CINCO DIAS EM SÃO PAULO: IMPRESSÕES, ATRAÇÕES, DICAS & PASSEIOS

"Quando não se tem dinheiro pra ir a NY, cabe uma visita a SP." 
Jacques B. Gros


A São Paulo já fui dezenas, senão mais de uma centena de vezes quando criança, adolescente e depois adulto para visitar vovó e titia, a serviço pela RFFSA (foi lá a implantação pioneira do SIAPES), para fazer a "corte" à minha atual esposa, ao casamento do meu irmão que se tornou paulistano. Mas desta vez quis ir diferente. Quis ir a Sampa como se vai a Paris ou Londres, como turista, ficando em hotel, cumprindo uma programação de visitas a pontos turísticos. Como faço quando viajo à Europa, pesquisamos as atrações na Internet: endereços, horários. Procurei metrôs mais próximos (a fama dos engarrafamentos paulistanos me levou a evitar deslocamentos por terra) e, quando não tão próximos assim, estudei no Google Maps (usando por vezes o Street View) rotas a pé, pois é caminhando que se conhece e aprecia realmente uma cidade. Do rio a Sampa a clássica viagem de ônibus dos velhos tempos. Como faço na Europa nos últimos anos, hotel budget da Rede Accor perto de uma estação de metrô: Ibis Budget, Rua da Consolação, 2303 ("Excelente relação custo/benefício, hotel magnificamente situado na região da Consolação/Paulista e ainda por cima perto do metrô, o que numa cidade famosa pelos engarrafamentos como Sampa é fundamental!", escrevi no Trip Advisor). Seis noites a 1054 reais = 176 reais/dia = 51 euros/dia, igual na Europa. 


RESUMO DA PROGRAMAÇÃO

Terça-feira, 7 de julho: VIAGEM

Quarta-feira, 8 de julho
·    Museu da Imigração - Rua Visconde de Parnaíba, 1316 - pertinho metrô Brás - 9 às 17 - 6 reais
·    Museu da Casa Guilherme de Almeida - R. Macapá, 187 - Perdizes - 1,2 km do metrô Hospital das Clínicas  10 às 18 - ver também Santuário na Av. Dr. Arnaldo, 1832

Quinta-feira, 9 de julho
·    Teatro Municipal (metrô República) - 11h, 15h e 17h (inscrições às 10 horas)
·  Edifício Banespa - Rua João Brícola, 24 - 10h às 15h (estava fechado para manutenções)
·     Terraço Itália - Avenida Ipiranga, 344 - visita grátis 15h às 16h
·  Museu Histórico da Imigração Japonesa - Rua São Joaquim, 381 - Liberdade (metrô São Joaquim) - 13:30h - 17:30h

Sexta-feira, 10 de julho
·     Cemitério da Consolação - 9.30 - Estação Paulista (visita previamente agendada pela Internet)
·       MASP
·       Casa das Rosas - Av. Paulista, 37 - 10-22h

Sábado
·      Beco do Batman - Rua Gonçalo Afonso e Rua Medeiros de Albuquerque – Vila Madalena - metrô Vila Madalena - (andar 1,5 km: Rua João Moura - Rua Abegoaria - Rua Gerard David - Rua Medeiros de Albuquerque - ver Google Maps); dali ir a pé à
·       Feira Benedito Calixto (sábado de 9 às 19h)

Domingo
·     Fundação Ema Klabin - Rua Portugal, 43 - Jardim Europa - tel. 3062 5245 (ligar para saber se está aberto; quando fomos, não estava) - 3,2 km do metrô Trianon Masp - descer Alameda Casa Branca, pegar Rua Bolívia à direita, atravessar Praça América, prosseguir pela Rua Peru, pegar a Rua Colômbia à esquerda até a Rua Portugal (pertinho fica o Museu da Imagem e do Som e na Rua Colômbia passa o ônibus 179 para o Anhangabaú e outros locais) - 14 às 17
·      Igreja N.S. do Brasil - Praça de mesmo nome, pertinho da Fundação.

Segunda-feira - VOLTA

DIÁRIO DA VIAGEM
Quarta-feira, 8 de julho

Teatro Municipal
O Teatro Municipal é mais ou menos da mesma época do carioca (1911 versus 1909 e, como este e tantos outros mundo afora, inspira-se na ópera Garnier, embora o fausto da casa de ópera parisiense seja inigualável. Enquanto o Municipal carioca foi construído como parte da modernização da Capital Federal, o paulistano foi bancado pelos barões do café e em termos de luxo e esplendor não fica muito atrás. Destaque para o salão nobre, os elementos art nouveau inexistentes na versão carioca e o estofamento vermelho na plateia e balcão nobre que lhe dá um aspecto semelhante ao de Paris.


Estofamento vermelho

Banespa

O Edifício Banespa está com as visitas ao terraço temporariamente suspensa devido à manutenção, mas valeu a pena a ida pelas fotos embaixo sob a garoa paulista (que chove mas não molha, em momento algum sentimos precisão de abrir o guarda-chuva) e por uma grata descoberta: a tradicional doçaria portuguesa Casa Mathilde que apregoa existir desde 1850, mas que na verdade surgiu em terras portuguesas e não sei como nem quando veio parar em Sampa (chegando em casa procurarei na Internet).




Gosto de dizer que Sampa é uma cidade pujante. Um formigueiro humano. Da banca de jornais, passando pelo sanduíche de mortadela do Mercado Municipal às estações de metrô, tudo é descomunal. Além disso, os balconistas não ficam de papo nem atendem com ar de preguiça (como sói acontecer no Rio), os ônibus andam na sua pista e não ficam ziguezagueando. Os carros param na faixa para os pedestres atravessarem, o espírito é realmente de trabalho e ganhar dinheiro e comprar seu carro (a demagogia e populismo petistas aqui não têm vez).


Em todas as metrópoles o visitante procura a visão do alto: do Corcovado, da Torre Eiffel, da Saint Paul. Com o Banespão fechado, resta o Terraço Itália. Restaurante caro e sofisticado, mas das 15 às 16 o terraço e aberto para visitas gratuitas dos menos abonados. Lá fomos nós. Impressionante o mar de prédios que se descortina do alto (42o andar). Prédios por todos os lados. Uma única área verde maior. A vida urbana levada ao paroxismo.



O Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, com três andares de exposição no 7o, 8o e 9o andares de um prédio, dá uma ideia (para quem estiver interessado) da imigração japonesa para nossas terras desde seus primórdios, no final do século XIX, que tantas contribuições trouxe a agricultura, fruticultura, floricultura e outras culturas (bem como gastronomia) de nosso país. Afinal São Paulo abriga a segunda maior colônia japonesa fora do Japão, superada apenas por San Francisco (ouvi dizer certa vez, se estou errado me corrijam). Fim de tarde, jantar chinês no bairro japonês da Liberdade, o clássico frango xadrez com amendoins e legumes.

Clássico da culinária chinesa

Quinta-feira, 9 de julho

Feriado municipal, dia da Revolução Constitucionalista de 1932. Primeira parada: Estação Brás, rumo ao Museu da Imigração. Pega-se a saída do metrô que dá para a via férrea (Rua Domingos Paiva - ver Google Maps), pega-se a direita e anda-se uns cem metros, atravessa-se uma velha passarela de ferro sobre a linha do trem e do lado de lá surge o Museu, instalado na antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, construída de 1886 a 1888, onde os recém-chegados eram recebidos e acolhidos antes de prosseguirem rumo aos seus novos locais de trabalho (geralmente vinham com uma carta de chamada de um parente já aqui radicado ou com um contrato de trabalho na lavoura, cafeeira muitas vezes. (NOTA: Aos sábados, domingos e em alguns feriados, de hora em hora entre 11 e 16, pode-se fazer por 15 ou 20 reais o passeio no Trem Cultural dos Imigrantes, pertinho do Museu, mas que nada tem a ver com ele.) 


Museu da Imigração

O Museu, ao contrário do da Imigração Japonesa, tradicional, segue um conceito interativo, multimídia, com projeções, instalações, depoimentos, vídeos (como o da língua portuguesa, que visitamos em viagem anterior). A imigração para o Brasil, conquanto não atingisse as dimensões daquela para os EUA (3,4 milhões versus 35 milhões no período 1820-1914), foi importante para o país, contribuindo para nossa formação cultural, culinária, paisagem humana, sem falar na criação de bairros étnicos inteiros, ou mesmo cidades e regiões.

 Exposição "Cartas de Chamada de Atenção" com depoimentos de imigrantes africanos recentes

Após um café da manhã no Starbucks — ao sair de manhã a gente come uma barrinha de cereais e só toma o café da manhã na hora do almoço, come uma guloseima no meio da tarde e de noite vai jantar  nossa próxima parada foi a estação de metrô Hospital das Clínicas, de onde caminhamos pouco mais de um km até o Museu Casa Guilherme de Almeida (Rua Macapá, 187, Perdizes: siga pela Av. Dr. Arnaldo em frente ao cemitério, dobre à direita na Rua Cardoso de Almeida, depois pegue a Macapá - ver Google Maps). Feliz coincidência visitar, no dia da Revolução Constitucionalista, a casa de um personagem que aderiu com tanto entusiasmo a esse movimento paulista pela volta à normalidade constitucional. 


Museu Casa Guilherme de Almeida

De Guilherme eu já sabia que traduziu uma seleção das Flores do Mal (livro que possuo) e o Max und Moritz de Wilhelm Busch, mas na visita guiada à sua casa nos surpreendemos com sua profusa atuação como jornalista, intelectual e ativista pro-Sampa (é dele uma tradução do clássico If de Kipling). Com a morte de Guilherme a viúva, Baby, vendeu a casa, moderna, de 1956, ao Estado, o que proporcionou a nós, a plebe ignara, a rara oportunidade de conhecer uma bela residência de um bairro nobre paulistano, pois nas outras casas de mesmo naipe ninguém nos convidará a entrar. (Sobre sua casa o autor escreveu a deliciosa crônica "A Casa da Colina" que você pode ler neste blog clicando aqui.)

De lá descemos a Rua Almirante Pereira Guimarães e Avenida Arnolfo Azevedo (ver Google Maps) até o Pacaembu, quase sem ver vivalma nas ruas pois paulistano só anda de carro, e em frente ao velho estádio - serendipity - aficionados expunham carros vintage, entre eles muitos Fuscas. 


Dodge Charger R/T em frente ao Pacaembu

No estádio fica o Museu do Futebol, que não visitamos, mas entrei um pouquinho dentro do estádio. Depois subimos uma das ruas colina acima rumo à Angélica, caminho que eu fazia amiúde na adolescência quando visitava a vovó, que morava na Angélica, e ia passear no Pacaembu.

Pacaembu

Descanso no hotel e sanduíche imenso na Bella Paulista (peça só um, é enorme, dá para dois) e um rolê pela vida noturna da Augusta e Paulista.

Sexta-feira, 10 de julho

As nove e meia eu havia agendado uma visita guiada ao Cemitério da Consolação, mas ao chegarmos na Administração a funcionária fez cara de espanto e depois saiu-se com a história de que a pessoa que nos mostraria o cemitério teve um "problema de família muito sério" e não veio trabalhar, embora o fato de que ontem foi feriado e hoje é sexta me fez desconfiar de que o motivo não foi bem esse. Mas encontramos o grupo do Sesc que estava ontem na casa do Guilherme de Almeida e pegamos carona no final da visita guiada deles. Grandes personagens da política e intelectualidade paulistas repousam lá, e a administração fornece um guia de visitação, algo que o São João Batista até hoje não providenciou. Ademais, a arte funerária transforma os cemitérios dos ricos e afamados em museus a céu aberto. E a lembrança de que pulvis es et in pulverem reverteris nos torna mais humildes e nos dá uma dimensão mais real da vida (que deve, portanto, ser bem aproveitada).



Arte funerária

À tarde o MASP. Vir a São Paulo e não ir ao MASP e como ir ao Rio e não ver a praia. Três anos atrás eu escrevera sobre esse museu: "inacreditável, nível de museu europeu, não existe nada que se lhe assemelhe ao sul do Equador." Desta vez estavam expostas obras evocativas de Paris, impressionistas na maioria, e um panorama da pintura italiana, com clássicos do acervo do MASP como a Ressurreição de Rafael e a Madona de Bellini.


A virgem com o Menino de pé abraçando a mãe de Giovanni Bellini (1480-90)

No fim de tarde a Casa das Rosas, uma das poucas casas que restaram na avenida paulista, tombada e transformada em Centro Cultural. Fica aberta até as 22, mas hoje excepcionalmente fechou as seis pois abrigaria um evento, de modo que vimos correndo e não deu para fazer uma visita guiada.

Casa Das Rosas ao anoitecer
Sábado, 11 de julho

Dia de chuva (que com o passar do dia foi amainando). Pegamos o metrô até Vila Madalena e depois fomos descendo (Rua João Moura - Rua Abegoaria - Rua Gerard David - Rua Medeiros de Albuquerque - ver Google Maps) até o Beco do Batman, uma ruela com muros e casas grafitados em alto estilo. 


Beco do Batman

De lá descemos (tudo a pé) até o Cemitério São Paulo, o contornamos à esquerda e fomos até a Feira da Praça Benedito Calixto, uma mescla de feira de artesanatos, brechó e feira de antiguidades tipo a da Praça XV carioca, com discos, câmeras fotográficas antigas, canetas, bibelôs e bugigangas em geral, além de uma praça de alimentação. De lá caminhamos pela Cardeal Arcoverde até a Estação Clínicas, mas em vez de pegar o metrô seguimos a Dr. Arnaldo à esquerda até o Santuário de Nossa Senhora de Fátima, onde a monumentalidade do templo, um noviço tomando os votos de franciscano secular e o hino a Nossa Senhora regaram nossa um tanto mirrada sementinha da fé  embora, como racionalista, eu tenha fortes prevenções à religião constituída, com seu histórico de fanatismo e perseguições, por outro lado não comungo da visão materialista dos cientistas hodiernos e creio na existência do mistério sob o véu.


Igreja do Calvário, em frente à Praça Benedito Calixto

Paróquia Nossa Senhora de Fátima

Tentamos a visita guiada na Casa das Rosas, mas só agendando antes (telefone 11-3285 6986; educativo@casadasrosas.org.br), de modo que Mi (paulistana) me levou para conhecer o "lado B" de Sampa, num percurso de ônibus: o velho Brás, com que eu já havia travado conhecimento na visita ao Museu da Imigração, o bairro (pouco arborizado, meio sujo, maltratado) com tradição de receber os imigrantes, em cujo coração a Igreja Universal plantou um colosso (valorizando e revitalizando uma área de velhas fábricas falidas, abandonadas): o Templo de Salomão, construção descomunal, com altíssimas colunas, que pretende reproduzir o antigo templo dos judeus, destruído pelos babilônios, e que até do embaixador de Israel extraiu palavras de admiração (como consta na Wikipedia).


Templo de Salomão, um colosso no Brás

Depois, ainda no Brás, percorremos todo um "bairro" boliviano que, com sua comida de rua preparada em grandes tachos cheio de óleo escuro, lembrou minhas aventuras pelo Altiplano nos anos 80. A atividade dos bolivianos aqui gira em torno de pequenas confecções caseiras que suprem os mercados populares, presumo. Depois percorremos um trecho da avenida onde imigrantes africanos (sobre os quais vimos uma mostra no Museu da imigração) mascateiam todo tipo de roupas. Interessante (e isto já observáramos em Paris) como os nossos negros, após séculos de miscigenação, já não se parecem com os negros africanos. Reabastecemos nossos organismos num restaurante de massas chinesas que parece relativamente novo, recomendadíssimo pelas seções de restaurantes das revistas, que produz suas próprias massas numa cozinha visível atrás de um enorme vidro e que serve porções generosíssimas e deliciosas. De bater palmas de pé. (Trata-se do Rong He, Rua da Glória, 622, Liberdade.)


Yakisoba (vem com uma tesoura para você cortar os macarrões)

Domingo, 12 de julho

Longa caminhada (uns 4 km) de nosso hotel até a Fundação Ema Klabin, no Jardim América. Gostamos muito da casa da irmã, Eva Klabin, aqui no Rio, na Lagoa, com seus quadros, estatuetas, artes decorativas, jardim e achamos que a casa de sua irmã paulistana deveria ser ainda mais suntuosa (e vista de fora é maior mesmo trajeto: Avenida Paulista, após o Parque Trianon pegar à direita a Alameda Casa Branca, depois a Rua Bolívia à direita, atravessar a Praça América, prosseguir pela Rua Peru, pegar a Rua Colômbia à esquerda até a Rua Portugal - veja no Google Maps). 


São Paulo guarda a porta da Igreja de N.S. do Brasil, com fachada barroca 
Quase chegando lá, vale a pena dar uma entrada na Igreja de Nossa Senhora do Brasil, talvez a mais bonita da cidade, construída na década de 1940, com fachada copiando as igrejas barrocas mineiras, com a peculiaridade das balaustradas das torres lembrando minaretes, capelas e altares profusamente decoradas com azulejos azul cobalto como nos templos portugueses, e afrescos no teto da nave copiando os da Capela Sistina, além do afresco do céu estrelado sobre o altar-mor. 



Teto imitando a Capela Sistina

Em frente à casa de Ema aos domingos ocorre uma feira de antiguidades (de verdade, não bugigangas) e tapetes persas. Quanto à casa propriamente dita, estava fechada por alguns dias para conservação, devendo reabrir logo. Fica para a próxima. Tarde livre, perambulando pela Paulista (com leitura de revistas na enorme Livraria Cultura no Conjunto Nacional), a "orla" paulistana, com seus (aos domingos) ciclistas, skatistas, artistas de rua, hippies vendendo artesanato, jovens de rostos lisos ainda não marcados pelos vincos da vida, casais de namorados (alguns do mesmo sexo), gente descolada, gente comum etc.

À noite, repetição do yakisoba na mesma casa de massas chinesas de ontem.

E para não dizerem que só falei de flores: há um excesso de pedintes e moradores de rua por toda Sampa, os faróis de travessia de pedestres levam uma eternidade para abrir (alguns requerem que se aperte um botão que poucos lembram de apertar), a estação Paulista fica na Consolação e a estação Consolação, na Paulista, e  supremo pecado de São Paulo  a praia mais próxima está a sessenta quilômetros de distância.


Antiga mansão de 1905 do barão do café Joaquim Franco de Mello, uma das poucas remanescentes na Avenida Paulista. Para mais informações sobre as velhas mansões da Paulista clique aqui.

NOTA: Mais fotos da viagem a Sampa você encontra aqui. Para outras postagens sobre São Paulo clique no label abaixo.

A CASA DA COLINA, de GUILHERME DE ALMEIDA

Texto gentilmente fornecido por Sidnei Vieira, do Museu Casa Guilherme de Almeida. Para ler sobre minha viagem a Sampa e visita à casa, clique em São Paulo no menu do cabeçalho ou da barra lateral direita. Fotos do editor do blog.

Museu Casa Guilherme de Almeida - Rua Macapá, 187 - Perdizes - a 1,2 km da estação de metrô Hospital das Clínicas

Que ideia a sua, ir morar naquele fim de mundo!

Era o que me diziam os amigos quando, há doze anos, construí a minha casa nesta colina, a oeste do vale do Pacaembu.

Fim de mundo?... Podia mesmo parecer isso. Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente (a minha foi a quarta) separadas por terrenos sem muro nem cerca e eriçados de mato hirsuto e anônimo — era apenas uma estrada rústica. A nota agreste: ponto alto e deserto, exposto a descabeladas ventanias que assobiavam noite e dia; e, numa árida escarpa, a uns quarenta metros dos meus muros, o ninho de todos os gaviões que erguiam voo — pinhé! pinhé! — e iam, lá longe, fisgar os pardais da Praça da República. A nota fúnebre: no jardim da casa fronteira, uma lâmpada triste, única iluminação da rua, pendia de um “L” invertido feito de fortes vigas de peroba que formavam exatamente uma forca; e atrás, em pano-de-fundo, parte pobre de um cemitério, uma encosta semeada de túmulos e cruzes. A nota gloriosa: no horizonte, ao norte, fechando a perspectiva da rua, o recorte pontudo do Jaraguá, o “Senhor do Plaino”, primeira numeração de ouro no Brasil; e, sobrelevando o apinhado central, a sudeste, o Banco do Estado, ascensional, alvo obus de louça, com a sua ogiva de luz fluorescente nas noites caladas. A nota simbólica: com o Estádio Municipal, que é toda a alegria da Vida, de um lado, e, de outro, a necrópole do Araçá, que é toda a tristeza da Morte, assim, entre os dois extremos da contingência humana, a minha rua ia indo filosófica, indiferentemente. A nota pessoal: aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim.

Vista da casa

E a minha casa me fez fazer, entre os meus “Dez Versos para Casa da Colina”, este verso:

“A estrada sobe, para, olha um instante, e desce”...

Ora, eu subi, parei, olhei um instante, e fiquei. Fiquei vivendo a vida daquele suposto fim de mundo, que era de fato um começo. Começo de um pequeno mundo que eu vi, dia a dia, ir-se fazendo em torno de mim. Todo aquele caos primitivo foi-me, pouco a pouco, encantando. Quando das grandes chuvas, o lamaçal, escorrendo pela rampa, fazia atolar-se ali embaixo, nas valetas de confluência, automóveis e guinchos. Os “chauffeurs” de praça deixavam a gente na esquina, recusando-se a subir, com medo da derrapagem. O muro do cemitério ruiu, certa noite, minado pela enxurrada a gorgolejar, levando ladeira abaixo ossadas humanas...


Dentro da casa

Assim mesmo, mais duas ou três casas ergueram-se, bonitas e corajosas, na minha estrada. E, por uma bela manhã do ano de 1950, surgiram autoniveladoras, rolos compressores, caminhões despejando pedra britada e tambores de piche; aplainou-se o leito carroçável; assentaram-se os meios-fios; e, de ponta a ponta, desdobrou-se pela estrada uma grossa, negra e lisa passadeira de borracha.

Asfaltada a rua, multiplicaram-se logo, nos terrenos baldios, as tabuletas com uma designação de metragem e um número de telefone. E foram desaparecendo as tabuletas e aparecendo uns homens que abatiam o mato e deitavam-lhe fogo. Outros, com caminhões descarregando enormes tábuas servidas... Mais outros, construindo com tijolos usados uma espécie de maloca, que tinha um fogareiro dentro, fumegando. Outros mais, que nivelavam o terreno, esticavam barbantes presos a pequenas estacas, desenhando no chão um problema geométrico. E ainda outros, trazendo pedras, tijolos, telhas, cal, cimento, areia e cerâmica, e abrindo fossas retilíneas das quais subiam, verticais, ao mando de um fio de prumo, puras, viçosas, claras, as casas novas. Não tardou muito, a Light plantava, ao longo dos passeios cimentados e gramados, oito postes de concreto: e na ponta dos seus braços de cano de ferro, acenderam-se, numa só noite, as oito lâmpadas. Foi a festa da rua.

Começou a haver, então, criançada batendo bola, empinando papagaios, pedalando bicicletas, riscando a giz no asfalto a “amarelinha”. Carros estacionados a frente das casas. Gente conversando nos portões. A buzina do tripeiro e o pregão do fruteiro. Domingos de “short”. Corretores e interessados, que chegam de automóvel, param junto aos poucos lotes restantes à venda, farejam, tomam nota e...

Que idéia, a minha, vir morar tão perto do centro!

Ela está ali mesmo, a Cidade Desumana, a seis minutos de auto e quinze de ônibus. Ali mesmo, onde a joalheria dos cartazes-luminosos enfeita as noites turbulentas. Ali mesmo... Que ideia a minha!

Mas, não. Eis o noturno da minha mansarda encarapitada nesta colina, isolada na altura. Corro os caixilhos da janela. E ouço São Paulo. O bojo acústico do Pacaembu está aí embaixo. Ausculto-o. Nele reboa e chega-me aos ouvidos — como se escuta nas conchas um oco marulho de distante oceano — o surdo murmúrio da urbs absurda. E ela me parece tão longe, tão longe, que isto aqui, graças a Deus, é mesmo um fim de mundo.



De Guilherme de Almeida leia também neste blog ESCADA DE MINHA MANSARDA.

CRER EM DEUS, HOJE de ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

Publicado originalmente na Veja de 2 de abril de 1997

Nosso tempo é materialista e secular como nenhum outro, mas a quase unanimidade dos brasileiros continua acreditando



Na Semana Santa o sol ainda é generoso, no Hemisfério Sul, e a temperatura é agradável, menos ardente e desgastante do que no verão que ficou para trás. Não há dias como os de março e abril. E, como um prêmio, maravilhoso como fonte que brota da pedra, pródigo como o maná que cai do céu, vem a Semana Santa a oferecer quatro dias sem trabalho, ou de folga na escola. Abençoada seja, entre todas as outras semanas, a chamada de Santa, tão digna desse nome. E as estradas se enchem, e os grandes centros urbanos se esvaziam, e os espíritos ficam leves. Na Semana Santa, a ordem é: todos à praia!

Ao observar o movimento nas estradas, rodoviárias e aeroportos, ao considerar o espaço nos meios de comunicação a informações e conselhos de viagem e ao atentar para a ansiedade com que se acompanha a previsão meteorológica, tem-se uma ilustração do tempo irreligioso em que vivemos. Semana Santa é sobretudo feriado — ou “feriadão”, como se passou a dizer no Brasil, com alegre bonomia, assim como se chama o amigo de “Paulão” ou “Marcão”, e se vai assistir ao futebol no “Mineirão”. Aparentemente, jaz perdida na poeira do tempo, ou lá nos fundões da consciência, a lembrança de que o feriado existe por força de uma celebração religiosa — por sinal, o magno evento do cristianismo, que por sinal é a religião da maioria dos brasileiros.

E no entanto somos um povo que acredita em Deus. Um povo que maciçamente, solidamente, cerra fileiras nas hostes de Deus. Uma pesquisa encomendada por VEJA ao instituto Vox Populi resultou em que, à pergunta “Você acredita em Deus?”, 99% responderam sim. Raros povos dariam uma vitória tão consagradora a Deus, e castigariam os ateístas com derrota tão acachapante. A pesquisa foi realizada com base em 1.998 entrevistas entre a população adulta de todas as regiões brasileiras, nos dias 22 e 23 de março. À pergunta seguinte, “Qual é a sua religião?”, os católicos ganharam de longe — 72% — e 9% declararam-se “sem religião”, quase empolgando o segundo lugar dos evangélicos (11%). Ou seja: pode-se não ter religião, mas acredita-se em Deus. E à pergunta “No último fim de semana você foi a alguma igreja, templo ou centro de sua religião?”, 43% responderam sim e 57% responderam não. Não se vai à igreja, mas continua-se a acreditar em Deus.

Que é acreditar em Deus? Responde o professor de filosofia Roberto Romano, da Universidade de Campinas: “É viver a experiência do inefável, do doloroso e — essa é a palavra-chave — do sublime”. O sublime, que para Romano substitui e soma num só os clássicos conceitos filosóficos de verdade, bem e belo, é o sentimento da pequenez do homem diante do Everest, a experiência que a um tempo eleva e impõe admiração, invoca o respeito e o pavor. Responde o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista: “É sentir-se humilde perante uma força maior. Essa força se chama Deus”. Caso se fosse exigente, haveria razões para duvidar da resposta da maioria dos brasileiros. Certamente lhes falta a experiência do “sublime” de Romano, e nem todos se adequariam ao modelo de humildade profunda de Sobel. Mas não é justo ser exigente. Não se pode desejar um povo de místicos. Pode-se acreditar em Deus inclusive pelo motivo muito pragmático de querer ir para o céu. Augusto Matraga, o personagem de Guimarães Rosa, queria ser bom, depois de muitos anos de malvadeza, para tirar a alma da “boca do demônio”. “P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete”, dizia.

Não há nada de mais no fato de a pesquisa indicar que mais gente acredita em Deus do que tem religião ou vai à igreja. Pode-se acreditar em Deus sem ir à igreja ou ter religião. O que surpreende é tantos se declararem crentes em Deus num tempo laico e secular como o nosso. Muitos fatores contribuem para tornar este século distante de Deus. A ciência, ao explicar desde os fenômenos da natureza até a evolução das espécies, além de formular hipóteses plausíveis para a origem do universo, invadiu espaços que, sendo de mistério, milenarmente pertenciam à jurisdição das religiões. Ao enumerar os pensadores de maior influência neste século, deparamos com uma coligação anti-Deus: Karl Marx, para quem a religião era o ópio do povo; Sigmund Freud, que considerava a fé uma manifestação de infantilismo; Charles Darwin, que, em lugar da prodigiosa moldagem de Adão a partir do barro e de um sopro nas narinas, nos ofereceu como ancestral a miséria de um macaco; Friedrich Nietzsche, que teve a ousadia de decretar a morte de Deus. O racionalismo que, a partir das matrizes europeias, se impôs ao mundo empurrou-nos a uma lógica de pragmatismo e a uma civilização de resultados. A tecnologia, aliada ao culto do sucesso e dos bens materiais, criou uma indústria da urgência cujos ícones são o avião a jato, o fax, o dinheiro eletrônico e o telefone celular. Onde o tempo e a disponibilidade para a meditação e a contemplação? A religião está acuada. “Nosso secularismo atual é uma experiência totalmente nova, sem precedentes na História humana”, escreve a professora inglesa Karen Armstrong, especialista em religiões e autora do livro Uma História de Deus, traduzido no Brasil (Companhia das Letras). Armstrong escreve, ainda: “Um dos motivos pelos quais a religião parece irrelevante hoje é que muitos de nós não têm mais o senso de que estão cercados pelo invisível”. Nossa cultura científica, segundo a autora, educa-nos para concentrar a atenção no mundo físico e material, o que nos distanciaria do “espiritual”. Imagine-se, indo um pouco além do raciocínio de Armstrong, o que era o mundo sem luz elétrica. A noite era noite de verdade, ainda mais que a maior parte das pessoas vivia no campo. Quando não a dominava a treva absoluta, a noite fazia-se o reinado das pesadas sombras ou das chamas bruxuleantes, a partir de rudimentares instrumentos de iluminação. A escuridão convidava ao medo e ao mistério, que são a antessala do sentimento religioso. A luz elétrica veio a operar contra Deus.


E depois ainda há o Estado moderno — laico e liberal. Não faz muito, éramos, os países cristãos, governados de forma não muito diferente da que o Irã é hoje. Religião não era uma opção. Era uma imposição. Lugar de herege era na fogueira. E, quando não era produto da pura força bruta, a religião era resultado da inércia das tradições familiares, grupais ou nacionais. Hoje se tem a liberdade de decidir, e essa é uma inestimável conquista de nossos tempos. “As pessoas hoje assumem a fé por decisão, e não mais por tradição. É um amadurecimento da sociedade”, disse a VEJA o padre João Batista Libânio, professor de teologia do Centro de Estudo Superior da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Se as pessoas têm a liberdade de escolher, e escolhem Deus, mais ainda causa espanto o fato de apenas 1% dos brasileiros declararem que não acreditam nele.

Se a pergunta fosse outra, “Você já teve a experiência de Deus?”, o resultado possivelmente seria diferente. Não é fácil, e não é para qualquer um, experimentar Deus. No bonito prefácio a seu livro, Karen Armstrong escreve: “Quando criança, eu tive várias crenças religiosas fortes, mas pouca fé em Deus”. É sutil, mas convida a uma instrutiva reflexão, a diferença entre “crença religiosa” e “fé em Deus”. Católica, Armstrong entrou numa ordem religiosa e foi freira durante sete anos. Nesse tempo, conta, mergulhou na história da vida monástica e em minuciosas discussões sobre a Regra de sua ordem. “Muito estranhamente”, prossegue, “Deus entrava muito pouco em cada uma dessas coisas. As atenções pareciam concentrar-se em detalhes secundários e nos aspectos mais periféricos da religião. Lutei comigo mesma na oração, tentando obrigar minha mente a encontrar Deus, mas ele continuou sendo um severo capataz, observando cada infração minha da Regra, ou então tantalicamente ausente.”

Karen Armstrong diz que teria sido poupada de muita ansiedade se os mestres de alguma das três grandes religiões monoteístas — o cristianismo, o judaísmo e o islamismo — lhe ensinassem que, em vez de esperar que Deus desça das alturas, deveria ela própria criar um sentido para ele. Em vez de deixá-la supor que Deus fosse uma realidade “lá fora”, deveriam tê-la ensinado que Deus é “produto da imaginação criadora, como a poesia e a música”. E então vem esta afirmação perturbadora, afiada com a lâmina do paradoxo para melhor ferir a inteligência: “Uns poucos monoteístas extremamente respeitados teriam me dito discreta e firmemente que Deus não existe — e no entanto que ele era a mais importante realidade do mundo”.

A experiência de Deus não é necessariamente pacífica, ou apaziguadora. “A fé não é a ausência da dúvida”, diz o rabino Sobel. “Eu como rabino tenho muitos problemas com Deus, como Deus deve também ter problemas comigo. Mas nem por isso desisto. Faço da minha dúvida a vontade de conhecer melhor.” Sobel diz que, quando perdeu a mãe, questionou a justiça de Deus: “Por quê?” Depois, entendeu que a pergunta não era “por quê?”, mas “para quê?”.  “Aprendi que a dor deve servir a uma finalidade maior. Existe uma missão na vida, e essa missão é enriquecida pela dor.” O mesmo raciocínio o rabino emprega com relação ao holocausto do povo judeu sob o nazismo. “Seis milhões de judeus foram massacrados, e o sol continuou a brilhar e a grama a crescer. A fé leviana se esvazia nesses momentos como um balão de ar espetado pela agulha da realidade. Mas a fé levou o povo judeu a se reerguer das cinzas. A fé é a coragem de continuar. Crer significa viver com Deus, contra Deus, mas jamais sem Deus”.

A injustiça e a barbárie são outros elementos que em nosso século empurram no sentido do afastamento de Deus. Não que outras épocas fossem mais justas e gentis. A singularidade está em primeiro lugar na escala, nos milhões de mortos em duas guerras mundiais, na estupidez sem nome do holocausto e na carnificina calculada de Hiroshima; em segundo lugar nos meios de comunicação, que levam o conhecimento das brutalidades a toda parte; e em terceiro na injustiça consciente e consentida em países como o Brasil. Este não é um tempo de inocência. Sabe-se o que leva ao desequilíbrio social, ao desamparo e à miséria, e no entanto se continua a aceitá-los como se fossem forças invencíveis como uma tempestade ou um terremoto.


A adversidade pode conduzir ao reforço da fé, em casos como o de Sobel, mas em outros produzirá resultado oposto. Para ficar no holocausto, o escritor judeu Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz em 1986, conta que viu esvair-se sua fé em Deus junto com a fumaça que observou subir do crematório de Auschwitz na primeira noite que passou lá. Sua mãe e a irmã morreriam naquele local. Um dia, uma criança foi enforcada ea cena: m frente de todos. Um prisioneiro, atrás de Wiesel, perguntou ao olhar “Onde está Deus?” Onde está Deus que não vem praticar sua justiça?, ele queria dizer. Onde está Deus que não impede essa atrocidade? Wiesel nesse momento ouviu uma voz dentro de si que respondia: “Deus está ali, pendurado naquele patíbulo”. Deus morria, para ele.

A pergunta “Você acredita em Deus?”, por seu convite à introspecção e a um olhar sobre as questões extremas da vida e da morte, é a mais tremenda das perguntas. Entre as respostas, há duas clássicas, uma no âmbito mundial, outra brasileira. A mundial é a resposta do psicólogo Carl Gustav Jung num programa de televisão americano: “Eu não acredito. Eu sei!” Jung cumpriu uma trajetória em que, a partir dos cacos a que a psicanálise freudiana reduzira o sentimento religioso, pretendeu reconstruir um misticismo possível para o século XX. A resposta clássica no âmbito nacional é a do hoje presidente [artigo escrito em 1977] Fernando Henrique Cardoso, quando candidato a prefeito de São Paulo, em 1985, num debate na televisão. “Essa pergunta o senhor disse que não faria”, começou por reclamar o então senador ao jornalista que a formulou, Boris Casoy. E continuou:

— É uma pergunta típica de quem quer levar uma questão que é íntima para o público, uma pergunta típica de alguém que quer simplesmente usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique, que não está em jogo. Devo dizer ao deputado Boris Casoy que este nosso povo é religioso. Eu respeito a religião do povo e, na medida em que respeito a religião do povo, as várias religiões do povo, automaticamente estou abrindo uma chance para a crença em Deus.

Nessas poucas linhas há material para várias considerações. O embaraço de Fernando Henrique é tal que chega a chamar o jornalista de “deputado”. Sua resposta, na parte mais substantiva, se é que há alguma substância nela, é estapafúrdia. “Respeitar” a religião de alguém não parece trazer como consequência “automática” admitir a crença em Deus. Não fica claro, além disso, a quem se está “abrindo uma chance” para acreditar em Deus — se ao povo ou ao próprio entrevistado. Se for ao povo, ele, Fernando Henrique, não tem autoridade para abrir ou fechar chances numa questão dessas. Se for a ele próprio, resta saber o que seja “abrir uma chance” para acreditar em Deus.

Fernando Henrique não quis responder objetivamente sabe-se por quê. Se dissesse sim, seria chamado de cínico por todos os que sabem que em seu passado e sua formação intelectual não há vestígios de religião. Se dissesse não, temia afastar um eleitorado que se supõe não esteja preparado — não para votar, como diria Pelé, mas para separar a fé em Deus da moralidade. Para o comum das pessoas, não acreditar em Deus equivaleria a ser mau. Mesmo sem conhecê-la, muitos brasileiros concordariam com a frase famosa de Ivan Karamasov, personagem de Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.

Fernando Henrique, em sua famosa resposta, por mais tortuosa e titubeante, tem razão em três pontos. Primeiro, que a pergunta era uma armadilha. Foi formulada para embaraçá-lo. Segundo, que a questão não estava em jogo. Não é por acreditar ou não em Deus que alguém será melhor ou pior prefeito. Por último, e mais importante, a questão é íntima. É de uma intimidade brutal, tanto quanto uma pergunta sobre os hábitos sexuais de alguém.

É a mais tremenda das perguntas, mas não é a mais velha. Não faria sentido formulá-la aos personagens que, na Bíblia, protagonizam as histórias da aurora da humanidade, segundo nota o americano Richard Elliott Friedman, professor de hebraico e teologia e autor de outro livro traduzido no Brasil, O Desaparecimento de Deus (Editora Imago). Adão ouve os passos de Deus, no Jardim do Éden, Abraão dialoga com ele. Como perguntar-lhes se acreditavam em Deus? Eles simplesmente “sabiam”, como Jung. Na travessia do deserto, conduzida por Moisés, o povo de Israel tem diante de si uma nuvem a apontar-lhe o caminho, alimenta-se de maná, um milagroso alimento que cai do céu, e bebe água que jorra das pedras. São milagres sobre milagres, a atestar a presença permanente de Jeová. Não teria cabimento perguntar se aquele povo acreditava em Deus. E, no entanto, dá-se um fenômeno espantoso, ressaltado por Friedman: a geração do deserto está sempre a reclamar, ou a trair Jeová adorando falsos deuses.


Hoje é mais difícil acreditar em Deus. Ele não nos visita com tanta frequência, e as proezas milagrosas migraram para os sacerdotes da ciência, capazes de tornar possíveis viagens pelo espaço e clones de seres vivos. Acreditar em Deus implica uma opção muito mais consciente, meditada e deliberada. “Uma das coisas mais bonitas que Deus criou foi o livre-arbítrio”, disse a VEJA o pastor Valdir Raul Steuernagel, diretor do Centro de Formação Teológica da Igreja Luterana. “Abraçar a fé é ato consciente do ser humano. Exige sua participação ativa e racional.” Outro entrevistado, o professor Mário Sérgio Cortella, do departamento de teologia e ciência da religião da PUC de São Paulo, afirma: “Há cinquenta anos, quem nascia numa religião morria nela. Agora, a pessoa pode escolher várias alternativas. Isso reforça seu caráter de busca individual”.

Mas acreditar ou não em Deus liga-se também a algo muito antigo. Apesar de todos os progressos da ciência, e de toda a liberdade para conjeturar, não há resposta humana ainda às perguntas cruciais a respeito de onde viemos, para onde vamos e o que fazemos aqui. Diante da perplexidade que elas provocam, somos frágeis como um pastor de ovelhas do tempo em que o mundo e as sociedades estavam se fazendo, tal como relatado na Bíblia.


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