Hoje vou abordar a literatura de viagem, um gênero literário que, segundo a Wikipedia, consiste geralmente em uma narrativa acerca das experiências, descobertas e reflexões de um viajante durante seu percurso. Eu mesmo gosto de escrever diários de viagem que você pode ler neste blog. Clique em viagens no menu do cabeçalho. O vídeo acima contém este mesmo texto, portanto em vez de ler você pode ouvir (ou fazer as duas coisas).
Talvez o maior autor de literatura de viagem do século XX e início do XXI seja Paul Theroux. Nascido nos Estados Unidos em 1941, desde jovem Theroux fez longas viagens solitárias que se transformaram em fascinantes livros. Atravessou a África, circundou o Mediterrâneo, percorreu a Ásia etc. Muito conhecido nos países anglo-saxônicos, no Brasil já não desfruta da mesma fama, mas teve alguns livros traduzidos aqui: O grande bazar ferroviário, Viajando de trem através da China, Até o fim do mundo, O safári da estrela negra, Trem fantasma para a estrela do Oriente e O Último Trem para a Zona Verde, este último traduzido por mim. Em um outro livro que também traduzi, O Tao da viagem, mas ainda não lançado, escreve Theroux:
Quando criança, sonhando em sair de casa e ir bem distante, a imagem em minha mente era de fuga — meu pequeno eu partindo sozinho. A palavra "viagem" não me ocorria, tampouco a palavra "transformação", que era meu desejo velado mas duradouro. Eu desejava encontrar um novo eu num lugar distante, e coisas novas por que me interessar. A importância de outros lugares era algo em que eu acreditava piamente. O outro lugar era onde eu queria estar. Jovem demais para ir, eu lia sobre outros lugares, imaginando minha liberdade. Os livros eram a minha estrada. E depois, quando cheguei à idade de ir, as estradas que percorri tornaram-se o tema obsessivo de meus próprios livros.
As narrativas de viagens são as mais antigas do mundo, as histórias que os viandantes contam às pessoas reunidas ao redor da fogueira após seu retorno de uma viagem. “Eis o que vi” — notícias do mundo maior; o bizarro, o estranho, o chocante, narrativas sobre animais ou sobre outras pessoas. “Eles são exatamente como nós!” ou “Eles não são nada parecidos conosco!” A história de um viajante possui sempre a natureza de uma reportagem. E é a origem da ficção narrativa também, o viajante animando um grupo modorrento com detalhes inventados, floreando a experiência. Foi como o primeiro romance em inglês foi escrito. Daniel Defoe baseou Robinson Crusoe na experiência real do náufrago Alexander Selkirk, embora aumentasse a história, transformando os 4,5 anos de Selkirk numa ilha remota do Pacífico em 28 anos numa ilha do Caribe, acrescentando Sexta-Feira, o canibal e o exotismo tropical.
Também Moby Dick foi baseado num naufrágio real, como a gente viu recentemente no filme No Coração do Mar.
Um dos livros mais fascinantes do Theroux é The Pillars of Hercules, os Pilares de Hércules, que é o nome que se dava na antiguidade ao Estreito de Gibraltar. É o relato de um grande tour pelo Mediterrâneo, percorrendo o sul da Europa, Oriente Médio e norte da África. Aqui está o mapa.
Uma passagem marcante do livro é quando ele aborda as touradas espanholas. Qualquer pessoa com certa sensibilidade acha as touradas, assim como as brigas de galos, uma covardia contra os animais, uma agressão, mas na Espanha constituem uma tradição cultural. A descrição que Theroux faz de uma tourada em The Pillars of Hercules não é nada lisonjeira:
Não há nada nas touradas exceto sangue – a previsão de sangue, o derramamento de sangue, e a morte brutalmente coreografada de um animal enfurecido que apenas um minuto atrás estava pinoteando e bufando cheio de vida.
Em 1973 Theroux fez uma grande viagem de trem pelo Leste europeu e Ásia, relatada em O grande bazar ferroviário. Naquela época Theroux tinha 33 anos. Este livro ainda não li, está na tal lista que seu eu chegar aos 120 anos espero cumprir. Depois daquela jornada, muita coisa mudou: a União Soviética entrou em colapso, as economias da China e Índia cresceram. Pois aos 66 anos, com o dobro da idade, Theroux repetiu o mesmo trajeto, resultando daí o Trem fantasma para a estrela do Oriente. Eu me senti viajando junto com o Theroux quando li este livro. Criei um verbete para ele na Wikipedia onde destaco as passagens mais interessantes. Vocês podem consultar.
Por exemplo:
Sobre a Romênia “O fedor e a desordem do Terceiro Mundo eram muito presentes em Bucareste. Os subúrbios pareciam deteriorados, as fazendas primitivas e enlameadas. A Romênia era mais um país de onde as pessoas fugiam, rumando sempre para o oeste.”
Turquia “Dizer que a cidade (Istambul) é linda chega a ser frívolo de tão óbvio, mas a vista das mesquitas e igrejas faz o coração disparar.” “Muito tempo atrás a Turquia parecia um país distante e exótico de homens carrancudos e mulheres enigmáticas, com telefones precários e estradas estreitas, dotado de uma cultura dramática, conflituosa. Agora tinha de tudo, fazia parte do mundo visível [...]”
Índia “Bem-vindo à Índia e à comprovação de que, como Borges escreveu certa vez, ‘a Índia é maior do que o mundo’.” “Num mundo em constante mudança, a Índia é excepcional. Todos comentam o grande salto indiano, a modernidade indiana, os milionários indianos. [...] Contudo, o país continuava existindo a seu modo desengonçado, com os defeitos e as precariedades à mostra, e o que parecia ser caos na Índia era na verdade um tipo de ordem, como o movimento furioso dos átomos.”
E assim vai. Fascinante, não acham?
Com mais de setenta anos, Theroux faz sua última viagem africana, da qual resulta O Último Trem para a Zona Verde, que eu traduzi. Sobre este livro só vou falar uma coisa: LEIAM. É duplamente bom: bem escrito e bem traduzido. Boa viagem.