PEDRO NAVA, crônica de ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA PÁG. 9 DO PRIMEIRO CADERNO DO JORNAL DO BRASIL DE 26 DE ABRIL DE 1993

Pedro Nava estaria fazendo, breve, 90 anos. Inesquecível Pedro Nava. Um dos maiores memorialistas do Brasil, ao lado de Helena Morley, Afonso Arinos, Gilberto Amado ou Thiers Martins Moreira com o seu O menino e o palacete.

Nava estreou tarde, quase no limiar da velhice lépida. Dividiu a vida entre o consultório, a cátedra, o hospital, a policlínica. E a leitura. Porque foi sempre um grande leitor literário. Em Belo Horizonte, por volta de 1925, foi ele o primeiro do grupo modernista a ler a obra de Marcel Proust, que chegava às montanhas de Minas, pouco depois da morte do romancista.

Esse encontro com Proust foi decisivo. Os dois autores que mais o impressionaram foram Euclides da Cunha e Proust. Pois Pedro Nava pertence decididamente e declaradamente à categoria dos escritores ricos, frondosos, farfalhantes. A sobriedade de Machado não era o seu caminho, ao contrário de Graciliano e Drummond, seu companheiro de juventude.

Nava morou a maior parte da vida aqui no Rio. Morou nesta cidade definitivamente desde 10 de março de 1933. Ele próprio nos confessa com aquela sua precisão deliciosa e perfeita que residiu 20 anos em Minas, dois no Oeste Paulista, numa aventura da mocidade, e o resto no Rio. Morou em Visconde de Figueiredo, Aristides Lobo, Haddock Lobo, São Cristóvão, Copacabana, Urca, Ipanema, Laranjeiras, Glória.

Viveu na Glória, no mesmo apartamento [no prédio da foto abaixo], desde o dia 28 de junho de 1943. E na Glória, em plena rua, morreu.

É impressionante o número de escritores nascidos em Juiz de Fora, como Pedro Nava, Murilo Mendes e Silva Melo, Rubem Fonseca e Raquel Jardim, Cleonice Rainho e Gilberto de Alencar, Fernando Gabeira e Belmiro Braga. E mais Rute Bueno, Cosette de Alencar, Rangel Coelho, Henrique José Hargreaves, o filósofo tomista, discípulo de Maritain, de Kierkegaard, Wilson de Lima Bastos e Regina Hargreaves, autora de O diário do sol, que tanto entusiasmo provocou em Sobral Pinto.

O memorialismo brasileiro tinha duas vertentes nítidas. A de Nabuco e de Afonso Arinos, claramente romântica, que se inspira em Chateaubriand, com as Memórias de além-túmulo. E a de Graça Aranha e de Gilberto Amado, o impressionismo dionisíaco. Pedro Nava não pertence a nenhuma dessas vertentes.

O seu memorialismo é ostensivamente proustiano. Proustiano pelo estilo, pelo ritmo interior, pela identificação total entre ele e o autor de A procura do tempo perdido. Proust marcou Pedro Nava para sempre.

Prédio na Glória onde residiu Pedro Nava

Sobretudo, um retratista. Descreve o físico das pessoas e passa agilmente para o retrato psicológico, em que é mestre. E sabe descrever as cidades. No Galo das trevas, seu quinto volume, há um passeio maravilhoso pelas ruas da Glória, verdadeira obra-prima. O quarto volume é um retrato de Belo Horizonte (onde estudou a sua medicina). Concretude saborosa. Vemos a rua da Bahia do tempo de Pedro Nava mocinho.

A verdade é que Nava rapaz era excelente desenhista. E se tornou mestre na arte de retratar, quando se fez memorialista, na curva dos 70 anos. A sua obra não tem igual. Vai da genealogia minuciosa do Baú de ossos, primeiro volume das Memórias, à incrível liberdade criadora do Galo das trevas, quando Nava, maduro, solta-se inteiramente à vontade, sem nenhuma cerimônia, com uma franqueza desabusada de espeleólogo audaz.

Pois não tem medo de nada. Nenhuma palavra assusta. Nenhuma realidade o inibe. Capta o movimento da vida. Desce fundo na mina humana. Como um perscrutador insaciável. Que analista meticuloso. Que inventariante preciso. Tudo nele é abissal e trágico.

Vejo em Nava pessimismo e cepticismo. Um pessimismo filosófico, à maneira de La Rochefoucauld, certa melancolia diante do humano, como em La Bruyère, com toda a sua paixão dos caracteres. Um fundo jansenista.

Há em Pedro Nava o cepticismo filosófico, o experimentalismo científico e a volúpia da palavra, o senso da exatidão. E, sempre, um espírito boêmio, que o leva a confessar (numa página soberba) que “flanar nas ruas do Rio era prazer refinado” [ver ARTE DE FLANAR PELO RIO].

A consciência da corrupção da natureza humana, que o acompanha, não o tornou seco. O memorialista surgiu quando ninguém o esperava, como uma espécie de torrente impetuosa. Ou de incêndio. Ou de vulcão. Os seus seis volumes de Memórias foram uma explosão de autenticidade perturbadora.

Nava passou de bissexto a contumaz. Era já conhecido e admirado como poeta bissexto, sobretudo pelo grande poema O Defunto [sobre o qual fiz um vídeo que você pode ver aqui], que, junto com A cachorra, de Pedro Dantas, é uma obra-prima de nossa poesia bissexta. Manuel Bandeira o incluiu na sua Antologia famosa dos poetas brasileiros bissextos, isto é, não-contumazes. Nava navegante.

Placa no prédio da Glória onde morou Pedro Nava

VEJA TAMBÉM MEU VÍDEO "PEDRO NAVA E OS MEANDROS DA MEMÓRIA":

Um comentário:

HELIO BRASIL CORREA DA SILVA disse...

Preciso e precioso comentário.
A obra de NAVA é definitiva na literatura brasileira e - a monolágrima camoniana se faz minha! - perdem os que não leem português.
HB