do humanismo de Erasmo de Rotterdam e de Thomas More.

 

Numa prisão espiritual

Em agosto de 1495, um frade agostiniano, vindo de Cambrai, chegou a Paris com o objetivo de obter o título de doutor em teologia. Tinha sido contemplado com uma bolsa de estudos, mas os estipêndios, embora recebidos com regularidade, eram tão parcos que foi obrigado a alojar-se na domus pauperum do colégio Montaigu. Situado no Quartier Latin, sobre a colina de Sainte Geneviève [Santa Genoveva], o edifício era triste e sombrio, os dormitórios sujos, as paredes nuas e geladas. As refeições eram péssimas: frequentemente os ovos e a carne eram servidos quase estragados e o vinho mais parecia vinagre.

Tudo isso poderia ser visto com certa naturalidade por quem ainda tivesse uma visão medieval do mundo, centralizasse a vida em torno do espiritual e negasse o valor das coisas sensíveis. Mas o frade recém-chegado não pensava e nem sentia desse modo. Para ele o mundo material não era necessariamente residência do pecado e reino da contaminação, e cuidar do bem-estar físico não significava afastamento da bem-aventurança eterna.

Pior que o desconforto ou os jejuns, eram os sofrimentos pelos quais tinha que passar a inteligência diante do ensino escolástico, impregnado de sutilezas insípidas, de exagerado formalismo e limitado a discutir temas irrelevantes.

O colégio Montaigu era, na verdade, uma verdadeira prisão espiritual, que poderia ter sido útil para Inácio de Loyola (1491-1556), que ali suportou, durante vinte anos, uma disciplina de castigos corporais para educar a vontade. Mas era absolutamente repugnante para a natureza nervosa, independente e moderna do jovem frade Erasmo. Ele era exemplo vivo de uma nova ordem de coisas: da mentalidade renascentista, da qual veio a se tornar um dos maiores representantes.

Sua mãe chamava-se Margaretha e era filha de um médico de Zevenbergen. Seu pai, Gerardus, homem culto e relacionado com representantes do humanismo nos Países Baixos, era um padre com funções itinerantes em diversas paróquias da cidade de Gouda, próxima a Rotterdam. A ligação amorosa com Margaretha não era lícita, mas as regras da vida cristã estavam enfraquecidas, naqueles tempos, e os rigores da moral agostiniana não eram mais obedecidos com tanta severidade. Dessa ligação resultou um primeiro filho, chamado Pieter. Poucos anos depois viria à luz Erasmo, num dia e mês conhecidos com certeza (passagem de 27 para 28 de outubro), mas num ano que não se sabe ao certo qual tenha sido: os biógrafos oscilam entre 1465 e 1469. É certo, entretanto, ter o fato ocorrido em Rotterdam, para onde Margaretha fora enviada a fim de guardar a discrição necessária em tais ocasiões. Inicialmente a educação de Erasmo foi confiada a um preceptor, com o qual aprendeu as primeiras letras. Mais tarde, em 1475, o pai providenciou seu ingresso na escola dos Irmãos da Vida em Comum, em Deventer. Era um estabelecimento famoso do norte do continente, no qual se respirava a atmosfera humanística que imperava na Renascença.

Em Deventer Erasmo encontrou um dos melhores ambientes intelectuais da época, recebendo influência de humanistas como Johannes Sintheim e Alexander Hegius (1433-1498), e viveu feliz com a mãe e o irmão. Contudo, esses anos de bem-estar estavam fadados a terminar relativamente cedo: Margaretha faleceu e ele foi obrigado a voltar para Gouda. Logo depois, o pai também morreu, vitimado por uma das pestes que, naquele tempo, assolavam a Europa periodicamente. Pieter e Erasmo foram então enviados pelos tutores a Hertogenbosch, onde encontraram uma disciplina de claustro extremamente desagradável. Não podiam, no entanto, desobedecer aos tutores e concluíram os estudos, esperando ansiosamente o momento de se tornarem livres. A solução era entrar para alguma ordem religiosa. E, de fato, Pieter ingressou no mosteiro de Sion, perto de Delft, enquanto Erasmo tornava-se noviço agostiniano em Steyn [ou Stein]. Cinco anos depois (1492) era ordenado sacerdote e concluía um longo período dedicado ao estudo dos autores clássicos, gregos e latinos, solidificando sua formação humanística. Por outro lado, os rigores da vida monástica acenderam em Erasmo a paixão pela liberdade pessoal e a irritação com tudo aquilo que pudesse restringi-la Formaram-se assim os traços essenciais de um complexo caráter integralmente moderno, que colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do humano em todas as suas formas.

Ordenado padre pelo bispo de Utrecht, Erasmo de Rotterdam pôs toda a inteligência a serviço de seus ideais e providenciou, através de negociações secretas muito hábeis – não querendo opor-se abertamente aos superiores – sua nomeação como secretário do bispo de Cambrai. Assim poderia libertar-se dos horizontes limitados do mosteiro de Steyn e tomar contato com o mundo, pois o bispo precisava dele para acompanhá-lo até Roma. A viagem, no entanto, não chegou a ocorrer, tendo sido adiada várias vezes, o que permitiu ao moço, ansioso por liberdade, gozar uns tempos de vida sem problemas. Não era obrigado a dizer missa, podia divertir-se à vontade, conhecer pessoas inteligentes, aprofundar-se nos autores clássicos e, principalmente, dedicar-se à redação do diálogo Antibárbaros.

A boa vida, contudo, deveria acabar. Afinal o bispo não precisava mais de secretário e o alegre frade deveria voltar para o convento e dedicar-se aos mesmos afazeres dos colegas de batina. Mas Erasmo tinha tomado gosto pela liberdade e outra vez teve que usar de habilidade para mudar a ordem normal das coisas. E o fez tão bem que convenceu o bispo a envia-lo à capital francesa para obter o título de doutor em teologia. A vida em Paris tinha enormes vantagens, pois a universidade era um verdadeiro centro internacional de cultura e Erasmo poderia desfazer-se do provincianismo do país de nascença.

E realmente isso aconteceu, apesar de confinado a maior parte do tempo naquela prisão do corpo e da alma que era o colégio Montaigu. Nos momentos em que podia ver-se livre, procurava o contato com outras instituições e outras pessoas. Foi assim que conheceu Robert Gaguin (1425-1502) e Faustus Andrelinus (1462-1518), mestres incontestáveis do humanismo na França. No próprio colégio podia aprofundar o conhecimento dos primeiros padres da igreja e aperfeiçoar o latim a ponto de passar a rivalizar com os maiores epistológrafos antigos e modernos.

No entanto, isso tudo não o isentava dos aspectos negativos da vida em Montaigu, e as torturas físicas acabaram por deixá-lo enfermo. Tal fato permitiu-lhe, mais uma vez, pôr a sagacidade prática em funcionamento e safar-se para a terra natal, sob pretexto de necessitar de cuidados médicos especiais.

 

Humor e Teologia

Como era de se esperar, a cura foi muito rápida e logo depois Erasmo aproveitou para libertar-se definitivamente do colégio “vinagre”, como ele mesmo o chamou. Entretanto, ao voltar a Paris, no outono de 1496, tinha que providenciar a subsistência. A solução era dar aulas particulares para não recorrer à Ordem e assim manter sua independência. Antes já tinha tratado de criar clientela e agora tinha alunos muito ricos, especialmente entre a aristocracia inglesa. Não só pagavam muito bem, como possibilitavam-lhe outros privilégios, essenciais para quem queria manter-se livre e dedicar-se à criação de obras de pensamento e arte. Dessa época datam os primeiros esboços dos Colóquios e De como Escrever Cartas, além de pequeno volume de poemas.

Os Colóquios (modificados em várias edições até a definitiva, em 1533) foram concebidos para funcionar junto aos alunos como manual de conversação. Em forma de diálogo extremamente vivo, Erasmo ridiculariza costumes sociais e da Igreja, além de personalidades da época escondidas sob pseudônimos, mas facilmente identificáveis pelo público mais ilustrado da época. Em O Casamento e A Jovem Arrependida satiriza os defensores da vida conventual como ideal de espiritualidade; na Confissão do Soldado e O Soldado e os Cartuxos qualifica sarcasticamente como loucos os jovens atraídos pela carreira das armas.

Ele mesmo, no entanto, nada tinha de louco e sabia muito bem como fazer para dar solução aos problemas de sobrevivência e resguardar sua independência pessoal. Em 1499, acompanhado de lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, chega à Inglaterra, consegue hospedagem no Saint Mary’s College de Oxford e toma contato com uma universidade muito mais aberta a novas ideias do que a de Paris. Em Oxford, estudantes e professores faziam juntos as refeições, em meio a animados debates; eram banquetes com companhia culta, boa comida, não muito vinho e nobre palestra. Erasmo sentiu-se em seu elemento, não só por causa desses costumes cotidianos, mas porque encontrou pessoas que partilhavam de seus interesses intelectuais. Eram muitos os que, em Oxford, pensavam como ele: o arcebispo William Warham (1450-1532), John Fisher (1469-1535), os mestres universitários William Grocyn (1446-1519), Thomas Linacre (1460-1524), e Hugh Latimer (1485(?)-1555), e sobretudo John Colet (1467-1519) e o futuro chanceler de Henrique VIII, Thomas More. Juntos, conceberam o projeto de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos e propunham-se a iniciar, assim, uma revolução na hermenêutica e exegese dos livros sagrados. As consequências foram as mais profundas e as novas traduções a partir dos textos originais revelaram um cristianismo muito diverso daquele que perdurara durante os séculos da Idade Média.

Logo ao chegar à Inglaterra, em 1499, Erasmo não estava ainda dotado de todos os instrumentos necessários para esse trabalho, pois faltava-lhe o domínio do grego. Mas dedicou-se a aprendê-lo com os colegas ingleses e continuou os estudos durante alguns anos, até tornar-se apto a fazer a tradução, com comentários críticos, do Novo Testamento, publicado em 1516, e que veio a constituir um marco dentro da história da hermenêutica bíblica.

Antes, em 1500, Erasmo tentara deixar a Inglaterra, mas um incidente na hora da partida obrigou-o a redigir e publicar outra obra que marcaria época: as autoridades portuárias inglesas não lhe permitiram carregar as economias em ouro e prata, acumuladas custosamente. Mais uma vez viu-se forçado a recomeçar do zero a luta pelo pão de cada dia. Não teve dúvidas sobre como fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma antologia de citações latinas e provérbios, colocando nas mãos do grande público um imenso acervo de cultura, até então privilégio de poucos. O livrinho teve sucesso imediato e foi o primeiro exemplar de literatura de divulgação. Chamava-se Adágios e trouxe celebridade para o autor. À cata de patrocínio e ao mesmo tempo cioso de sua independência pessoal, viaja pelos Países Baixos e pela França, sem fixar-se em lugar algum. Acima de tudo procura não se comprometer com nenhuma instituição ou pessoa. Almeja apenas ao pouco que lhe permitia satisfazer as necessidades básicas, permanecendo livre para o trabalho intelectual.

 

O Elogio da Loucura

Continuando suas viagens, concretiza o velho sonho de estagiar na Itália, centro do humanismo e de toda a renovação intelectual renascentista que se estende pela Europa. Não só as bibliotecas italianas, onde poderia encontrar preciosos manuscritos, mas a tipografia de Aldo Manunzio (1450-1515) excitam-no enormemente, e passa horas e horas a trabalhar com belíssimos caracteres tipográficos, sobretudo os mais miúdos. A imprensa é para ele mais do que uma simples técnica: é o instrumento maravilhoso que abrirá todas as portas da cultura, inaugurando uma nova era.

Em 1509 a Coroa Inglesa passa à cabeça de Henrique VIII (1491-1547), que Erasmo conhecera desde menino e com o qual chegara a corresponder-se em latim. O monarca estava sempre imerso na leitura dos Adágios, segundo informação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os amigos insistem para que Erasmo volte à Inglaterra, pois poderia conseguir do novo soberano uma pensão permanente. Em 1509 deixa definitivamente a Itália e hospeda-se em Londres, na casa de Thomas More, onde encontra o ambiente ideal para o estudo e as longas conversas eruditas. A saúde frágil, porém, perturba-lhe a tranquilidade, e crises de cálculo renal obrigam-no a longas horas de repouso. Erasmo reage ao mal por meio do recurso que lhe servia até como remédio: escrever. Nasce assim uma obra-prima da literatura de todos os tempos e de todas as línguas: O Elogio da Loucura.

Apenas sete dias bastaram para escrever a obra, graças à absoluta liberdade de concepção e total ausência de compromissos. Não se tratava de trabalho feito sob encomenda ou programado para obtenção urgente de dinheiro para subsistência. Era uma brincadeira para passar o tempo, mas quem assim brincava tinha atrás de si toda uma vida dedicada à melhor literatura clássica e mais as experiências de um homem voltado inteiramente para as coisas do espírito.

Erasmo tinha sofrido todas as agruras da pobreza e da bastardia e tinha convivido com príncipes e poderosos. Tinha passado pelos rigores da vida monacal e vira bispos comprazerem-se no luxo e na libertinagem. Fora testemunha do furor criminoso dos príncipes da Itália em guerra e vira a miséria aflitiva do povo. Tudo isso soava-lhe profundamente estúpido e ao mesmo tempo a própria estultícia parecia ser o motor dessas ações absurdas. Passou-lhe então pela cabeça, pouco antes de chegar à Inglaterra, atravessando os Alpes, a ideia de colocar isso tudo no papel. As crises de cálculo renal, na casa do amigo More, forneceram-lhe as circunstâncias propícias para fazer a Loucura subir ao púlpito, sempre acompanhada pela Lisonja e pelo Amor-Próprio, e elogiar a si mesma.

O resultado foi a crítica impiedosa dos juristas minuciosos, dos filósofos escolásticos, dos nobres arrogantes, dos bispos luxuriosos, dos negociantes sórdidos e estúpidos, dos militares que julgavam ser suficiente atirar uma moeda numa bandeja para adquirir a indulgência que os deixaria puros e limpos como quando nasceram.

Todo o Elogio da Loucura é uma mascarada, mantida viva pela ambiguidade estrutural que anima a crítica aos costumes e aos poderosos, e pela inspiração vibrante vestida de admirável roupagem estilística. A opinião pessoal do autor permanece inacessível e, se alguém se atrevesse a discutir com ele por causa do sarcasmo e das críticas que distribui generosamente, poderia responder, tranquilo, que não foi ele quem disse isso, mas Dona Estultícia. E quem deve tomar a sério a loucura?

O próprio livro nada tinha de louco e, muito embora tudo parecesse brincadeira para homenagear o anfitrião Thomas More (em grego, loucura é moria), a pequena sátira obteve imediatamente enorme sucesso e desempenhou papel fundamental na eclosão da Reforma protestante. A maior parte daquilo que os reformadores objetavam à Igreja encontrava-se criticado por Erasmo. O Elogio da Loucura, sob a aparência de festivo fogo de artifício, foi uma das obras que mais abalaram seu tempo, funcionando como verdadeiro panfleto revolucionário. Constituindo a mais ousada e a mais artística obra de sua época, era consumida amplamente por aqueles que voltavam de Roma irritados com os desregramentos de papas e cardeais, a viver a vida suntuosa de príncipes, em contradição com os preceitos do cristianismo original. Os revoltados reclamavam uma reforma geral da Igreja e alimentavam-se ideologicamente das críticas do brilhante humanista Erasmo de Rotterdam.

 

Liberdade ou servidão?

As críticas aos costumes e às instituições, escritas em 1509, vinham-se juntar a uma nova concepção da vida cristã, tal como Erasmo tinha exposto no Manual do Cristão Militante (1501). Nessa obra sonhava com um ideal religioso ao alcance de todos, uma religião interiorizada e humanizada, sem os excessos místicos de boa parte da Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico. Aliam-se também a seu trabalho como filólogo, preocupado com revisar os erros da vulgata e dedicado a uma nova tradução, para o latim, de todo o Novo Testamento. Isso sem contar as inúmeras edições críticas, que preparou, das obras dos primeiros padres da Igreja, especialmente as de São Jerônimo.

Há muito, portanto, Erasmo estava procedendo a uma eficaz reforma da doutrina cristã, ao atacar o pensamento medieval em suas bases. Não possuía, contudo, aquele grão de loucura que ele mesmo achava necessário para fazer o mundo caminhar mais depressa. Não era um revolucionário que pegasse em armas para atacar violentamente o adversário e tentar derrotá-lo em pouco tempo. Não era um condutor de massas, muito embora sua pena tivesse a força de muitos exércitos. Preferia atacar o mal de maneira sutil, pela ironia e pela vivacidade de espírito, dirigidas aos mais inteligentes. Solapava as bases do pensamento da época sem fazer nenhum estardalhaço. Era muito diferente daquele outro frade agostiniano, Martinho Lutero (1483-1546), que estava prestes a irromper como um furacão para mudar toda a ordem econômica, política e religiosa da Europa.

Em abril de 1511, Erasmo deixou a casa de Thomas More, sem ter conseguido obter a esperada pensão de Henrique VIII, cujo amor ao humanismo já tinha sido substituído pelo amor às intrigas da corte e à glória nos campos da batalha. Viaja então até Paris, a fim de publicar Elogio, e retorna à Inglaterra, onde passa a ensinar grego e teologia na universidade de Cambridge. Em 1512 o arcebispo de Canterbury consegue-lhe um reitorado em Kent, com pensão anual de 20 libras, pagáveis inclusive no exterior, mesmo que deixasse de exercer as funções. Dois anos depois Erasmo transfere-se para Basileia, na Suíça, tendo, pouco antes, redigido uma sátira contra o papa Júlio II (1443-1513).

Em Basileia liga-se ao editor Frobenius (1460-1517) e trabalha junto com os operários da tipografia, cuidando do texto grego e latino, além de apreciações críticas, do Novo Testamento e das Cartas de São Jerônimo. Liga-se também ao pintor Holbein (1497-1543) que o retrata várias vezes, e desenha ilustrações para o Elogio da Loucura.

Em meio aos trabalhos eruditos, Erasmo entra em contato, pela primeira vez, com Lutero, através de uma carta de Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. O diplomata, entre outros assuntos, fala-lhe do jovem frade, que sente por ele a mais alta estima, mas não concorda com sua concepção sobre o pecado original. Não adota a opinião de Aristóteles, segundo o qual é justo aquele que procede com justiça. Para Lutero, só se é justo quando se está em estado de justiça. Em outros termos, Lutero acha que primeiro é preciso que o indivíduo seja transformado interiormente; justificado por Deus (Se apropriando, assim, da justiça divina por imputação); as obras viriam depois.

Nessa pequena discordância filosófica estavam contidas todas as diferenças entre os dois reformadores. Erasmo era um humanista no mais completo sentido, que acreditava integralmente nas possibilidades de a razão humana distinguir claramente entre o bem e o mal, e colocava no livre-arbítrio de cada um a fonte de todo autêntico pensamento religioso e da opção moral. Lutero esposava o agostinismo mais extremado, segundo o qual o homem é um miserável ser, condenado ao pecado e à degradação, da qual só pode ser salvo pela graça divina; o homem não pode por si só atingir a beatitude eterna mediante aquilo que faça; é preciso antes entregar-se a Deus pela fé e esperar pacientemente pela misericórdia divina. Erasmo procura a reforma pelo esclarecimento racional, Lutero afirma, antes de tudo, o poder da fé.

A fé remove montanhas, a razão não; pelo menos é no que acreditavam as massas camponesas da época, crença que interessava aos príncipes alemães, preocupados em libertar-se do jugo econômico do Vaticano. Assim, a Reforma seguiu o caminho de Lutero e incendiou o continente, a partir das famosas 95 teses redigidas e afixadas na porta da igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.

 

Entre dois fogos

A história posterior a essa data é marcada pelos insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores, no sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas, pois afinal todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre humanista seria uma arma decisiva na luta, com toda sua cultura e erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro lado ocorre o mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as teses de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de cardeal. Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com nenhum dos lados. A Igreja lhe parece podre e a exigir profundas modificações, mas os reformadores eram, a seu ver, bárbaros e fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar absoluta independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que poderia parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada convicção de que os dois lados estavam errados e o verdadeiro caminho deveria ser criado pelo homem enquanto ser inteligente e livre.

As paixões a seu redor o aborreciam, mas apesar disso continuava a executar seu trabalho intelectual. Em 1517 vem à luz a Questão da Paz, onde advoga o ideal de uma Europa unida e sem fronteiras nacionais. O próprio Erasmo não queria ser holandês, francês, inglês, italiano ou suíço, como realmente não foi, mas tão-somente um cidadão do mundo, e isso ele o foi com coerência e lucidez. Em 1522 publica uma nova edição ampliada dos Colóquios, na qual apresenta uma sociedade justa e racional, verdadeiramente cristã e amiga da paz, que julga possível existir no futuro. Em 1524 é a vez do pequeno tratado Sobre o Livre Arbítrio, contestado dois anos depois pelo Servo Arbítrio, de Lutero. Como se tudo isso não bastasse, continua a trabalhar nas edições críticas dos textos originais dos primeiros padres da Igreja.

Em 1529 Basileia deixa de ser um refúgio tranquilo, e os conflitos religiosos eclodem. Em fevereiro o culto católico é oficialmente abolido, os mosteiros são expropriados, cerram-se as portas da universidade. Erasmo é obrigado a partir. Refugia-se na cidade de Friburgo e continua a escrever: A Amável Concórdia da Igreja, uma nova tradução do Ecclesiastes e quatro volumes sobre a arte da pregação, dedicados ao bispo Fisher, que logo depois seria condenado à morte por não aceitar a autoridade de Henrique VIII em matéria religiosa.

A saúde, entretanto, está abalada. O reumatismo e as dores de estômago são insuportáveis. Mas o remédio contra os males do corpo e do espírito continua à mão: escrever. E viajar também. Projeta voltar à terra natal, para onde é chamado insistentemente pelo bispo de Brabante. Vai antes, contudo, para Basileia, onde deveria esperar o degelo da primavera. Alguns fiéis o retêm por mais algum tempo e cuidam dele carinhosamente. Visita a tipografia de Frobenius para supervisionar a edição do Ecclesiastes e escreve ainda um Comentário ao Salmo XIV, que há muito prometera a um amigo humilde chamado Eschenfelder. Foi o último trabalho.

Em junho de 1536 Erasmo está tão fraco que já não consegue ler, e um mês depois, exatamente no dia 12 de julho, pronuncia as últimas palavras de sua vida, Lieve God (em holandês: Bom Deus) e exala o último suspiro. Deixava como herança a ideia de que a razão deve combater todos os fanatismos e que acima de todos os valores deve estar o homem, sobretudo enquanto ser de inteligência livre. 

SE ISTO É UM POVO (WHETHER THIS IS A PEOPLE), de MIGUEL GRANJA

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL OBSERVADOR DE PORTUGAL


ARTICLE ORIGINALLY PUBLISHED IN THE PORTUGUESE NEWSPAPER  OBSERVADOR. FOR THE ENGLISH TEXT (IN BLUE), SEE BELOW.




Das centenas de disputas territoriais actualmente em curso no mundo, apenas aquela que envolve Israel surge sempre, e não por acaso, enquadrada em termos legais. Mais do que enquadrada – reduzida a, e armadilhada em, termos legais. Em nenhum outro conflito ou disputa a questão legal é tão central e invariável: o conflito em Caxemira, que envolve a Índia e o Paquistão, nunca é qualificado em termos da sua legalidade: Caxemira é “disputada”. Ponto final. Não há registos, por exemplo, de grandes manifestações em Londres e Paris contra a ilegalidade da ocupação turca do norte de Chipre, e o conflito curdo-iraquiano não desperta o mínimo interesse, nem legal nem outro, na opinião pública ou publicada. Se na maior parte dos casos as esferas do direito e da geopolítica são totalmente distintas e autónomas, e analisadas tendo como pressuposto essa distinção e essa autonomia, no caso de Israel elas são praticamente fundidas até à total indistinção. A forma como enquadramos um conflito também é parte do conflito.

 

O actual conflito na Ucrânia permite uma comparação oportuna. As análises ao exercício de legítima defesa da Ucrânia nunca incluem, por parte dos “especialistas”, recomendações a Zelensky sobre “proporcionalidade” e prelecções sobre a inocência dos civis russos. José Milhazes, por exemplo, é capaz de ir à rádio de manhã defender que a Ucrânia está a travar uma guerra defensiva e, portanto, todos os meios de defesa de que se sirva são legítimos contra a agressão russa (“a Ucrânia tem direito a defender-se com os mesmos meios que a Rússia emprega”) – e à noite estar numa televisão a fazer a defesa de que Israel, travando uma guerra defensiva contra uma organização terrorista que usa os seus próprios civis como escudos humanos e hospitais como centros de comando (admitido pelo próprio), não tem legitimidade de se defender plenamente (“Esta ofensiva de Israel irá despertar um espírito anti-israelita nos países árabes e em algumas capitais europeias”).

 

Israel tem, pois, todo o direito de travar uma única guerra, que é ao mesmo tempo uma guerra única: a guerra em que ninguém morre, a não ser judeus; em que ninguém sofre, a não ser judeus; em que ninguém é desalojado ou hospitalizado, a não ser judeus. Em que a parte agredida tem como responsabilidade primeira a de proteger a parte agressora mais do que a parte agredida que está à sua responsabilidade; em que Israel tem mais deveres de protecção da população de Gaza do que o Hamas que a governa; em que Israel é obrigado a preservar intactos os hospitais, as escolas e as mesquitas que o Hamas armadilha e a partir dos quais ataca Israel. De acordo com o enquadramento legal vigente que rege estas matérias sensíveis, a guerra que não existe é a única guerra que Israel pode travar pela sua existência. Israel tem todo o direito de travar uma guerra impossível – e nenhuma outra.

 

No caso (sempre único e isolado) de Israel, o especialista em relações internacionais, tornado advogado instantâneo, suspende o seu ofício de compreensão do mundo e activa o seu anseio de transformá-lo: não há “análise” (que é a designação que actualmente a propaganda atribui à propaganda) que não se sirva de expressões como “direito internacional”, “proporcionalidade”, “crimes de guerra”. Obviamente que o uso destas expressões, fortemente armadilhadas para paralisar a compreensão, se dirige apenas a Israel e à sua acção, nunca aos seus agressores e às suas agressões. Esta hiper-juridificação do conflito não é, no entanto, acidental. Ela é essencial ao seu propósito, o qual visa sobretudo um duplo condicionamento: (1) condicionar Israel à absoluta inacção – em termos práticos, à capitulação – perante as agressões de que é vítima e (2) condicionar os “analistas” à escolha entre duas escolas: a da cobardia e a da indecência. Ou seja, ou a equivalência moral entre bebés degolados e degoladores de bebés (em termos musicais, “Imagine there’s no heaven”) ou a superioridade moral dos degoladores de bebés (em termos musicais, “From the river to the sea”).

 

A partir da articulação deste duplo condicionamento, é possível construir a percepção generalizada de que tudo aquilo que é feito a Israel é legítimo, mesmo que ilegal (como degolar bebés), e de que tudo aquilo que Israel faz é ilegal, mesmo que legítimo (como punir a degolação de bebés). Israel tem toda a legitimidade de se defender, obviamente – desde que não se defenda. Porque defender-se é simultaneamente um direito e um crime: exercer o direito é, ipso facto, cometer o crime; a única forma de não cometer o crime é não exercer o direito. Maravilhoso Catch-22. É o direito como criminalização do próprio exercício do direito. É o direito como criminalização daquilo mesmo que o direito tem como função assegurar. É o direito como impossibilidade de exercer o direito. O nome deste direito anti-direito, esplendorosamente orwelliano, é “direito internacional”.

 

Quando incide sobre Israel, o direito internacional – raramente especificado e invariavelmente distorcido – constitui a própria abolição do direito. Na medida em que visa a proscrição de um único povo e a sua remoção da família dos povos, actuando assim como um instrumento de discriminação legalizada, o “direito internacional” são as Leis de Nuremberga das nações. Israel não é uma nação, é o Untermensch das nações, é o dhimmi das nações, criatura de classe inferior e proibida, agora como outrora, de se defender: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris). O acto de atirar pedras aos judeus por parte das crianças muçulmanas tem raízes muito anteriores ao surgimento do corrente conflito. Constitui, como conta Bernard Lewis em The Jews of Islam (1984), um velho fenómeno relatado por vários observadores: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth to offer to strike a Mahommedan”. A “dhimmização” de Israel, essa sim, não acontece num vácuo.

 

Décadas de desumanização dos israelitas por parte da imprensa ocidental conduziram à absoluta dormência moral relativamente ao sofrimento de um dos lados do conflito. Desumanização que persiste, mesmo após o pogrom de 7 de Outubro. Quem se der ao trabalho de fazer um levantamento das primeiras páginas do Público dedicadas ao conflito desde o passado 8 de Outubro, verá que nem por uma vez o sofrimento israelita é captado e transmitido. Em Israel, que não passa de uma grotesca abstração militar, não existem humanos, apenas soldados; não existem casas, apenas tanques; não existem mortos, apenas estatísticas. Todas as crianças apresentadas, mortas ou aterrorizadas, são palestinianas. Não há mater dolorosa israelita neste conflito: toda a Pietà é palestiniana. Os bebés israelitas carbonizados e mutilados, as raparigas israelitas violadas e desfiladas, os idosos israelitas mortos e humilhados nunca fazem primeira página. Não se vêem nem se ouvem. É como se nunca tivessem morrido. É como se nunca tivessem sequer existido. É como se fossem apenas, de novo, cinza cuspida da chaminé de um crematório nazi e levada pelo vento: “nem os mortos estarão em segurança”, alertou, não há muito, Walter Benjamin.

 

É uma segunda morte em cima da primeira. Um novo rapto a somar ao velho. A inexistência de fotos na imprensa não é, no essencial, moralmente diferente da nova moda que consiste em rasgar e deitar ao lixo os cartazes com as fotos dos sequestrados em Gaza. O sofrimento judaico não pode ser visto nem exposto em público. Sob pena de começarmos a colocar a nós mesmos a eterna questão de Shylock: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?

 

Nem uma foto dos reféns. Nem uma foto dos bebés mortos. Nem uma foto das jovens violadas. Se compararmos esta ocultação deliberada com as famosas fotos da guerra no Vietname, teremos uma ideia, ainda que vaga, do ponto a que a nossa imprensa desceu. Expor o monge budista que se auto-imola numa rua de Saigão (World Press Photo of the Year, 1963), ou o tiro na cabeça de um suspeito vietcong por parte de um oficial vietnamita (World Press Photo of the Year, 1968), ou a menina aterrorizada que foge, completamente nua, de um ataque acidental de napalm (World Press Photo of the Year, 1973), era revelar à opinião pública “the terror of war”. Onde está a menina israelita? A menina nua, aterrorizada, sequestrada, violada, morta? Não existe. Nunca existiu. Todas as meninas são palestinianas. Em casa, em agonia, não há nenhuma mãe à espera da menina israelita. Porque, como as meninas, todas as mães à espera em casa e em agonia são palestinianas. As primeiras páginas não mentem: a menina israelita, já morta ou ainda sequestrada, não existe. Nunca existiu.

 

Este conflito não é, na sua essência, sobre território. É sobre esta menina. Não é um conflito imobiliário. Não é um conflito geográfico. Numa coisa os anti-sionistas (isto é, os anti-semitas, de esquerda e de direita, cada vez menos envergonhados) têm razão: este é um conflito sobre o direito. Não sobre o direito internacional, mas sobre o direito de existir. Sobre o direito, portanto, de que dependem todos os outros. Sobre a existência, o direito à existência, daquela menina nua que não existe. Os milhares (milhões?) que hoje gritam nas ruas “From the river to the sea”, não disfarçam já que é – sempre foi e sempre será – sobre o direito de existir. Quem viu o pogrom daquela manhã sabe que o 7 de Outubro não é apenas mais um episódio do longo conflito. Não é parte do conflito: é onde o conflito se parte. O 7 de Outubro não é mais um capítulo da história do conflito – é o instante, paradoxalmente sombrio e luminoso, crepuscular e amanhecente, em que todo o conflito se suspende, se confessa e expõe, de uma vez por todas, o terrível segredo da sua origem e perpetuação: se isto é um povo.


WHETHER THIS IS A PEOPLE (Portuguese text by Miguel Granja, English translation by Myrna Herzog)


Of the hundreds of territorial disputes currently taking place around the world, only the one involving Israel always appears, and not by chance, framed in legal terms. More than framed – reduced to, and trapped in, legal terms. In no other conflict or dispute is the legal question so central and invariable: the conflict in Kashmir, which involves India and Pakistan, is never qualified in terms of its legality: Kashmir is “disputed”. Full stop. There are no records, for example, of large demonstrations in London and Paris against the illegality of the Turkish occupation of northern Cyprus, and the Kurdish-Iraqi conflict does not arouse the slightest interest, whether legal or otherwise, in public or published opinion. If in most cases the spheres of law and geopolitics are totally distinct and autonomous, and analyzed based on the assumption of this distinction and autonomy, in the case of Israel they are practically merged until total indistinction. How we frame a conflict is also part of the conflict.

The current conflict in Ukraine allows for a timely comparison. Analytics of Ukraine's exercise of self-defense never include, on the part of the “experts”, recommendations to Zelensky on “proportionality” and lectures on the innocence of Russian civilians. José Milhazes, for example, is capable of going on the radio in the morning to argue that Ukraine is fighting a defensive war and, therefore, all means of defense it uses are legitimate against Russian aggression (“Ukraine has the right to defend itself with the same means that Russia employs”) – and at night be on television making the case that Israel, waging a defensive war against a terrorist organization that uses its own civilians as human shields and hospitals as centers of command (self-admitted), does not have the legitimacy to fully defend itself (“This Israeli offensive will awaken an anti-Israeli spirit in Arab countries and in some European capitals”).

Israel therefore has every right to fight a single war, which is at the same time a unique war: the war in which no one dies except Jews; in which no one suffers except Jews; in which no one is displaced or hospitalized except Jews. In which the attacked party has the primary responsibility to protect the aggressor more than the attacked party who is under their responsibility; in which Israel has more duties to protect the population of Gaza than the Hamas that governs it; in which Israel is obliged to preserve intact the hospitals, schools and mosques that Hamas traps and from which it attacks Israel. According to the current legal framework that governs these sensitive matters, the war that does not exist is the only war that Israel can fight for its existence. Israel has every right to fight an impossible war – and no other.

In the (always unique and isolated) case of Israel, the specialist in international relations, turned instant lawyer, suspends his task of understanding the world and activates his desire to transform it: there is no “analysis” (which is the designation that currently propaganda attributes to propaganda) that does not use expressions such as “international law”, “proportionality”, “war crimes”. Obviously, the use of these expressions, heavily crafted to paralyze understanding, is only directed at Israel and its actions, never at its aggressors and their aggressions. This hyper-juridification of the conflict is not, however, accidental. It is essential to its purpose, which aims above all at a double conditioning: (1) to condition Israel to absolute inaction – in practical terms, to capitulation – in the face of the aggressions of which it is a victim and (2) to condition the “analysts” to the choice between two schools: that of cowardice and that of indecency. In other words, either the moral equivalence between beheaded babies and baby beheaders (in musical terms, “Imagine there’s no heaven”) or the moral superiority of baby beheaders (in musical terms, “From the river to the sea”).

From the articulation of this double conditioning, it is possible to construct the widespread perception that everything that is done to Israel is legitimate, even if illegal (such as beheading of babies), and that everything that Israel does is illegal, even if legitimate (such as punishing the beheading of babies). Israel has every right to defend itself, obviously – as long as it doesn't defend itself. Because defending oneself is simultaneously a right and a crime: exercising the right is, ipso facto, committing the crime; The only way not to commit the crime is not to exercise the right. Wonderful Catch-22. It is law as a criminalization of the exercise of law itself. It is the law as criminalization of the very thing that the law has the function of ensuring. It is the right as the impossibility of exercising the right. The name of this splendidly Orwellian anti-law is “international law”.

When it affects Israel, international law – rarely specified and invariably distorted – constitutes the abolition of law itself. Insofar as it seeks to ban a single people and remove them from the family of peoples, thus acting as an instrument of legalized discrimination, “international law” is the Nuremberg Laws of nations. Israel is not a nation, it is the Untermensch of nations, it is the dhimmi of nations, a creature of an inferior class and prohibited, now as before, from defending itself: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris) . The act of throwing stones at Jews by Muslim children has roots long before the emergence of the current conflict. It constitutes, as Bernard Lewis says in The Jews of Islam (1984), an old phenomenon reported by several observers: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth offering to strike Mahommedan”. The “dhimmization” of Israel does not happen in a vacuum.

Decades of dehumanization of Israelis by the Western press have led to absolute moral numbness regarding the suffering on one side of the conflict. Dehumanization that persists, even after the pogrom of October 7th. Anyone who cares to survey the front pages of the Público newspaper dedicated to the conflict since October 8th will see that not once is Israeli suffering captured and transmitted. In Israel, which is nothing more than a grotesque military abstraction, there are no humans, only soldiers; there are no houses, only tanks; there are no dead people, just statistics. All the children shown, whether dead or terrified, are Palestinian. There is no Israeli Mater Dolorosa in this conflict: the entire Pietà is Palestinian. The burned and mutilated Israeli babies, the raped and paraded Israeli girls, the dead and humiliated Israeli elderly people never make the front page. They are not seen nor heard. It's as if they never died. It's as if they never even existed. It's as if they were just, once again, ash spit from the chimney of a Nazi crematorium and carried by the wind: “not even the dead will be safe”, Walter Benjamin warned not long ago.

It's a second death on top of the first. A new kidnapping to add to the old one. The lack of photos in the press is, in essence, not morally different from the new fashion that consists of tearing up and throwing away posters with photos of those kidnapped in Gaza. Jewish suffering cannot be seen or exposed in public. Under penalty of starting to ask ourselves Shylock's eternal question: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?”

Not even one photo of the hostages. Not even one photo of the dead babies. Not even one photo of the raped young women. If we compare this deliberate concealment with the famous photos from the war in Vietnam, we will have an idea, albeit vague, of the point to which our press has sunk. Exposing the Buddhist monk who self-immolates on a Saigon street (World Press Photo of the Year, 1963), or the shooting in the head of a Viet Cong suspect by a Vietnamese officer (World Press Photo of the Year, 1968), or the terrified girl who flees, completely naked, from an accidental napalm attack (World Press Photo of the Year, 1973), was to reveal to public opinion “the terror of war”. Where is the Israeli girl? The naked, terrified, kidnapped, raped, dead girl? She does not exist. She never existed. All the girls are Palestinian. At home, in agony, there is no mother waiting for the Israeli girl. Because, like the girls, all the mothers waiting at home in agony are Palestinian. The first pages don't lie: the Israeli girl, already dead or still kidnapped, doesn't exist. She never existed.

This conflict is not, in essence, about territory. It's about this girl. It's not a real estate conflict. It is not a geographic conflict. In one thing the anti-Zionists (that is, the anti-Semites, left and right, who are increasingly less ashamed) are right: this is a conflict over rights. Not about international law, but about the right to exist. On the right, therefore, on which all others depend. About the existence, the right to existence, of that naked girl who doesn't exist. The thousands (millions?) who today shout in the streets “From the river to the sea”, do not hide the fact that it is – always has been and always will be – about the right to exist. Anyone who saw the pogrom that morning knows that October 7th is not just another episode in the long conflict. It is not part of the conflict: it is where the conflict breaks out. The 7th of October is no longer a chapter in the history of the conflict – it is the moment, paradoxically dark and luminous, twilight and dawn, in which the entire conflict is suspended, confessed and exposed, once and for all, the terrible secret of its origin and perpetuation: whether this is a people.