Desde os tempos bíblicos, contrastam (na filosofia, na arte, na vida
das pessoas)
a visão de mundo otimista, "cor de rosa" (“O Senhor é o meu pastor, nada
me faltará” - Salmos 23) versus a cosmovisão
pessimista (“E proclamei mais felizes os mortos que já há
tempos faleceram do que os vivos que ainda existem. E, mais felizes
que ambos, aquele que ainda não nasceu, que ainda não experimentou
a malvadez que se pratica sob o sol” - Eclesiastes 4), com uma série de gradações intermediárias entre os dois extremos. O poeta Frederico Gomes, com
sua visão schopenhaueriana e obsessão pela
morte, inscreve-se neste segundo time.
Quanto a esta obsessão, o meu pensamento
pessoal é que, embora nosso aniquilamento pessoal nos assuste e
repugne, no fundo, no fundo, nenhum
ser humano em sã
consciência desejaria viver mil, dois mil anos, sem perspectiva de
interrupção do fluxo que nos prende a um corpo que a certa altura
começa, como um carro velho, a dar defeito. Como tudo que é bom
(doce de leite, por exemplo), a vida a
certa altura cansa ou enjoa.
Frederico Gomes é um poeta de formas fixas, tradicionais (embora a
métrica nem sempre seja cem por cento rigorosa); rimas originais,
algumas inusitadas, preciosas, ou mesmo toantes (espécie de rima que
poucos poetas dominam); e versos médios e longos, conquanto ocasionalmente
pratique o verso curto, como em “Nereidas & Neuras” à pág.
30 de seu mais recente livro de que trato aqui. Em suas poesias,
insere citações por vezes em outros idiomas (“neste mezzo del
cammin da tua vida”, em alusão a Dante, pág. 58), citações
eruditas às antiguidades greco-romanas tão distantes deste
admirável mundo tecnológico novo, e em meio a uma linguagem poética
elevada, sofisticada, mergulha por vezes no coloquial, no vulgar
(“Todos te lambem o saco” - pág. 17; “vejam só que baita
sacanagem” - pág. 42), no naturalismo (“Como os machos rastreiam
fêmeas no cio, / perseguindo-as pelo cheiro o dia inteiro [...]” -
pág. 156). E em meio ao pessimismo, às vezes Fred deixa aflorar um
poema pleno de lirismo, como “Pinturas” (ver abaixo). Em suma,
trata-se de um poeta de mil e um recursos.
Encontrei em seu último livro, Esse animal, o homem, uns
poucos erros gramaticais, sintoma de que, nesta pressa pós-moderna,
não se fazem mais revisões cuidadosas como outrora, por exemplo:
“Tu, que me lê” à pág. 93, “a morte lhes
arrastou” (verbo transitivo direto) à pág. 110, “só se via
as duas” (voz passiva sintética) à pág. 42, “Pois hei-nos”
(em vez de “eis-nos”) à pág. 112, “que elas contém”,
à pág. 172).
Mas não tenho dúvida de que Frederico Gomes se inscreve na
“sociedade dos poetas vivos” geniais, junto com Alexei Bueno e
Maria Thereza Noronha.
De seu Esse animal, o homem, publicado pela editora lusitana Rosmaninho (embora Fred seja um poeta brasileiro, nascido em Barra do Piraí e residente na “terceira” Tebas, a mineira – as outras são as cidades grega e egípcia antigas) selecionei, para compartilhar com você, estimado visitante deste blog, estes poemas:
Por quê? (pág. 17) a Haroldo Viegas in memoriam
Por que passas na rua com tal soberba, como se fosses o dono da vida? E olha-nos, oh com tamanha certeza, como se fôssemos meras formigas? Sim, diz-me: Por quê? Por quê? Iremos todos morrer.
Com tua testa larga, brilhante e calva, crês possuir tal e único talento, porém ganhar dinheiro já foi prova, alguma vez, de “bom” discernimento? Sim, diz-me: Por quê? Por quê? Iremos todos morrer.
Esposa, filhos, amigos, as posses – eis o farto reino a que te obrigas. Todos te lambem o saco. E se morres, da herança viverão como lombrigas. Sim, diz-me: Por quê? Por quê?
Pinturas (pág. 42, poema lírico) a Denise Albuquerque e Rosária Rent
Vi duas moças (Denise e Rosária)
conversando numa enorme sala.
Havia quadros de uma exposição expostos nos painéis do salão.
Mas diante de Rosária e Denise os quadros eram só um deslize
da beleza, pois só se via as duas pra lá e pra cá entre pinturas cruas.
Bem no finzinho do vernissage – vejam só que baita sacanagem –
as duas debandaram desta parte: restando no salão nenhuma arte.
Deparei no YouTube com um vídeo de Jeffrey Kaplan (554 mil inscritos) que declara que o artigo "Über Sinn und Bedeutung"("Sobre o Sentido e a Referência") publicado em 1892 pelo filósofo alemão Gottlob Frege foi "o mais importante da história da filosofia da linguagem". Por acaso debrucei-me sobre esse artigo nos meus tempos de curso de Filosofia no IFCS da UFRJ, quando fui aluno de lógica matemática do professor Paulo Alcoforado. Na época escrevi um artigo para ser publicado por uma revista, mas que acabou ficando inédito. Aqui está ele. Vamos ver se alguém descobre e lê. Você pode me contactar via escritorcarioca@yahoo.com.br. Estou no Facebook.
FREGE
E RUSSELL E O PROBLEMA DO SIGNIFICADO
Resumo: O artigo
analisa os problemas associados ao significado das palavras,
expressões e frases, à luz da teoria semântica, e as soluções
propostas pelos filósofos Gottlob Frege e Bertrand Russell,
pioneiros neste ramo de estudos.
Abstract: The
article analyzes the problems associated with the meaning of words,
expressions and sentences, in the light of semantic theory, and the
solutions proposed by philosophers Gottlob Frege and Bertrand
Russell, pioneers in this field of study.
Palavras-chave:
significado, semântica, teoria referencial.
O Problema do
Significado
Dentre as grandes
correntes da Filosofia da Linguagem destaca-se, por mais se
aproximar, a nosso ver, da concepção do senso comum, a chamada
Teoria Referencial. De fato, nada mais natural do que pensar que as
palavras, expressões e sentenças nomeiam esta ou aquela entidade.
No caso dos nomes próprios, isto é extremamente claro: “Pluto”
nomeia aquele cãozinho que lá está a latir. Nas palavras de
Alston:
A teoria referencial tem sido atraente para um grande número de
teóricos, porque parece fornecer uma resposta simples facilmente
assimilável às maneiras naturais de pensar acerca do problema do
significado. Parece a muitos que os nomes próprios possuem uma
estrutura semântica idealmente transparente. Aqui está a palavra
“Pluto”: ali está o cão nomeado por esta palavra. Tudo está
claramente exposto; nada há de escondido ou misterioso. O fato de
possuir o significado que possui constitui-se simplesmente do fato de
ser o nome daquele cão. É igualmente tentador e natural supor que
uma tal explicação possa ser dada para qualquer expressão
significativa. Pensa-se que toda expressão significativa nomeia isto
ou aquilo, ou ao menos designa algo numa relação de algum modo
similar à relação de nomear.”1
Partindo-se da
constatação de que as expressões da linguagem são dotadas de algo
que denominamos “significado”, pode-se levantar a seguinte
questão: em que consiste este algo, o significado de uma expressão?
Ora, dentro de uma
concepção referencial da linguagem, duas podem ser as respostas à
questão acima: (i) ou bem, o significado da expressão é assimilado
à entidade por ela nomeada, e neste caso estaríamos dentro de uma
teoria referencial de dois níveis; o significado de “Kepler”,
por exemplo, seria aquele indivíduo que nasceu em 1571, lecionou
matemática em Graz de 1594 a 1598, escreveu o Mysterium
Cosmographicum, onde se mostrou adepto do sistema copernicano...;
(ii) ou bem, o significado não se identifica, propriamente, com a
entidade nomeada pela expressão, mas se situa num domínio
intermediário entre a expressão e aquilo que ela nomeia; por
exemplo, o significado de “o mais brilhante dos astros noturnos”
seria, não exatamente o planeta Vênus, mas uma espécie de conexão
que associa a expressão “o mais brilhante dos astros noturnos”
ao planeta Vênus; e aqui estamos dentro de uma teoria referencial de
três níveis.
Duas grandes
dificuldades emergem numa teoria referencial de dois níveis, ou
teoria referencial mais ingênua (na terminologia de Alston) ou
teoria referencial stricto sensu, quais sejam: (i) o caso de
expressões distintas – por exemplo, “o mais brilhante dos astros
noturnos” e “o segundo planeta do sistema solar” – que, se
bem nomeiem a mesma entidade, possuem significados diferentes; (ii) o
caso de expressões – como “eu”, “aqui” etc. – que
possuem significado constante, porém nomeiam entidades distintas
conforme o contexto em que sejam proferidas.
Quanto a esta última
dificuldade, de fato, se assimilamos o significado de, digamos, “eu”,
àquilo que este termo nomeia, então teremos de ser levados a
admitir que tal termo possui um número indefinido de significados –
o que não é o caso. Já a primeira dificuldade, é patente que “o
mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do
sistema solar” possuem significados distintos, se bem que nomeiem a
mesma entidade, o planeta Vênus.
A Solução de Frege
Tais dificuldades não
ocorrem numa teoria semântica de três níveis, ou teoria
referencial menos ingênua, ou teoria do significado, cuja expressão
clássica é a teoria do sentido e da referência de Frege.2
Esta teoria se estrutura a partir de uma investigação acerca da
igualdade. “A igualdade desafia a reflexão dando origem a questões
que não são muito fáceis de responder”: com estas palavras
inicia Frege seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência”. Ele
constata que sentenças como
(1) O segundo planeta
do sistema solar é o mais brilhante dos astros noturnos
não são meramente analíticas como é
a sentença
(2) O segundo planeta
do sistema solar é o segundo planeta do sistema solar.
Pelo contrário, as
asserções (1) e (2) possuem valores cognitivos distintos. De fato,
a descoberta de que o mais brilhante dos astros noturnos é o segundo
planeta do sistema solar foi uma descoberta astronômica de grande
relevância. Pois bem, numa semântica de dois níveis, dois poderiam
ser os casos. Ou bem, a igualdade seria uma relação entre aquilo
que as expressões nomeiam, caso este em que dificilmente
encontraríamos critérios para distinguir, quanto ao valor
cognitivo, as asserções (1) e (2); ou bem, a igualdade seria uma
relação entre as próprias expressões, e em (1) estaríamos
arbitrariamente estipulando nomes diferentes para um mesmo objeto –
o que não é o que queremos.
Para dar conta do
problema da igualdade, Frege irá introduzir, como mediador entre o
que ele chama de “sinal” (Zeichen) e o que ele denomina de
“referência” (Bedeutung),3
um terceiro elemento, a saber, o sentido (Sinn), que seria
como que o “modo de apresentação” do referente.
Com a introdução
deste terceiro elemento, mediando o sinal e a referência, o problema
da igualdade fica assim resolvido: se bem que os sinais “o mais
brilhante dos astros noturnos”, “o segundo planeta do sistema
solar” e “a Estrela d’Alva” refiram-se ao mesmo objeto, o
planeta Vênus, tais expressões são maneiras distintas de
apresentar tal objeto.
Fica assim resolvida a
questão de expressões com significados diferentes, porém nomeando
uma mesma entidade. Também expressões como “eu”, “aqui”
etc. não mais oferecem dificuldade: o sentido de tais expressões é
constante, mas seus referta, variáveis.
Coloca-se agora o
problema de qual o status ontológico do sentido. Para Frege, o
sentido de uma expressão não se identifica à ideia que
temos quando proferimos ou ouvimos a expressão. Para dar uma ideia
clara da diferença entre sentido, ideia e referente,
Frege faz uma analogia com alguém que observe a lua através de um
telescópio. A própria lua pode ser comparada à referência; a
imagem real projetada pela lente no interior do telescópio, Frege a
compara ao sentido; finalmente, a imagem que se forma na retina do
observador, compara-se à ideia.
Frege irá portanto
admitir, além do domínio dos sinais e do domínio dos referta,
uma espécie de Universo atemporal e inespacial – o terceiro
domínio – habitado por sentidos ou, mais exatamente, por
pensamentos, que são os sentidos das sentenças. “O
pensamento que enunciamos no teorema de Pitágoras é intemporalmente
verdadeiro, independente do fato de alguém tomá-lo como verdadeiro.
[...] Ele não se torna verdadeiro a partir do momento de sua
descoberta mas, como um planeta, antes mesmo de alguém o ter visto,
esteve em interação com outros planetas.”4
Finalmente, em Frege,
praticamente todas as expressões são, de alguma forma, nomes de
entidades. Quanto a este aspecto, duas são as espécies de
expressões: (i) os nomes próprios, que podem ser simples
– Vênus, Kepler... – ou compostos – “o mais brilhante
dos astros noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das
órbitas planetárias” – e que têm por referência objetos;5
(ii) os nomes funcionais – “a raiz quadrada de 4”,
“casa” – que têm por referência conceitos, relações ou
funções.
Problemas na Teoria de
Frege
Uma teoria, como a de
Frege, em que expressões tais como “o mais brilhante dos astros
noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das órbitas
planetárias” etc. são encaradas como nomes próprios,6
conduz a terríveis dificuldades, como apontou Bertrand Russell,
quando se trata de expressões que não possuem referência – por
exemplo, “o atual rei do Brasil”, “a montanha de ouro”, “o
maior número natural” etc.
Vejamos o tratamento
que Frege dá a tais expressões. A posição de Frege é de que,
numa linguagem logicamente perfeita – isto é, uma linguagem
artificial destituída das imperfeições da linguagem corrente –
pressupõe-se que toda expressão que funcione como nome próprio
tenha uma referência. A carência de referência por parte de certos
nomes próprios pode facilmente servir como apoio para o “abuso
demagógico”: “‘A vontade do povo’ pode servir de exemplo a
este respeito, pois é fácil estabelecer que não há uma referência
universalmente aceita para esta expressão.” (S.R., pp. 22-3) Erros
na história da matemática – diz ainda Frege – originaram-se da
falta de referência de certas expressões. Observa o autor que mesmo
a linguagem simbólica da Análise não está de todo destituída de
tais imperfeições – é o caso da expressão “as séries
infinitas divergentes” (S.R., p. 22). É importante que, ao menos
na ciência, seja eliminada uma tal fonte de erros; e nos casos em
que nenhuma entidade possa ser atribuída como referência de uma
expressão – por exemplo, no caso das séries infinitas divergentes
– dever-se-á pelo menos estipular uma referência convencional, o
número zero (S.R., p. 22).
A atribuição de uma
referência convencional a nomes próprios compostos sem referência
acarreta a seguinte dificuldade: é uma verdade que
(1) Não existe a
montanha de ouro.
Ora, segundo Frege, “a
montanha de ouro” teria a mesma referência que “o número zero”.
Portanto, podemos substituir, em (1), essa primeira expressão por
esta segunda, o que dá:
(2) Não existe o
número zero,
sentença esta que, ao contrário de
(1), é inteiramente falsa.
Devemos portanto
rejeitar a atribuição de uma referência convencional às
expressões que nada nomeiam. Com isto, porém, surgem novas
dificuldades.
Frege admitiria que
ela, se bem que possua um sentido, não possui referência, pois, por
estarmos circunscritos ao domínio da ficção, o valor de verdade da
sentença não está aqui em jogo.
É possível que uma sentença como um todo tenha tão-somente
sentido, mas nenhuma referência? [...] A sentença “Ulisses
profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” tem obviamente
um sentido. Mas assim como é duvidoso que o nome “Ulisses”, que
aí ocorre, tenha uma referência, é também duvidoso que a sentença
inteira tenha uma.” (S.R., p. 10)
Todavia, a partir da
sentença “O Sol gira ao redor da Lua”, que é obviamente falsa,
podemos construir o seguinte par de sentenças, em que (1) é
verdadeira, e (2), falsa:
(1) A revolução do
Sol ao redor da Lua não existe;
(2) A revolução do
Sol ao redor da Lua existe.
Vemo-nos ante o
seguinte paradoxo:
(i) Aparentemente, a
expressão “a revolução do Sol ao redor da Lua” não possui
referência, posto que o Sol não gira ao redor da Lua;
(ii) Por outro lado,
quando uma sentença é verdadeira ou falsa, seu sujeito possui
necessariamente uma referência, pois de uma não-entidade não
se pode afirmar uma verdade ou falsidade. “Aquele que não admite
que o nome tenha uma referência não lhe pode afirmar nem negar um
predicado.” (S.R., p. 11)
Teremos portanto que
admitir que entidades tais como a revolução do Sol ao redor da
Lua, o atual rei do Brasil, a montanha de ouro,
etc. possuem alguma forma de existência. O próprio Russell, antes
da publicação de “Da Denotação”, admitia tal solução.”
“Os números, os deuses homéricos, as relações, as quimeras e os
espaços quadridimensionais todos têm ser, pois se eles não fossem
entidades de uma certa espécie, não poderíamos fazer proposições
acerca deles.”8
Ora, a admissão de
entidades tais como o atual rei do Brasil em nosso universo não
elimina as dificuldades na teoria de Frege, como procuraremos agora
demonstrar. De fato, seja a sentença:
(1) O atual rei do
Brasil é um astronauta.
Ela é obviamente
falsa, posto que, entre os astronautas, não encontramos nenhum que
seja atualmente rei do Brasil.
Seja agora a negativa
de (1), qual seja:
(2) O atual rei do
Brasil não é um astronauta.
Esta sentença não é
falsa, consoante a tábua da verdade da negação; tampouco é
verdadeira, pelos mesmos motivos que (1) não é. Teremos assim de
admitir um terceiro valor de verdade, que não é o verdadeiro ou o
falso, violando o princípio do terço excluso.9
A Solução de Russell
A solução de Russell
aos problemas acima abordados vão se constituir em sua famosa Teoria
das Descrições. O ponto central desta teoria é que expressões
como “o autor de Dom Casmurro”10
não são, ao contrário do que classicamente se advogou, nomes
próprios, como é “Machado de Assis”.11
Em outros termos, se
bem que a sentença:
(1) Machado de Assis
nasceu no Rio de Janeiro
seja uma sentença da forma
sujeito-predicado – e aqui a forma lógica está em concordância
com a forma gramatical – o mesmo não ocorre com:
(2) O autor de Dom
Casmurro nasceu no Rio de Janeiro.
Aqui, a forma
gramatical escamoteia a forma lógica da sentença, já que, embora
“o autor de Dom Casmurro” seja o sujeito gramatical, não
é verdadeiramente um sujeito, na acepção lógica deste termo.
Admitir que o seja, isto é, admitir que seja um nome próprio, como
faz Frege, acarreta todos aqueles problemas que abordamos: a
introdução, no universo, de coisas tais como montanhas de ouro, a
violação do princípio do terço excluso.
Como decorrência
disto, as sentenças em que ocorrem descrições são submetidas por
Russell à análise lógica.
Porém, antes de
examinarmos de que maneira Russell procede a esta análise, dois
pressupostos devem ser abordados.
Em primeiro lugar,
Russell pressupõe, em suas investigações linguísticas, uma
concepção diádica da linguagem. Diz ele:
Com relação ao que significamos por “significado”,12
darei algumas poucas ilustrações. Por exemplo, a palavra Sócrates
[...] significa um certo homem; a palavra “mortal” significa uma
certa qualidade; e a sentença “Sócrates e mortal” significa um
certo fato.13
A admissão de um
domínio de pensamentos atemporais e inespaciais não se coaduna com
seu “sentimento da realidade” “Em obediência ao sentimento de
realidade, insistiremos em que, na análise das proposições, nada
de irreal deva ser admitido”.14
Em segundo lugar, a
abordagem que Russell faz da linguagem vincula-se a um pressuposto
epistemológico. Para uma boa compreensão de tal pressuposto, porém,
devemos previamente explicitar as noções de componentes de uma
sentença e conhecimento direto.
A noção de
componentes de uma sentença é ambígua, em Russell. Por componentes
de uma sentença podemos entender, ou bem, (i) as próprias palavras
de que se compõe a sentença, ou bem, (ii) as contrapartidas
extralinguísticas de palavras. Deste modo, dada uma sentença, “A
ama B”, podemos considerar como sendo seus componentes (i) as
palavras “A”, “ama” e “B”, ou (ii) os particulares A
e B, e o conceito amar. Por ser esta segunda acepção
a mais corrente em Russell, será a que adotaremos.
O problema do
conhecimento direto é pela primeira vez abordado por Russell no “Da
Denotação”. Neste artigo, ele contrapõe acquaintance
(familiaridade) a knowledge about (conhecimento acerca). O
tema é retomado em várias de suas obras posteriores, e em
Misticismo e Lógica, o último capítulo é totalmente
consagrado ao que, agora, denomina knowledge by acquaintance
(a rigor, conhecimento por familiaridade, porém preferimos traduzir
tal expressão por “conhecimento direto”) e knowledge by
description (conhecimento por descrição).
O conhecimento direto
revela-nos a presença imediata do objeto. Assim, temos conhecimentos
direto de cores, ruídos, sabores, em suma, dos dados sensíveis. Tal
espécie de conhecimento não se limita, porém, ao conhecimento de
objetos particulares, mas engloba ainda os objetos universais:
conceitos, como o amarelo, e relações, como a semelhança
(M.L., pp. 232-6).
Já o conhecimento por
descrição envolve:
(i) que saibamos
existir um único objeto possuidor de determinada propriedade;
(ii) que não possuamos
conhecimento direto de tal objeto (M.L., p.237).
De Kepler, por exemplo
não podemos ter conhecimento direto, posto que ele não nos é
contemporâneo. No entanto, nosso conhecimento não se restringe ao
que nos é dado imediatamente, ou ao que pode ser evocado por nossa
memória. Podemos conhecer Kepler, portanto, como autor do Mysterium
Cosmographicum, ou o descobridor da forma elíptica das órbitas
planetárias, etc. O conhecimento por descrição, porém, não
envolve apenas objetos do passado; poderá envolver objetos futuros
(o centro de massa do sistema solar no primeiro instante do século
XXII), objetos de localização temporal indeterminável (o homem que
proferiu, em sua vida, o maior número de palavras), objetos de
existência pouco provável (o décimo milionésimo rei da
Inglaterra), ou mesmo um objeto do qual tenhamos conhecimento direto,
sem porém podermos afirmar ser ele o detentor da propriedade em
questão: o partido que obtiver o maior número de votos nas próximas
eleições parlamentares.
Toda a abordagem
russelliana da linguagem pressupõe o seguinte princípio: para
que uma sentença nos seja inteligível, devemos ter conhecimento
direto de cada um de seus componentes. Por exemplo, para uma
pessoa destituída de visão, seria ininteligível a sentença “o
verde simboliza a esperança”. Russell justifica este princípio
pela constatação de que “parece impossível acreditar que
possamos fazer um juízo [...] sem saber o que estamos julgando”15
Vimos que, quando
consideramos as descrições – à maneira de Frege – como nomes
próprios de objetos, somos forçados a admitir a existência de
entes tais como a montanha de ouro e, o que é grave,
deparar-nos-emos com casos em que é violado o princípio do texto
excluso. Por outro lado, considerar as descrições como nomes
próprios viola frontalmente o princípio epistemológico acima.
Realmente, se aceitamos que expressões como “o autor de Dom
Casmurro” possam funcionar como sujeitos lógicos de sentenças,
então o autor de Dom Casmurro será um componente de tais
sentenças, o que vai de encontro ao nosso princípio epistemológico,
já que deste grande escritor não podemos infelizmente ter
conhecimento direto.
Assim, pelas duas
razões acima abordadas – razões de cunho lógico e pressuposições
de caráter epistemológico – as sentenças onde ocorrem descrições
são submetidas à análise, a saber:
Toda sentença acerca
de um assim-e-assim (onde o assim-e-assim é uma descrição
definida) será interpretada como afirmando a satisfação ou não de
uma função sentencial.
Uma função
sentencial é uma expressão em que ocorrem uma ou mais
variáveis, ou que se torna uma sentença assim que as variáveis
sejam quantificadas (ou instanciadas). Um exemplo de função
sentencial é:
(1) x é um
unicórnio
onde “x” é uma variável,
que pode ser assim quantificada:
(2) Existe um x,
tal que x é um unicórnio;
(3) Qualquer que seja
x, x é um unicórnio.
Nas sentenças (2) e
(3) usaram-se, respectivamente, os quantificadores existencial
e universal. A sentença (2) afirma a satisfação de (1) para
ao menos um valor de x; a sentença (2) afirma a satisfação
de (1) para qualquer valor de x.
Assim, as sentenças
existenciais são analisadas como afirmando a satisfação de uma
função sentencial para um, e somente um, valor de x. Por
exemplo a sentença
O reino de Troia existe
é analisada como envolvendo duas
afirmações:
(1) Existe pelo menos
uma entidade que é o reino de Troia ou, em linguagem técnica,
existe um x, tal que x é o reino de Troia;
(2) No máximo uma
entidade é o reino de Troia ou, em linguagem técnica, qualquer que
seja y, se y é o reino de Troia, então y = x.
Sintetizando:
Existe um x tal
que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y
é o reino de Troia, y = x.
Sentenças em que se
atribuiu uma propriedade a um assim-e-assim envolvem, além da
atribuição de tal propriedade, a afirmação da existência do
assim-e-assim. A sentença
O reino de Troia foi
descoberto por Schliemann
é portanto analisada como envolvendo
as afirmações acima, e mais uma terceira afirmação, quais sejam:
(1) Existe pelo menos
uma entidade que é o reino de Troia, isto é, existe um x,
tal que x é o reino de Troia;
(2) No máximo uma
entidade é o reino de Troia, isto é, qualquer que seja y, se
y é o reino de Troia, estão y = x;
(3) Tal entidade foi
descoberta por Schliemann, ou, x foi descoberto por
Schliemann.
Sintetizando:
Existe um x tal
que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y
é o reino de Troia, então y = x, e x foi
descoberto por Schliemann.
Nossa dificuldade
acerca de sentenças existenciais cujo sujeito gramatical é uma
descrição sem referência fica assim resolvida: a sentença
A revolução do Sol ao
redor da Lua existe,
que é analisada como: existe um x
tal que x é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer
seja y, se y é a revolução do Sol ao redor da Lua,
então y = x, não mais afirma a existência da
revolução do Sol ao redor da Lua, pois de uma não-entidade nada de
falso pode ser afirmado; porém afirma que a função sentencial
x
é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer que seja y,
se y é a revolução do Sol ao redor da Lua então y =
x
é satisfeita por pelo menos um valor
de x, o que é uma inverdade. O mesmo raciocínio aplica-se,
mutatis mutandis, à negação da sentença acima.
Com a análise das
sentenças, também o problema da violação da lei do terço excluso
é superado. A sentença
O atual rei do Brasil é
careca,
analisada como
Existe um x
tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que seja y,
se y é o atual rei do Brasil, y = x, e x
é careca
será falsa em qualquer um dos casos
seguintes:
1. a função
proposicional “x é o atual rei do Brasil” não é
satisfeita;
2. a função
proposicional “se y é o atual rei do Brasil, y = x
não é satisfeita;
3. a função
proposicional “x é careca” não é satisfeita.
Em outras palavras,
nossa sentença será falsa se:
1. não existe nenhum
atual rei do Brasil; ou
2. existe mais de um
atual rei do Brasil; ou
3. existe um e somente
um atual rei do Brasil, porém ele não é careca.
Consequentemente, nossa
sentença é falsa, não porque o atual rei do Brasil não seja
careca, mas porque não existe o atual rei do Brasil.
Pois bem, consoante a
análise de Russell, a negação de nossa sentenças será:
É falso que existe um
x tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que
seja y, se y é o atual rei do Brasil, y = x,
e x é careca,
o que é evidentemente verdadeiro.
Assim, não mais se viola a lei do terço excluso.
Dificuldades de uma
Teoria Referencial Diádica
Várias dificuldades
emergem numa teoria referencial diádica, das quais duas, sugere-nos
W. Alston, chegariam a invalidar uma tal teoria: (1) o caso de
expressões (como “o mais brilhante astro noturno” e “o segundo
planeta do Sistema Solar”) que, se bem possuam idêntico refertum,
indubitavelmente possuem significados distintos, e (2) o caso de
expressões (como “eu”, “aqui”) que, se bem possuam um
significado constante, possuem variados referta, conforme o
contexto em que sejam enunciadas.
Se, por um lado, a
Teoria das Descrições foi extremamente feliz em lidar com
expressões que nada nomeiam, vejamos de que modo ela lidará com
estas duas dificuldades, e verifiquemos se elas realmente invalidam a
teoria de Russell.
A primeira dificuldade
pode ser assim recolocada. Dadas as expressões “o mais brilhante
dos astros noturnos” e “o segundo planeta do Sistema Solar”,
(i) dado que elas nomeiam o mesmo objeto, possuem idêntico
significado (já que, numa semântica diádica, significado =
referente). Ora (ii) se elas possuem idêntico significado, posso
substituir numa sentença uma pela outra, sem alterar a verdade ou a
falsidade da sentença, o que nem sempre ocorre, posto que,
admitindo-se que seja verdadeira a sentença
Fulano perguntou se o
mais brilhante dos planetas é o segundo planeta do sistema solar,
isto não acarreta necessariamente a
verdade de
Fulano perguntou se o
segundo planeta do sistema solar é o segundo planeta do sistema
solar.
Ora, na concepção de
Russell, as descrições não são expressões que nomeiam, portanto,
elas não possuem significado. As asserções (i) e (ii)
repousam sobre falsas premissas.
Em outros termos, se
bem que “brilhante” signifique um conceito e “sistema solar”
signifique um particular, a descrição “o mais brilhante astro
noturno do sistema solar” não possui significado, no sentido em
que “brilhante” e “sistema solar” possuem. Por isso, ela não
pode ser o sujeito lógico de uma sentença, e onde ocorre como
sujeito gramatical, requer-se uma análise que faça a descrição
desaparecer do sujeito. Ela será – conforme vimos – traduzida em
termos de um predicado, predicado este que, mediante a quantificação,
é relacionado a particulares do universo (no caso da quantificação
universal, a todos tais particulares; no caso da quantificação
existencial, a pelo menos um particular). Daí a introdução de
funções sentenciais em nossa análise.16
Quanto à segunda
dificuldade, a saber, o caso de palavras como “eu”, “aqui”
que, se bem possuam um significado único, nomeiam entidades as mais
diferentes, conforme o contexto em que são proferidas, devemos
observar o seguinte. Nas obras até aqui mencionadas, escritas entre
1905 (“Da Denotação”) e 1919 (Introdução à Filosofia
Matemática e “A Filosofia do Atomismo Lógico”), tais
palavras são consideradas como nomes próprios, sem que Russell se
aperceba dos problemas que tal colocação acarreta. O problema só é
realmente desenvolvido por Russell a partir do Inquiry into
Meaning and Truth, escrito em 1945. Nesta época, porém,
a teoria referencial diádica havia sido abandonada por Russell em
favor de uma teoria condutista (behaviorista), por não explicar,
segundo ele, o que vem a ser o significado. Em Meu Pensamento
Filosófico,17
– escreve ele: “Foi em 1918 [...] que primeiro me interessei na
definição de “significado”, e na relação da linguagem com os
fatos. Até então eu havia encarado a linguagem como “transparente”,
e nunca havia examinado em que consiste sua relação com o mundo
não-linguístico.
Na última parte do
trabalho, faremos um levantamento de como Russell discute – a
partir do Inquiry into Meaning and Truth – a questão
de tais palavras, limitando-nos porém ao que interessa estritamente
a uma teoria da referência.
Os Particulares
Egocêntricos
A questão do
significado de palavras como “isto”, “eu”, “aqui”,
“agora” – que Russell denomina particulares egocêntricos –
só vem a ser colocada em An Inquiry into Meaning and Truth18e, posteriormente, em O Conhecimento Humano.19
Em O Conhecimento
Humano, após definir “particulares egocêntricos” como “as
palavras cujo significado varia conforme o locutor e sua posição no
tempo e no espaço”, Russell reconhece que “entretanto, há
obviamente algum sentido em que tais palavras possuem um
significado constante”.
No Inquiry, após
observar que “todas as palavras egocêntricas podem ser definidas
em termos de ‘isto’”, diz ele: “A palavra ‘isto’ é uma
palavra que, em algum sentido, tem um significado constante”
(p.109).
Ainda no Inquiry,
duas hipóteses são levantadas: (i) ou bem, “isto” é um nome
próprio, ou bem, (ii) é uma descrição disfarçada.20
Em obras anteriores ao
Inquiry, palavras como “isto” eram consideradas como nomes
próprios. Por exemplo, em Misticismo e Lógica, Russell chega
a afirmar que “só há duas palavras que são a rigor nomes
próprios de particulares, a saber, ‘eu’ e ‘isto’ (p.246).
No Inquiry,
porém, Russell reconhece que, se queremos que “isto” tenha um
significado constante – e em Russell o significado de um termo
identifica-se com aquilo que ele designa –, então não poderá ser
tratado como um nome próprio.
Poder-se-á alegar que
tampouco palavras como “João” possuem um significado constante;
de fato, esta palavra nomeia grande número de pessoas. Entretanto, a
relação de “João” com estas pessoas é diferente da relação
dos particulares egocêntricos com os objetos por estes nomeados.
“João” nomeia diferentes pessoas, porém de maneira constante.
Uma pessoa que tenha sido batizada de “João” será assim chamada
por toda a sua vida. Já um particular egocêntrico como, por
exemplo, “você”, também pode nomear um número indefinido de
pessoas, porém apenas enquanto esta palavra esteja sendo empregada.
Ao dirigir-me a João, posso chamá-lo de “você”, porém assim
que cesso de empregar esta palavra, João não continua chamando-se
“você”.
O que se pode concluir
é que uma palavra como “João” possui significado
constante, porém ambíguo; já um particular egocêntrico como
“isto” ou “você”, se tratado como nome próprio, não possui
nenhum significado constante. A hipótese (i) deve ser descartada.
Examinemos agora a
segunda hipótese. Em obras anteriores ao Inquiry, Russell já
havia observado que, por exemplo, quando usamos a palavra “Sócrates”,
não se trata de um nome próprio, posto que não temos conhecimento
direto deste filósofo. “Quando usamos a palavra ‘Sócrates’,
estamos na verdade usando uma descrição.”21
O termo “Sócrates” seria, portanto, uma abreviação de uma
descrição tida em mente pelo seu usuário ou ouvinte, por exemplo,
“o mestre de Platão”, ou “o filósofo que bebeu a cicuta”,
ou ainda “a pessoa que os lógicos afirmam ser mortal”.22
Do
mesmo modo, o termo “Deus” seria uma descrição abreviada de “o
mais perfeito dos seres”.23
Não é implausível
pensar que, quando se usa um particular egocêntrico, trata-se de uma
descrição abreviada, disfarçada. No Inquiry, Russell sugere
que “isto” seja uma abreviação da descrição “o objeto da
atenção”, mas mostra a seguir que tal não é o caso, posto que
esta descrição, se bem que, por sua forma, seja uma descrição
definida, é ambígua, porque descreve todo e qualquer objeto que
alguma vez tenha sido objeto de atenção – do mesmo modo que “o
habitante de Londres” descreve toda e qualquer pessoa que habite,
ou tenha alguma vez habitado, Londres.
Em qualquer tentativa
de contornar esta ambiguidade, ou caímos em circularidade, ou novos
particulares egocêntricos são introduzidos no definiens e o
problema se desloca para ele. Se defino “isto” como “o objeto
deste ato de atenção” (admitindo-se que “isto” e “este”
tenham o mesmo significado), recaio no primeiro caso. Se o defino
como “o objeto de meu ato de atenção agora”, recaio no segundo.
A solução que Russell
dá, no Inquiry, a este problema envolve considerações de
cunho condutista, fugindo portanto do escopo de uma Teoria
Referencial.
Em O Conhecimento
Humano, o problema é colocado em termos de definição
ostensiva. “Definição ostensiva” é definida como “qualquer
processo pelo qual uma pessoa aprende a entender uma palavra por
meios outros que pelo uso de outras palavras”. O exemplo típico de
definição ostensiva é a aprendizagem da língua quando se é
criança.
Dentre os particulares
egocêntricos, Russell tomará “isto” como fundamental –
deixando claro que a escolha é arbitrária – e dirá que qualquer
outro particular egocêntrico poderá ser definido em termos de
“isto”. Por exemplo, “eu” será definido como “a pessoa que
presencia a isto”, e assim por diante. Russell procurará então
dar uma definição ostensiva de “isto”, a saber: “‘isto’
denota qualquer coisa que, no momento em que a palavra é usada,
ocupa o centro de atenção.”
Na verdade, não se
trata de uma definição ostensiva, já que envolve o uso de
palavras, mas uma explicação de como é possível a aprendizagem,
por definição ostensiva, do termo “isto”.
Se de fato “isto”
pode ser ostensivamente definido, então de alguma forma a Teoria
Referencial estará salva. Que palavras como “cavalo”,
“Corcovado”, “amarelo” são ostensivamente definíveis está
fora de qualquer dúvida. Se o mesmo ocorre com “isto”, eis um
problema que diz respeito à Psicologia da Aprendizagem.
NOTAS:
1
W. Alston, Filosofia da Linguagem, Zahar, p. 12.
2
G. Frege, “Sobre o Sentido e a Referência”, trad. bras. em
Littera, 5 (1972), pp. 102-118. Daqui em diante, faremos
menção a este artigo pela sigla S.R. Publicado pela primeira vez
sob o título “Über Sinn und Bedeutung” em Zeitschrift für
Philosophie und philosophische Kritik, NF, 100 (1892) pp.25-50.
3
O termo fregeano “Bedeutung”é difícil de
traduzir. Literalmente, tal termo significa “significado”,
porém, na acepção técnica em que Freire o emprega, não deve ser
entendido como tal, já que o que correntemente se entende por
“significado” identifica-se, na teoria de Frege, muito mais com
“Sinn” (sentido), e não com “Bedeutung”. Por
isso, o Prof. Paulo Alcoforado, em sua tradução do artigo de
Frege, preferiu seguir a solução de P. Geach e M. Black (orgs.),
Translations from the Philosophical Writings of G. Frege,
Oxford, 1952, que traduzem tal termo por reference
(referência).
5
Quanto às sentenças, Frege as considera como nomes próprios, quer
do objeto o Verdadeiro, quer do objeto o Falso. Ver “Sobre o
Sentido e a Referência”.
6
Frege denomina tais expressões “nomes próprios compostos”.
8
Bertrand Russell, The Principles of Mathematics, p. 449.
9
Ou princípio do terceiro excluído, segundo o qual, se uma sentença
não é verdadeira, sua negação o será, não existindo uma
terceira alternativa.
10
Tais expressões – que Frege denomina “nomes próprios
compostos” – são chamadas por Russell de descrições
definidas. Por uma descrição definida, entende Russell uma
frase da forma “o assim-e-assim” (the so-and-so). Em “A
Filosofia do Atomismo Lógico” (em Os Pensadores, volume. XLII,
Editora Abril. p. 111), Russell dá como exemplos de descrições
definidas: “o homem com a máscara de ferro”, “a última
pessoa que entrou nesta sala”, “o único inglês que ocupou a sé
papal”, “o número de habitantes de Londres”, “a soma de 43
e 34”, e chama a atenção para o fato de que o que faz com que
uma expressão seja uma descrição definida é unicamente sua
forma, independentemente de se realmente existe um objeto definido
descrito.
11
A rigor, “Machado de Assis” é uma descrição abreviada. Porém,
para fins de exposição, a trataremos como nome próprio,
procedimento este que o próprio Russell por vezes adota. O problema
das descrições abreviadas ou descrições disfarçadas será
retomado no segmento final deste trabalho, quando tratarmos dos
egocêntricos particulares.
12
Em “Da Denotação” (em Os Pensadores, volume. XLII), nos
trechos em que discute a teoria de Frege, Russell usa “significado”
(meaning) também como tradução do termo fregeano “Sinn”
(sentido).
O escritor judeu Scholem Rabinovitch, mais conhecido pelo nom de
plume Scholem Aleichem, nasceu na
Ucrânia e se tornou um escritor popular entre as comunidades
judaicas da Europa Oriental falantes do dialeto ídiche, antes de
emigrar para os Estados Unidos, destino de milhões de judeus daquela
região fugindo da pobreza, preconceito e perseguição. Ele é um dos três grandes escritores clássicos da língua iídiche, junto com Peretz e Mêndele.
Seu projeto era escrever para o grande público de judeus simples, na
maioria pobres, habitantes do stetl (vilarejo) do leste europeu
no final do século XIX e início do século XX. Para isso, valeu-se
da realidade quotidiana do stetl, de seus tipos
característicos – o rabino, o chantre, o marido suando para prover
o pão de cada dia, as crianças irrequietas presas àquele mundinho
limitado, a mulher nervosa com a sobrecarga das tarefas domésticas,
o caixeiro viajante, Tevye, o leiteiro (ou Teive, ou ainda Tobias,
personagem celebrizado no já citado O Violinista no Telhado),
o ingênuo e trapalhão Menahem-Mendl (ou Menahem-Mêndel) de
Yehupetz, que tenta enriquecer metendo-se em todo tipo de negócio,
mas sem êxito, etc.
Um falante do português poderá começar a se familiarizar com a
literatura de Scholem Aleichem através do livro A Paz Seja
Convosco, coletânea de contos muito bem traduzidos que integra a
Coleção Judaica, o primeiro grande projeto editorial da Editora
Perspectiva, organizada por J. Guinsburg e publicada originalmente em 1966. Embora esgotado no site
da editora, o livro está à venda na Estante Virtual. Outras obras
do autor traduzidas para o vernáculo: são Stempenyu: um romance
judaicoe Tévye, o leiteiro. Da coletânea de Guinsburg selecionei o conto Três Cabecinhas abaixo. Leia mais sobre Scholem Aleihem no meu artigo UM EXPOENTE DA LITERATURA ÍDICHE: SCHOLEM RABINOVITCH, MAIS CONHECIDOCOMO SHOLEM ALEICHEM.
Se a pena do escritor fosse um pincel de pintor, ou pelo menos um aparelho fotográfico, eu lhes ofereceria, amigos, como presente de Schavuot, um quadro, um grupo raro: três tenras, bonitas e encantadoras cabecinhas de três pobres, descalças e esfarrapadas crianças judias. As três cabecinhas são morenas, de cabelinhos crespos e olhinhos graúdos, ardentes, luminosos, que fitam a gente cheios de espanto, como que perguntando ao mundo: "Por quê?" E fica-se olhando para elas, tomado de admiração, e a gente sente-se culpada perante elas, como se houvesse cometido um pecado, como se tivesse realmente culpa de tê-las criado – criado mais três seres supérfluos neste mundo!
As três lindas cabecinhas pertencem a Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, dois irmãos e uma irmāzinha menor. Abramtchik e Moiseitchik, foi o pai, Peissi, o cartoneiro, quem lhes esticou assim o nome à moda russa. E se não tivesse vergonha da mulher, e não fosse tamanho pobretão, modificaria também o seu próprio nome, e de Peissi, o encadernador, viraria "Petia, perepliotchik". Mas, como sente certo receio de sua mulher, Pessi, e como, de vós não seja dito!, é um grande pobretão, ficou por ora com o velho nome de Peissi, o encadernador, até que um dia cheguem os bons tempos, aqueles tempos felizes quando tudo há de mudar, como diz August Bebel, Karl Marx, e como diz toda a gente boa e inteligente. Então... oh! então tudo será diferente... Mas, enquanto não chegam tais tempos felizes, é preciso permanecer de pé desde o amanhecer até bem tarde da noite, cortando papelão e colando caixas, invólucros... E o cartoneiro Peissi passa de pé o dia inteiro, corta papelão, cola caixas e cantarola neste ínterim velhas e novas cançonetas judias e não-judias, na maioria triste-alegres, com refrões triste-alegres.
Se ao menos você parasse de cantar essas cantigas de goi! – ralha a mulher. – Onde se viu uma pessoa apaixonar-se desse jeito pelos goim! Desde que viemos para a cidade grande, virou goi de uma vez!
Os três Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke nasceram e cresceram no mesmo canto, entre a parede e o fogão. Os três veem todos os dias à sua frente sempre o mesmo: o pai alegre, que corta papelão, cola caixas e trauteia cantigas; e a mãe sempre preocupada, acabada, que cozinha, assa, varre, limpa e nunca consegue dar conta do serviço. E ambos vivem eternamente atarefados, a mãe com o fogão, o pai com as caixas de papelão. Para que tanta caixa? Quem é que precisa de tantas caixas? Será que o mundo inteiro está cheio de caixas? Assim pensam as três lindas cabecinhas e não enxergam a hora em que o pai apronte muitas, muitas caixas. Então êle as levará na cabeça e nos braços para o mercado, umas mil caixas, e voltará para casa sem as caixas, mas com dinheiro para a mãe, e com pãezinhos, rosquinhas e doces para as crianças... Ah! que pai bom é o deles, um homem de ouro! A mãe também é boa, mas é brava: apanha-se dela uma palmada, um safanão, um puxão de orelha. Ela não gosta de desordem em casa. Não quer que as crianças brinquem de "papai-mamãe", que Abramtchik recorte as aparas de papelão, que Moiseitchik furte cola do pai, que Dvoirke faça bolinhos de lama... A mãe deseja que as crianças fiquem quietas, estáticas. A mãe não sabe, segundo parece, que as cabecinhas infantis trabalham o tempo todo, que as almas juvenis forcejam, forcejam, forcejam... Para onde? Para fora! Para a luz! Para a janela! Para a janela!
Ao todo uma só janela. Um pedacinho de janela. E as três cabecinhas lutam por essa única janelinha. E o que se vê atrás dela? Um muro. Um muro alto, largo, cinzento, úmido. Sempre, eternamente úmido. Até mesmo no verão! Será que o sol aparece aqui? É claro que o sol aparece às vezes por aqui. Quer dizer, não é bem o sol mesmo, mas um reflexo do sol. E então é uma festa. As três lindas cabecinhas apoiam-se no pedaço de janela, olham para cima, o mais que podem, e veem uma longa faixa, estreita e azul, como uma comprida fita azul.
– Oh! estão vendo, crianças? Isto é céu.
Assim diz Abramtchik. Abramtchik sabe. Abramtchik frequenta a escola. Já conhece o alfabeto. O heder, na verdade, não fica muito longe, a casa adiante, isto é, a porta pegada. Ah! que histórias maravilhosas Abramtchik traz da escola! Abramtchik jura que viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma chaminé, altíssima, com fumaça subindo da chaminé... Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma máquina que funciona sem mãos. Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, um carro que corre sozinho, sem cavalos. E muitos outros milagres Abramtchik conta da escola. E ele jura, como sua mãe costuma jurar: "Que assim possa ver tudo o que é bom!"... Moiseitchik e Dvoirke o escutam, suspiram e o invejam, porque ele sabe tudo, tudo!
Por exemplo, Abramtchik sabe que uma árvore cresce. É verdade que ele, como todos os outros, nunca viu uma árvore crescendo. Na sua rua não existem árvores. Não existem. Mas ele sabe (ouviu na escola) que na árvore crescem frutas, e é por isso que se recita, sobre uma fruta, a oração de graças ao "Criador das árvores de frutas". Abramtchik sabe (que é que ele não sabe!) que a batata, ou, por exemplo, os pepinos, ou a cebola ou o alho crescem na terra, e é por isso que ao comê-los a gente recita uma oração de graças ao "Criador dos frutos da terra". Abramtchik sabe tudo! Só não sabe onde e como tudo isso cresce, porque ele, como os outros, nunca viu uma árvore viva, porque na sua rua não há campo, nem jardim, nem árvores, nem sequer uma graminha – não há nada! Nada! Na sua rua existem muros enormes, paredes cinzentas, altas chaminés, das quais não para de subir fumaça, e uma porção de janelinhas em cada uma das enormes paredes, milhares, milhares de janelinhas, e máquinas que funcionam sem mãos, e carros que andam sem cavalos e nada mais! Nada!
Mesmo um passarinho é raro ver aqui. Às vezes um pardal transviado aparece por ali, cinzento como o muro cinzento, dá uma bicada ou duas nas pedras cinzentas e levanta voo... Quanto a aves maiores, veem às vezes, no sábado, um quarto de galinha, com uma perninha pálida e esticada... Quantas pernas tem uma ave? Quatro, naturalmente! Como um cavalo! Assim sentencia Abramtchik, o mais velho, e Abramtchik sabe de tudo!... De vez em quando, a mãe traz da feira uma cabecinha de galinha, de olhos arregalados, revestidos de uma película esbranquiçada. "Está morta" diz o mais velho. Abramtchik, e as três cabecinhas se fitam com seus grandes olhos negros e suspiram. Nascidos e criados na cidade grande, no grande muro, no grande aperto, pobreza e miséria, as três cabecinhas jamais tiveram oportunidade de ver à sua frente vivo, nem um pássaro, nem um bicho, nem um animal doméstico, além do gato. Um gato eles têm, um gato de verdade vivo, um gato cinzento como o grande muro cinzento e úmido. Esse gato é a sua maior alegria. Com esse gato brincam horas a fio, amarram-lhe um lenço na cabeça, chamam-no de "comadre", e riem às gargalhadas, riem sem parar! Mas, se a mãe os apanha, cada um leva o seu quinhão um recebe uma palmada, outro um safanão, o terceiro um puxão de orelha. As crianças se refugiam no seu cantinho, atrás do fogão. O mais velho, Abramtchik, conta alguma coisa, e os menores, Moiseitchik e Dvoirke, escutam. Fitam o irmão mais velho com grandes olhos e escutam. Abramtchik diz que a mamãe tem razão; Abramtchik diz que não se deve brincar com um gato, porque o gato é um animal impuro e um demônio. Tudo Abramtchik sabe, tudo! Será que existe alguma coisa no mundo que Abramtchik não saiba?
Abramtchik sabe tudo. Abramtchik sabe que existe uma terra, uma terra muito, muito distante, que se chama América. Lá, naquela América, eles têm muitos parentes e conhecidos. Lá, naquela América, os judeus, benza-os Deus, têm uma vida alegre e boa. Para lá, para aquela América, eles irão, se Deus quiser, no ano que vem, assim que receberem de lá as passagens marítimas. Sem passagem não se pode ir para a América, porque há um mar e, no mar, ventos tempestuosos e ondas que é um pavor... Tudo o Abramtchik sabe!
Tudo! Até mesmo o que acontece no outro mundo. Éle sabe, por exemplo, que no outro mundo existe o Paraíso... para judeus, naturalmente. E no Paraíso crescem árvores, muitas, com os frutos mais lindos. Lá correm rios de azeite. Brilhantes e diamantes rolam pelas ruas. É só abaixar-se e pegá-los e entupir os bolsos. E judeus virtuosos passam lá dia e noite, estudando e deliciando-se com a Presença Divina.
Assim lhes fala Abramtchik. E os olhinhos de Moiseitchik e Dvoirke fulguram, e êles invejam o irmão mais velho, que sabe tudo. Tudo êle sabe! Até o que acontece no céu. Abramtchik jura que duas vezes por ano: na noite de Hoschana Rabá e na noite de Pentecostes, o céu se parte. É verdade que ele mesmo nunca viu o céu se partindo, porque lá onde moram não há céu. Mas os seus companheiros de escola viram. Eles juram que viram com os próprios olhos, possam assim ver tudo o que é bom. E não iriam jurar por uma mentira. Não se pode jurar por uma mentira. É pena que na sua rua não exista céu. Existe apenas uma estreita faixa azul, como uma longa fita azul. O que se pode ver num pedacinho de céu tão pequeno, além de duas ou três estrelinhas e um pálido clarão da lua?... E para convencer o irmãozinho menor, Moiseitchik, e a irmãzinha Dvoirke, de que o céu de fato se parte, Abramtchik corre para a mãe e começa a puxá-la pela saia:
– Mamãe, não é verdade que hoje, véspera de Schavuot, o céu vai partir-se?
– Sua cabeça é que eu vou partir!
Mal sucedido junto à mãe, Abramtchik espera pela volta do pai. O pai foi ao mercado, com todo um tesouro de caixas.
– Como é, crianças, vamos ver quem adivinha o que o pai vai nos trazer do mercado hoje? –pergunta Abramtchik, e as crianças tentam, adivinhar o que o pai vai lhes trazer de presente. Contam pelos dedos tudo o que um olho humano é capaz de distinguir e o que o coração humano pode almejar: pãezinhos doces, e rosquinhas, e confeitos mas ninguém conseguiu acertar. E vocês, leitores, receio que tampouco o conseguirão. O cartoneiro Peissi desta vez não trouxe do mercado nem pãezinhos, nem rosquinhas, nem mesmo doces. Ele trouxe capim, sim, um feixe de capim, um capim estranho, comprido, verde, cheiroso.
E as três lindas cabecinhas, Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, rodearam o pai.
– Papai, o que é isso, isso aqui?
– Isso é verdura.
– O que quer dizer isso, verdura?
– Verdura para a festa. Na festa de Pentecostes os judeus precisam ter verdura em casa!
– E onde é que se arranja isso, pai?
– Onde se arranja? Hum... no mercado... compra-se no mercado...
Assim responde o pai, espalhando o capim verde e cheiroso pelo aposento recém-varrido. Ele está todo contente com êsse verdor e com o cheiro gostoso, e diz para a mamãe, alegremen-te, como é seu costume!
– Pessi, boas festas para você!
– Parabéns! Como se me faltasse lixo! Esses bastardozinhos seus vão ter o que sujar! –responde a mãe, em tom aborrecido, como sempre, e, como sempre, mimoseia as crianças.. safanão para um, puxão de orelha para outro, palmada para a terceira. Que mãe esquisita, a deles! Nunca está satisfeita, sempre carrancuda, sempre preocupada, exatamente o oposto do pai!
E as três lindas cabecinhas olham para a mãe, olham para o pai, olham uma para a outra. E quando pai e mãe viram as costas, todas as três no chão, esfregam o rosto no capim cheiroso, beijam o capim cheiroso que se chama "verdura", e que os judeus precisam ter para a festa, e que se compra no mercado...
Tudo se pode conseguir no mercado, até verdura. E tudo o pai lhes compra. De tudo os judeus precisam e tudo os judeus têm. Até verdura! Até verdura!...