Mortos de medo de que uma frente fria (prevista pela meteorologia) alagasse a Av. Brasil em nosso percurso para o Aeroporto Internacional (e seríamos, então, atacados pelos pivetes, que nos “depenariam” dos “suados” dólares), demos início a nossa oitava grande viagem desde o casamento, que também é a sétima viagem internacional (Paraguai incluído) e quarta para a Europa.
Em tempo: decolamos sob tempo ensolarado.
Dia 4 – Amsterdam
Sobre a viagem aérea: estou cansado de saber que, estatisticamente (ou probabilisticamente), há muito mais chances de eu ser vitimado por um assaltante nas ruas cariocas do que por um acidente num avião da KLM; que andar de automóvel, ônibus etc. é muito mais perigoso do que de avião; que medo de andar de avião é irracional, neurótico, sem fundamento (e não estou disposto a pagar analista para descobrir sua causa); li, inclusive, na Seleções, que ter medo de turbulência é tão absurdo como, por exemplo, ter medo do chacoalhar de um carro ao atravessar uma estrada de terra...
No entanto, não tem gente que ganha na loteria? Probabilisticamente, não é quase impossível?
Imaginem um turista de país exótico desembarcando no aeroporto do Galeão, indo se hospedar em algum lugar barato, algo fora de mão, na Urca, digamos; feito o check-out, pergunta a um guarda (em inglês): “How can I get to the Center?” O guarda incontinenti responde (em inglês fluente, e sem perguntar se quer vender dólares, ou coisa semelhante): “Take the bus number tal e tal in front of the airport”. O turista vai (carregando sua mala), “salta” no Centro e imediatamente toma o outro ônibus para a Urca (ele soube qual é através do guia); pergunta ao motorista (em inglês) onde fica a hospedaria (uma rua pouco conhecida); o motorista lhe informa com relativa precisão onde “saltar” (na verdade, deveria ter “saltado” um ponto depois); aí começa pequeno ziguezague: o turista pergunta a um grupo de rapazes (em inglês), onde fica a tal rua; eles explicam, é naquela direção ali; ele checa com outro transeunte, que lhe indica a direção contrária; de indicação em indicação (algumas contraditórias entre si), acaba entrando numa auto-escola (“lá eles devem conhecer as ruas”), cujo dono consulta um Guia Rex e informa (em inglês), com absoluta precisão, a localização da tal rua!
Agora transportem a historinha acima para Amsterdam: com algumas adaptações (Urca vira Slotermeer, o ônibus para o centro vira um confortável trem, o segundo ônibus, um bonde), é exatamente o que nos aconteceu na chegada em Amsterdam!
Uma pequena digressão sobre a sensação de estranheza no primeiro dia em que se está num país estrangeiro (depois, a gente se acostuma): “O que estou fazendo aqui, em plena Leidseplein, cercado de holandeses, cujo linguajar me é tão incompreensível como o grasnar de patos ou o trinar de pássaros? Não seria muito mais natural estar agora em Santa Teresa?” (Aos metafísicos – os materialistas, que saltem estas linhas: não será a viagem de recreio uma espécie de preparação para a futura migração da alma a paragens desconhecidas?)
Uma confidência: no primeiro dia de uma longa viagem, há momentos em que a gente se arrepende de ter se afastado tanto do país natal (no segundo dia, a gente se adapta; depois do terceiro, não quer mais voltar).
Estamos, aqui na Holanda, numa sociedade eficiente: por exemplo, trens e bondes seguem rigorosamente os horários (em cada ponto final da Centraal Station, há um letreiro digital indicando o horário de saída do próximo bonde: funciona!). Entretanto, não existe paraíso sobre a Terra (a não ser para alguns marxistas iludidos) e algumas mazelas (em grau reduzidíssimo) fazem-se notar: ao lado da Centraal Station, vi grupo de mendigos, morando na rua, iguaizinhos aos do Rio de Janeiro! Há certa taxa de criminalidade aqui (longe do grau exacerbado do Rio de Janeiro): em alguns lugares públicos, há cartazes, alertando para os pickpockets; no próprio prospecto distribuído aos turistas, recomenda-se “not to carry more money than you need that day”, assim como não deixar bolsas ou máquinas fotográficas à vista dentro dos carros estacionados, bem como não esquecer de trancá-los!
Finalizando: estava comentando com a Fafá: “Lá no Brasil é uma loucura, você tem que trancar o carro, botar corrente, alarma, tranca...” Ironicamente, observei: “Será que é a mesma coisa aqui?” E passei a prestar atenção nos carros estacionados em frente de nosso “hotel” (depois explico as aspas); JURO QUE VI: um dos carros estava com trava na direção, igualzinho no Rio de Janeiro!
Para os cinéfilos: se meu guia é confiável (Amsterdam this Week), Amsterdã possui 37 cinemas, um para cada 19 mil habitantes. É muito ou pouco?
Os filmes? Não está passando nenhum filme brasileiro! Em compensação, só está passando um filme holandês: Amsterdamned (não deve existir aqui reserva de mercado). Grosso modo, passam aqui exatamente os mesmos filmes que estavam passando no Rio, ou seja, os que ganharam ou foram indicados para o Oscar: Moonstruck, Broadcast News, Wall Street, The Last Emperor, Fatal Attraction...
Para os gastrônomos: aqui tem restaurante argelino, americano, argentino, britânico, caribenho, chinês, francês, grego, indiano, indonésio, italiano, japonês, coreano, libanês, mexicano, marroquino, norueguês, paquistanês, russo, tailandês e... brasileiro. Sim, em nossas andanças, descobrimos um restaurante brasileiro aqui em Amsterdam. O nome? Adivinhem:
( ) IN DE GERSTEKORREL
( ) DE VLIEGENDE SCHOTEL
( ) CANECÃO RIO
Adivinhou! No menu (bilíngue), tudo a que um brasileiro perdido em Amsterdam (ou um holandês à procura do exótico) tem direito: vatapá, goiabada, brigadeiro, manjar de coco... A feijoada (preço: 29,50 florins; no Rio de Janeiro sai bem mais em conta) em holandês é (cuidado para não destroncaram a língua) favoriete Braziliaanse stoofschotel van zwarte bonen, geserveerd met farofa, rijst, salade en gesmeden sinaasappel. A caipirinha: tropische cocktail op basis van cachaça en limoentjes geserveerdmet ijs.
Em frente ao restaurante, conhecemos uma brasileira (que deveria estar estudando inglês em Londres, porém não aguentou a “caretice” dos ingleses), que trabalha (ilegalmente) como garçonete numa casa noturna onde só se toca samba...
Brasil é exótico: gostemos de nosso país ou não!
Estou devendo uma explicação às aspas de cinco minutos atrás: na verdade, não estamos formalmente num hotel, mas num quarto de uma casa de família. Aqui na Europa, é muito comum casais ou senhoras viúvas alugarem aposentos de suas casas como “quartos de hotel”. O turismo aqui é uma indústria, da qual muitos sobrevivem (enquanto que nós, brasileiros, “exploramos” o turista a ponto de espantá-lo).
Dia 5 – Excursão a Roterdam e Haia
Com o dinheiro economizado do hotel pela viagem amanhã à noite para Paris (turista de terceiro mundo não é fácil!), fizemos um tour pelas principais cidades da Holanda. (O rapaz que nos vendeu o bilhete perguntou se éramos brasileiros; indaguei como é que ele sabia, e ele nos revelou ter trabalhado um período no restaurante brasileiro, e perfilou algumas palavras em português...)
Excursão pode parecer coisa “careta” (nas viagens iniciais, preferia fazer todos os passeios “por conta própria”; porém, isso às vezes pode se tornar complicado, e acaba-se perdendo tempo precioso (literalmente falando, dado o colossal investimento em passagens aéreas) em baldeações; um exemplo: para se visitar os campos de tulipas em Keukenhof, toma-se um trem para Haarlem, de lá um ônibus para Lisse, onde um derradeiro ônibus nos conduz ao destino, e vice-versa)... Excursão, dizia, pode parecer programa de turista americano de cinqüenta anos para cima, mas tem suas vantagens: afora a poupança de tempo, permite obter-se uma gama de informações interessantes, não só sobre os locais visitados, como também de âmbito global, inclusive a nível socioeconômico. Querem exemplos? Através de guias de excursões, soube que (aos inimigos da cultura inútil, um pouco de paciência):
– mais de mil variedades de tulipas são cultivadas na Holanda;
– os moinhos de vento tinham dois tipos de utilização: industrial (para moagem) e para drenagem; com a revolução industrial, foram paulatinamente sendo desativados, e os que hoje restam (dez por cento do número original) são tombados;
– o rebanho bovino é de aproximadamente uma cabeça por 2,5 habitantes, o gado de corte ficando confinado, apenas o gado leiteiro permanecendo nos pastos, a não ser no inverno;
– em Amsterdam há uma bicicleta para cada dois habitantes;
– o salário médio holandês situa-se entre 1.800 e 2.000 florins (ao câmbio atual, cerca de mil dólares), os descontos consumindo um terço; o aluguel de um apartamento mediano oscila entre 400 e 600 florins; existem no momento 500 mil desempregados, mas o salário-desemprego é de 1.500 florins por família.
A excursão que fizemos abrangeu Delft, onde se produz a bonita porcelana pintada de azul (na verdade, a cor original é preta, o azul sendo obtido por reação química); Roterdam, maior porto da Europa, cujo centro, quase todo destruído pela guerra, hoje abriga construções modernas, de linhas arrojadas; Haia, sede do parlamento, dos ministérios, das embaixadas e do palácio da rainha (a capital, porém, é Amsterdam: dá para entender?); Madurodaam, cidade em miniatura (foto abaixo), com réplicas dos principais monumentos arquitetônicos da Holanda, do aeroporto de Schiphol, de um balneário, do porto de Roterdam, tudo perfeito, com gentes e bichos de brinquedo, trens elétricos em funcionamento, navios passando por comportas ligando pedaços de mar de diferentes níveis etc.; e o balneário de Sheveningen, com praia de areia branquinha como no Brasil.
Uma das curtições do turismo é o estabelecimento de paralelos (uma espécie de antropologia comparada, ouso dizer): por exemplo, entre o frenesi do transporte público carioca (o motorista acelerando ruidosamente, no ponto, para fazer os passageiros entrarem mais rapidamente) e o perfeito sincronismo entre carros e homens, e entre as várias correntes humanas, aqui na Holanda; no bonde: ele pára em todos os pontos, sem que se precise dar sinal; primeiro, descem todas as pessoas que querem descer (por mais numerosas que sejam); a seguir, sobem todas as pessoas que querem subir; concluída, sem nenhum atropelo, a operação, o bonde parte, serenamente... Elementar como o teorema de Pitágoras: só que no Brasil não funciona.
A Holanda é aquilo que o Brasil da nova república (com minúsculas, de propósito) tenta ser, sem sucesso: uma sociedade ultraliberal, porém não anárquica. Já na Europa conturbada do século XVII, Descartes encontrou aqui seu refúgio, onde, em suas palavras, “os exércitos existentes parecem ter como única finalidade permitir que os habitantes desfrutem de maneira mais segura as bênçãos da paz”. Na década de sessenta, lembram?, Amsterdam transfigurou-se em santuário dos coloridos hippies. O holandês não chega a ser “bitolado” como os demais europeus centrais, a ponto de permitir-se pequenos delitos de trânsito, inimagináveis numa Alemanha: acelerar na passagem do sinal amarelo para o vermelho, estacionar em locais proibidos... Porém, a tensão dispensável, supérflua, das sociedades desorganizadas aqui não existe: em minha permanência, não testemunhei nenhum acidente de trânsito; o transporte público é eficiente e pontual; os balconistas são extremamente corteses, como se cada cliente fosse o primeiro-ministro; pode-se ficar horas sentado num bar com uma só cerveja, sem que o garção fique “em cima”... Por falar em cerveja: ela é mais amarga, mais “encorpada” do que a nossa, além de “subir” mais e não ficar logo quente, por duas razões: o clima aqui é mais frio e a temperatura de consumo da cerveja é mais alta, entre seis e oito graus, ou seja, fria mas não estupidamente gelada. E o mais interessante: tudo isso funciona bem aqui na Holanda, mas não no Brasil. Uma vez, fiz uma experiência, comprando uma Heineken no Brasil. Achei-a demasiado leve, não tão gostosa como a nossa Antarctica; em suma, parece que os fatores climáticos, a temperatura, a umidade...) têm muito a haver com a maneira como se deve tomar a cerveja.
Dia 6 – Amsterdam-Haarlem-Lisse-Amsterdam-fronteira da França-Amsterdam
De manhã, museu Van Gogh, que reúne em seu acervo grande número de obras do genial pintor, da fase inicial, de quadros soturnos em tons marrons (quem compraria, na época, um desses quadros para enfeitar a parede? Van Gogh não era comercial: chegou a pintar uma caveira fumando; campanha anti-tabagismo?), até as derradeiras obras, de tons berrantes nem sempre lógicas (céu verde), tintas lançadas à tela com exaspero, corvos sobrevoando trigais, árvores retorcidas...
De tarde, tour à região das tulipas. Sua origem: Turquia. Alguns séculos atrás, raridades, valiosas como gemas preciosas. A partir do século passado, a Holanda passou a cultivá-las, desenvolvendo, através de cruzamentos, variedades de diferentes cores e formas. Hoje, formam um milhar de espécies. Oitenta por cento do comércio internacional de flores é controlado pela Holanda. (Que país fantástico, cuja prosperidade se baseia no comércio de flores; na lapidação de diamantes; numa das melhores linhas aéreas do mundo; numa tecnologia tão prática, que naturalmente passa a fazer parte de nosso dia-a-dia: a velha fita cassete, o disco compacto-digital; em lojas de departamentos presentes nas grandes cidades do mundo: C&A... A Holanda derruba mitos: de que a afluência capitalista só é possível sob um complexo industrial-militar e uma política imperialista – pelo que me consta, a Holanda não é exportadora de armas, e tampouco mantém bases militares no estrangeiro; de que justiça social, medicina socializada só são concretizáveis sob ditaduras comunistas, etc. e fechemos os parênteses).
Para encerrar o assunto, uma questão: qual a diferença entre uma tulipa e uma rosa? A rosa é menor, de uma só cor, as pétalas são delicadas e curvadas para dentro. A tulipa é maior, pode ter mais de uma cor ou diferentes tonalidades da mesma cor, as pétalas são mais abertas e... parecem de matéria plástica!
Às dez da noite, embarcamos no ônibus que nos levaria a Paris. (O europeu normalmente usa o trem; os ônibus são mais baratos, utilizados por adolescentes e gente sem dinheiro, sendo superdesconfortáveis em relação aos nossos Tribus da Itapemirim.) Às oito da manhã seguinte, desembarcamos exatamente no ponto de embarque. Gastamos cento e dez florins mais vinte e dois dólares e dez horas para nos deslocarmos da Centraal Station de Amsterdam para ela mesma. Alucinação, delírio, loucura? Não, desinformação!
Você sabia que a França está exigindo visto para a entrada de turistas? Nós também não sabíamos (como também um japonesinho impecavelmente trajado de terno xadrez azul e gravatinha fina, que viajava no nosso ônibus), o que fez com que fôssemos detidos, na fria madrugada, pela polícia de fronteira, e literalmente “deportados” de volta a Amsterdã, além de desembolsarmos 22 dólares adicionais pela “volta” de uma ida que nunca houve, de nada tendo adiantado meu cordial “Bonjour”.
Valeu a diversão: éramos, no ônibus, cinco representantes da língua de Camões; além de nós, na frente, um casal de brasileiros, o marido ex-estudante de medicina em Coimbra e ex-globetrotter, que nos contou anedotas de portugueses (Sabem qual é a melhor universidade do mundo? A de Coimbra. É a única que consegue fazer de um português um doutor!) e episódios de uma viagem ao Marrocos, onde vira mercados de escravas brancas e termas esfumaçadas por narguilés; atrás de nós, uma portuguesa, que sorrateiramente escutava toda a nossa conversa; e bem no final do ônibus um barbicha com cara de turco, natural de Cabo Verde, que, na máquina automática de bebidas, tantos botões apertou, que acabou tomando uma mistura de café, chá e chocolate.
Verdadeiro congresso lingüístico. Interessante como termos considerados chulos no Brasil têm acepções bem diversas, carinhosas por vezes, em Portugal. Um brasileiro desinformado, doente em Portugal, reagiu indignado ao lhe prescreverem uma “pica no cu”; “pica”, na terrinha, não é pica, mas injeção, e “cu” não é cu, é bunda. Outro quase perdeu os brios ao lhe mandarem pegar “qualquer bicha”: “bicha” é fila. Um terceiro ficou desolado, ao ser apresentado a dois rapazotes como “meus putinhos”. Puta não é mulher da zona; aliás, zona é o ponto final do autocarro, entenderam?
E se um português perguntar se o autocarro tem casa de banho, não pensem querer ele tomar um banho dentro de um automóvel: ele quer apenas saber se existe toalete a bordo do ônibus.
Viajar tem sua magia: os momentos mais adversos têm seus lances divertidos. Foi o caso de nossa “deportação”. Retornamos a Amsterdã num ônibus repleto de adolescentes, conduzido por curioso guia, em constante atividade: distribuía passaportes, limpava cinzeiros, fazia preleções. A certa altura, como o padre procurando demover os fiéis do pecado ameaçando-os com os rigores do inferno, pôs-se a admoestar os jovenzinhos, alertando-os dos riscos de tentarem trazer drogas de volta à França. Contou história divertidíssima de um chien na fronteira, ao qual ministraram diferentes drogas, tendo aprendido a detectá-las, escondidas nas bagagens, pelo cheiro.
Dia 7 – Amsterdã
Após tanta desventura, um sono reparador, e nada mais... A não ser umas cervejinhas, croquetes e batatas fritas com maionese. Estão servidos?
Dia 8 – Amsterdã
Ao meio-dia deveríamos estar encontrando nossos amigos alemães (que conhecemos, ano retrasado, num pub de Inverness, bêbados, eles e nós) no mirante superior da Tour Eiffel. “Barrados”, entretanto, nas portas da França, conseguimos alcançá-los ainda em casa pelo telefone, e nosso final de semana parisiense acabou se metamorfoseando em alguns dias extras em Amsterdã.
Encontramo-nos ao meio-dia em frente à Centraal Station. Almoçamos juntos, num restaurantezinho simpático, com o teto decorado com bolachas de chope, menu em italiano, francês, alemão e inglês, além de holandês, e música de fita de variadas procedências, inclusive Jorge Ben. Após a sesta, saímos para a noite de Amsterdã. Aliás, um capítulo de destaque nesta encantadora cidade, onde a arte de receber o turista é exercida com perfeição. Há de tudo, para todos os gostos: cassinos, espetáculos eróticos, jantares a bordo de lanchas, pelos canais, rock temperado por haxixe (a legislação referente a drogas aparentemente endureceu: drogas pesadas são rigorosamente proibidas, e não mais existe na entrada de alguns bares o símbolo, que vimos há dois anos, da folhinha da maconha, que indicava ser o consumo de haxixe tolerado no local; porém, os famosos “clubes de drogas”, o decadente Paradiso, cujo auge foi na década passada, e a Melkweg, sobrevivem), mas o mais gostoso são os inúmeros bares, confortáveis, decorados em madeira, atapetados... A vida noturna aqui se concentra em dois pólos; atrás da Dam, a barra-pesada: porno-shows, porno-shops, putaria pura e simples (atrás de vitrinas), croquetinhos e batatas fritas sequinhas (o turista menos abonado não morre de fome aqui), e dezenas de mal-encarados oferecendo hashish e cocaine...; e nas imediações da Leidsplein, com seus artistas ambulantes, cafés com mesinhas do lado de fora onde, por uma cerveja, fica-se sentado o tempo que se quer, restaurantes de todos os tipos e os bares com música. No primeiro em que entramos, decorado com motivos náuticos, um barco inteiro pendurado no teto, um cachorro peludo metia-se por baixo das mesas, ou abocanhava bolachas de chope que lhe eram oferecidas, pensando talvez tratarem-se de bolachas. Saudades da caipirinha? Em Amsterdã tem, no Brazilian Music Hall, onde terminamos a noite, tomando Velho Barreiro a cinco florins a dose (mais de dois dólares e meio), ao som ao vivo da boa música brasileira e consolando o barman, rapaz do Realengo, há um ano na Europa, das saudades do Brasil.
Dia 9 – Amsterdã-Volendam-Amsterdã
Fizemos um passeio automobilístico a Volendam, pitoresca cidadezinha à beira-mar, onde almoçamos um bom bacalhau fresco (a porção estava pequena: de sobremesa, dividimos uma pizza).
Dia 10 – Amstedam-Bruxelas-Sohren
Quem vem à Europa, vem a Paris, Roma, Londres... A Bruxelas, entretanto, quem é que vem? A meio caminho entre Amsterdã e Paris, poucos se detêm nessa cidade. Todavia, privados da oportunidade de revermos a Cidade Luz, resolvemos, como consolo, fazer uma visita à capital belga: mais um país para nosso “repertório”.
Nossa intenção original fora pernoitarmos em Bruxelas, para no dia seguinte rumarmos à Alemanha, ao encontro da titia e Sérgio. No entanto, chovia tão torrencialmente, que acatamos a sugestão de nossos amigos, de permanecermos em Bruxelas apenas algumas horas, antecipando a ida à Alemanha, e pernoitando na casa deles. É claro que, numa visita tão corrida assim, captam-se apenas aspectos superficiais. Bruxelas, se bem que uma cidade imponente, mesclando o tradicional com o moderno, não nos conquistou à primeira vista: falta-lhe vivacidade, parece Suíça.
Levaram-nos nossos amigos ao Atomium, construção de esferas e tubos, representando um átomo, cujo interior se percorre através de elevador e escadas. Após almoço num restaurante chinês (mais um para nossa coleção!), caminhamos pelo centro: a tradicional peregrinação ao Manneken Pis (estátua de um menininho mijando; no Rio temos parecido o Manequinho) e a visita à Grand-Place, ladeada de construções majestosas folheadas a ouro, como o interior de algumas de nossas igrejas barrocas.
Sob intenso nevoeiro, entramos na Alemanha (ao contrário da França, nem passaportes nos pediram), com sua rede intrincada de rodovias interligando centenas e centenas de cidadezinhas, relativamente próximas umas das outras, graciosas e limpas como de brinquedo.
Dormimos em casa de nossos amigos, após só Deus sabe quantos chopes, que aqui chamam de pils. Tirar uma pils é coisa muito séria: inicialmente, sai com bastante espuma; deixa-se repousar, até a espuma baixar; aí sim, completa-se o copo, e serve-se; a cerveja é purinha, fabricada em moldes tradicionais, sem aditivos químicos ou cereais espúrios.
Dia 11 – Sohren a Königstein
Percorremos a belíssima região vinícola às margens do Reno, pontilhada de antigos castelos e cidadezinhas de contos de fadas, a caminho de Königstein, ao encontro de meu irmão Sérgio e de nossa tia materna. Visitamos o castelo de Marksburg, em perfeito estado de conservação, por nunca ter sido ocupado pelo inimigo, até a segunda grande guerra, e o monumento de Niederwald, em Rüdesheim, que homenageia as vítimas contra a França em 1870, e que se atinge por um teleférico.
Sobre a afluência alemã: impressiona, tanto quanto impressiona a miséria da Etiópia; são dois extremos. Na Holanda, ainda se veem mendigos (pouquíssimos) dormindo na rua, carros (pouquíssimos) estacionados em lugares proibidos e muitos, muitos papéis atirados ao chão. Na Alemanha, contudo, a assepsia é total. Está por nascer o anti-Marx, para escrever o Manifesto Capitalista, tão convincente quanto seu rival. Existem problemas individuais, é claro: maridos corneados, esposas abandonadas, filhos enjeitados; não há sistema possível que venha a eliminar tais mazelas. Por outro lado, o sistema é oneroso, com a ameaça a longo prazo de um colapso: assisti, na televisão, a uma entrevista de um secretário de educação, que alertou para o número cada vez maior de pessoas inativas indiretamente sustentadas pela força-de-trabalho, já que o alemão estuda até os trinta e se aposenta antes dos sessenta. De um pequeno empresário, ouvi o comentário de que o alemão-ocidental está “mal-acostumado”, vindo fatalmente a sucumbir a uma eventual crise mais profunda. O que gera tanta afluência? Em grande parte, a eficiência. Tudo aqui funciona, como o mecanismo de um relógio. A educação (todos aqui estudam: para se ser mecânico, carpinteiro, garçom, estuda-se alguns anos) e cultura também têm papel preponderante. A cortesia, na Alemanha de hoje, é regra de vida: existe um tom acima do qual ninguém levanta a voz e as crianças são inacreditavelmente quietas (citando o Juca Chaves, como chora criança brasileira!). Uma lição para nós brasileiros: com toda sua educação, afluência e eficiência, os alemães também já viveram (neste século) profunda crise econômica, a mais alta inflação do século e a aventura populista que conduziu a nação ao desastre.
Dia 12 – Passeio a Eppstein
Dia 12 – Passeio a Eppstein
Os alemães atingiram um grau de relativa igualdade social (igualdade entre aspas: existem as grandes fortunas; afinal, é a perspectiva de fazer fortuna o motor do capitalismo; entretanto, a níveis globais, as disparidades são irrelevantes; todos, da criadora de cavalos de Eppstein, passando pela ex-cozinheira e seu filho marceneiro microempresário, até o advogado de Paderborn, desfrutam de uma renda que permite, além da satisfação das necessidades básicas, a aquisição de bens duráveis, viagens ao exterior e o cultivo de hobbies; creio que, dividindo-se a renda dos 25% mais ricos pela dos 25% mais pobres, o quociente seja muitas vezes inferior do que no Brasil). Os alemães-ocidentais, dizia eu, atingiram um nível de igualdade social que Marx julgaria impossível numa economia capitalista, limitada pelas contradições internas. Acredito que, caso sobrevivamos à corrida armamentista, importantes revisões virão a ser feitas em conceitos hoje amplamente disseminados, como o de Deus, inconsciente e socialismo. O dogma da superioridade do socialismo sobre o capitalismo terá destino idêntico ao do geocentrismo: ruirá, vítima do confronto com a realidade.
Perguntei a meu irmão (pergunta cretina de turista!) por que, contrariamente ao Brasil, não se veem na Alemanha carros na beira da estrada com pneu furado: se os pneus aqui são de melhor qualidade, ou se por outra causa qualquer. Explicou-me existirem dois jogos de pneus, respectivamente para o verão e para o inverno, e que ao primeiro furo o pneu é trocado por um novo. Aliás, a rede de auto-estradas aqui é algo inimaginável para nós, acostumados a penar por estradas esburacadas, perseguidos por caminhões e espectadores de festivais de acidentes. Com três ou quatro pistas de rolamento em cada mão, as estradas alemãs permitem desenvolver velocidades de 140, 160 km/hora, sem a sensação de tão alta velocidade (só quando se pára num posto de gasolina ou bar à beira da estrada é que se sente como correm os veículos).
Falei sobre renda (a renda média líquida do alemão é de 2.500 marcos, ou seja, quase 1.500 dólares, mais alta do que a do holandês; porém, de aluguel, pagam-se até mil marcos), Autobahn, e o principal ficou para trás: a visita à casa de meus avôs maternos, em Eppstein. Assim que lá chegamos, fizemos breve visita às ruínas de antigo castelo (foto acima), no centro da cidade, a cuja torre sobe-se por estreita e escura escada em espiral, não recomendada a claustrófobos. A seguir, rumamos à casa do sr. Roth, nosso cicerone, encontro esse brindado com fina champanha. O sr. Roth é aposentado, ares de cientista maluco, e nos contou orgulhoso ter recentemente visitado a Rússia (revendo lugares onde lutara como soldado) e as Bahamas. Sabia também ter sido a inflação brasileira de 370% no ano passado e, como todo bom alemão, declarou ter os seus hobbies, sendo um deles jogar na bolsa (é por isso que o europeu não envelhece prematuramente). Almoçamos (água na boca!) aspargos frescos com presunto cru da Vestfália, aproveitando a estação. Em caravana, deixamos o centro da cidade, dirigindo-nos ao Hof Häusel, bonito solar onde viveu minha mãe, antes de meus avôs verem-se forçados a emigrarem para o Brasil, e que atualmente é ocupado por uma missão protestante, a WEC (Weltweiter Einsatz für Christus). Os estábulos em frente, que pertenceram a meu avô, ainda existem, praticamente intactos, utilizados por uma senhora divorciada, srª Bauer, que sobrevive cuidando de quinze cavalos já velhos cujos donos têm pena de matá-los. No final da tarde, o tradicional ritual alemão, as tortas com café, preparados pela senhora Roth. No início da noite, estávamos em casa de uma ex-cozinheira de meus avôs, numa cidadezinha próxima, cujo filho, formado em marcenaria, dono de pequena empresa, coleciona antiguidades, frequentando leilões em diferentes países, sendo sua residência verdadeiro museu.
Dia 13 – Königstein
Percorremos quase todas as alamedas dentro do parque desta aprazível estância hidromineral (até parece que estou mandando cartão-postal de São Lourenço), visitando ao final as ruínas de um castelo, no alto de uma colina. (Nota: recebemos, no hotel, prospecto com pequena planta da cidade, indicando os vários passeios no parque, com a duração de cada um, se contêm trechos íngremes ou não, etc.; cada percurso é representado, na planta, por uma cor. O que é a organização alemã: nos próprios caminhos, plaquetas coloridas, pregadas em árvores, indicam de que trajeto se trata; aqui ninguém se perde no mato!)
Vocês sabiam que meu bisavô materno era, em 1913, a 21ª fortuna da região da Vestfália? Eu também não sabia, mas está na edição de anteontem do Paderborner Zeitung. Para assistirmos à inauguração do Padersteinweg, que homenageia meu bisavô materno Emil Paderstein, eminente cidadão de Paderborn, fundador do banco local (depois incorporado ao Deutsche Bank) e vereador (Ratsherr) responsável por muitos melhoramentos, reunimo-nos, seus descendentes, aqui em Paderborn, a convite da prefeitura local.
Passamos primeiro pelo aeroporto de Frankfurt (imenso: de 8 às 9, contei quase 70 chegadas), para aguardar Ilse Jonson (neta de Emil) e sua filha Susan Bunting, dos Estados Unidos.
Em Paderborn, fomos recepcionados pelos srs. Auffenberg pai e filho (o primeiro, bom soldado nazista, conforme atesta antiga fotografia, pendurada na parede, quase perdida entre dezenas de gravuras e fotos, e infinidade de livros e revistas, até do século passado). Os alemães, de tão meticulosos, exatos, organizados, acabam sendo engraçados quando defrontados com uma condição inesperada: em linguagem de computação, diz-se que entram em loop. Foi o caso quando chegamos, Sérgio, eu e respectivas esposas, sem a titia e os parentes americanos, que estavam vindo em carro separado: parecia a fábula do velho, o menino e o burro; ora o velho cavalgava o burro, ora o menino, ora ambos, ora nenhum! Os Auffenberg pai e filho não sabiam o que fazer: se ficavam conosco no escritório, aguardando titia e as americanas; se Auffenberg pai levava Auffenberg filho a um compromisso, deixando-nos sós esperando titia; se nos levavam à hospedaria, para depois cuidarem da titia...
Almoçamos bons aspargos (está na época), visitamos a cidade e, à noite, tomamos Paderborner Bier com comidinhas, que ninguém é de ferro (niemand ist aus Eisen, ao pé da letra)!
Hoje de manhã inaugurou-se o Padersteinweg (“caminho de Paderstein”, alameda ao longo do rio Pader, no parque Heinz-Nixdorf). Discursaram o prefeito, Ilse Jonson e titia. Maiores detalhes, no Paderborner Zeitung do dia seguinte: é só encomendar!
Após lauto almoço, patrocinado pela prefeitura (não é só no Brasil que tem boca-livre! Oh, os deliciosos aspargos, com salmão defumado: nunca os esquecerei!), fomos conduzidos a um passeio nos arredores da cidade.
À noite, reunião em casa do sr. Auffenberg filho: defrontado com as três gerações sentadas, em círculo, no jardim, a conversação corrente como água, tortas de morango e de framboesa arrancando elogios dos convivas e sorrisos orgulhosos da dona da casa (um dos temas da conversação: qual a diferença entre as prendas do lar no Brasil e na Alemanha?), pensei, com uma ponta de ciúme: “é outra civilização!”, para depois me consolar: “tão eficiente, a ponto de exterminar sistematicamente mais de dez por cento de seus cidadãos sem que ninguém se desse conta”.
Dia 16 – Paderborn-Munique
As comemorações em Paderborn continuaram, porém Fátima e eu decidimos seguir viagem: afinal, temos muito pela frente.
Às sete e quarenta da manhã, pegamos o trem que nos deixou em Munique, com alguns minutos de atraso (na Alemanha?). Nosso dilema (estamos ficando organizados como os alemães): para a Grécia, de avião (com alguma tarifa especial, um stand-by), ônibus (reconhecidamente mais barato, porém um “saco”) ou de trem (confortável, porém “caríssimo”, nas palavras de qualquer europeu)? E mais: se de trem, via Itália, com direito a dezoito horas de barco de Brindisi a Patras, ou via Iugoslávia, com a aporrinhação de ter de tirar visto?
Nas imediações da Hauptbahnhof de Munique, existe uma área freqüentada por turcos (no Brasil, os imigrantes vêm para enriquecer; na Alemanha, compõem a mão-de-obra barata): porno-shops, lojas de aparelhos eletrônicos vagabundos, pequenos restaurantes de culinária grega ou turca, hotéis de poucas estrelas, pensões... Ficamos numa a 66 marcos o casal, sem o café, e com a ducha extra a 4 marcos. Precisamos economizar, para não chegarmos pobres na Grécia!
O avião, caro demais; o ônibus, não suficientemente barato a ponto de compensar tamanho desconforto; optamos pelo trem: sai diariamente às 21:38 (saiu com quatro minutos de atraso; será que a Alemanha não é mais a mesma?), chegando em Atenas dois dias depois, às 14:26. Depois desta, só mesmo a Transiberiana!
Tiramos visto no consulado iugoslavo, caminhamos um pouco pelo centro de Munique, visitamos a tia Wally (fez 94 anos no último domingo; irmã de meu avô paterno, sobreviveu ao nazismo escondida, na própria Alemanha, por famílias cristãs) e fizemos provisões para a longa viagem ferroviária no Hertie.
Após fazermos hora na estação, regada a queijos e... cerveja, embarcamos.
Dia 18 – Atravessando a Iugoslávia
O nazismo é fenômeno relativamente recente: algozes e vítimas ainda sobrevivem, algumas. O nazismo é o estigma alemão: não se consegue pensar na Alemanha dissociada do nazismo. Algumas questões podem ser levantadas: primeira, foi o nazismo fenômeno tipicamente alemão, ou poderia ter acontecido em outro país? Segunda, como é possível que ocorresse exatamente num país de tão alto nível cultural, berço de Bach, Beethoven e Goethe? Terceira, a população como um todo consentiu no extermínio? Em outras palavras, havia antissemitismo generalizado, nos mesmos termos em que existe hoje racismo, em certas regiões do Brasil?
Não cabe a mim dar resposta a tais questões: escrevo mero diário de viagem, não um ensaio histórico. Entretanto, é difícil o viajante judeu na Alemanha não se entreter com algumas dessas perplexidades. Posso relatar alguns testemunhos: da tia Wally e de um austríaco ex-marinheiro, criança no tempo de Hitler, admirador de Israel, cujo sogro é nazista até hoje, que conhecemos no trem. Quanto à terceira questão, ambos concordam no seguinte ponto: a população alemã, globalmente falando, gostava dos judeus; segundo a tia Wally, os médicos judeus eram os mais procurados, tendo Hitler tido dificuldades em fazer cumprir a proibição de cristãos se tratarem com eles; diz ela ainda ter havido alemães que, arriscando ser presos, esconderam judeus, fato ocorrido pessoalmente com ela. Também o austríaco afirmou peremptoriamente não ter existido sentimento antijudaico no sentido em que existe o racismo atual. Aí questionei: se não, como explicar o extermínio em grande escala de tantos cidadãos alemães? Resposta dele (sou mero narrador de fatos, longe de mim querer levantar polêmica): havia censura, e a população não tinha conhecimento do que estava acontecendo com os judeus. E mais: os nazistas remanescentes estão convencidos de o holocausto nunca ter ocorrido, não passando de propaganda americana, segundo eles. No entanto, existem provas de ter acontecido, entre elas o próprio campo de Dachau, que pode ser visitado.
Em suma: por mais que se aprofunde o estudo do fenômeno nazista na Alemanha, talvez nunca venha-se a compreender como foi possível povo tão culto, cortês e refinado ter descambado a tamanho nível de barbárie. E chega de Alemanha, que já estamos na Iugoslávia!
Vista através das janelas do trem (foto acima), as impressões são: em contraste com a Alemanha, de pobreza. Grande porção do campo é cultivado: nunca vi país com tamanha proporção de terra arada. No entanto, não se trata da agricultura ultramecanizada dos países capitalistas avançados, mas intensiva em mão-de-obra, muitas vezes velhas senhoras de roupa e capuz negros, provavelmente ainda os mesmos trajes usados pelos antepassados medievais. Os tratores não têm a imponência dos Massey-Fergusson, e são poucos. Chegamos a ver um instrumento até no Brasil superado: arado puxado a boi. Muitas casas são semi-acabadas, com tijolos expostos. As pequenas cidades têm aspecto desleixado, com sujeira nas ruas, gramados não aparados (atenção: contrastamos a Iugoslávia com a Alemanha: daí o rigor). Quando à capital, Belgrado (foto abaixo tirada do trem), a história é outra: não é a cristalização de outra era, como Ouro Preto ou Amsterdã; tampouco, superposição de camadas históricas, como Roma ou Atenas: Belgrado é moderna.
De longe, lembra um pouco Brasília: amplos espaços, largas avenidas, arquitetura futurista. Gozado: como Brasília tem cara de comunismo!
Vista através das janelas do trem (foto acima), as impressões são: em contraste com a Alemanha, de pobreza. Grande porção do campo é cultivado: nunca vi país com tamanha proporção de terra arada. No entanto, não se trata da agricultura ultramecanizada dos países capitalistas avançados, mas intensiva em mão-de-obra, muitas vezes velhas senhoras de roupa e capuz negros, provavelmente ainda os mesmos trajes usados pelos antepassados medievais. Os tratores não têm a imponência dos Massey-Fergusson, e são poucos. Chegamos a ver um instrumento até no Brasil superado: arado puxado a boi. Muitas casas são semi-acabadas, com tijolos expostos. As pequenas cidades têm aspecto desleixado, com sujeira nas ruas, gramados não aparados (atenção: contrastamos a Iugoslávia com a Alemanha: daí o rigor). Quando à capital, Belgrado (foto abaixo tirada do trem), a história é outra: não é a cristalização de outra era, como Ouro Preto ou Amsterdã; tampouco, superposição de camadas históricas, como Roma ou Atenas: Belgrado é moderna.
De longe, lembra um pouco Brasília: amplos espaços, largas avenidas, arquitetura futurista. Gozado: como Brasília tem cara de comunismo!
Cara de comunismo? Comunismo tem cara? Planejamento e burocracia: características comuns a Brasília e países comunistas. O que têm os países comunistas, para serem tão diferentes dos países capitalistas, em seu aspecto exterior, e tão “piores”? (A essa altura, estrilará o militante do P.C.: como piores, se neles não há putas nem Aids – quão moralistas os comunistas de hoje! – nem mendigos, nem toxicômanos, nem famintos etc. etc. etc.? Acontece que o conceito não é particular meu: em conversas informais a bordo de trens com cidadãos ordinários de países comunistas europeus, especificamente Hungria e Iugoslávia, tenho notado “sentimento de inferioridade” em relação à Europa capitalista: desprezo à língua russa, compulsoriamente ensinada, como “inútil”, frustração com os bens de consumo produzidos, crítica ao sistema ditatorial de governo etc.) Recapitulando: o que faz países comunistas terem a “cara” que têm? Primeiro, os automóveis são diferentes (fabricados na Rússia, Polônia, Alemanha Oriental), pequenininhos, como alguns italianos, ou “quadradões”. Perguntei a um iugoslavo se são de boa qualidade; resposta: têm boa máquina e duram até cinqüenta anos (!), mas o design é ruim. Segundo, os materiais são padronizados, por exemplo, as persianas das casas. Terceiro, os artefatos são rudimentares, parecendo por vezes “de brinquedo”: cancelas, bombas de gasolina, tratores... Porém, o que faz realmente uma cidade comunista parecer tão diferente das cidades capitalistas (levei tempo para “sacar” isto) é a ausência de publicidade: a parafernália de outdoors, letreiros de bares anunciando cervejas, propaganda onipresente, nos pontos de ônibus, nas cestas de lixo, nos relógios digitais, profusão de anúncios luminosos, os milhares de pequenos estabelecimentos comerciais, como vitrinas agindo como isca para o freguês... Somente uma viagem a uma nação comunista faz-nos perceber a que ponto a propaganda tomou conta de nossa paisagem urbana, sua ausência chegando a ferir nosso senso estético! Mas chega de divagação!
Atravessar de trem a Europa: experiência de vida toda peculiar! Numa única viagem de trem, estamos percorrendo quatro países, atravessando três fronteiras, num total de duas noites, um dia e metade de outro dia... Verdadeira maratona ferroviária, repleta de experiências fascinantes. Na noite em que saímos de Munique e, atravessando trecho da Áustria, penetramos na Iugoslávia, éramos, Fátima e eu, os únicos na cabine, o que nos permitiu esticarmos o corpo e dormirmos “quase como em casa” (só que, em casa, não há guardas de fronteira pedindo, de madrugada, o passaporte); às nove e pouco da manhã seguinte, acabou o conforto: ganhamos companheiros. A convivência entre seis viajantes, de quatro países diferentes, unidos pelo destino, por um dia de suas vidas, na mesma cabine de trem, foi uma grata experiência: um húngaro caladão, cuja única manifestação de existência foi um peido soltado na calada da noite; dois iugoslavos, arranhando o inglês (na escola, aprende-se aqui russo, inglês e, conforme a região, um terceiro idioma; o russo parece não ser benquisto: “aprender russo, para quê? visitar Rússia, Romênia, Bulgária? fazer o quê, nesses países?”), a caminho de Tessalônica, para comprarem vestuário (“lá tem maior sortimento”); um britânico, fotógrafo profissional, seguidor de estranha seita, “School of Economic Science”, que prega a submissão a pretensa lei universal (aqui, dou aos marxistas pitada de razão: o papel da religião tem sido a pregação sistemática da submissão). À noite, tivemos “forró” no trem: cantador, de sanfona na mão, entoava, em troca de algumas moedas, canções folclóricas marcando o ritmo com batidas de sola no chão. O vinho de mesa francês, o mais barato que consegui encontrar entre dezenas de marcas francesas, italianas, alemãs, portuguesas, etc., rolou. Pouco a pouco, todos foram se acomodando da melhor maneira possível, no aperto geral, e adormecendo. No meio da noite, todos fomos acordados: controle de passaportes na saída da Iugoslávia, controle de divisas, controle de passaportes na entrada da Grécia, controle das passagens... Às cinco da manhã, mais ou menos, Salônica: todos saltaram, o inglês, para pegar o trem a Istambul, os iugoslavos, para suas compras, o húngaro, sabe lá Deus para quê... De manhã, mal acordáramos, recebemos novos companheiros, dessa vez gregos: uma passageira recém-embarcada, que pensava ser Garcia Marquez brasileiro, com a qual fiz um pacto, de ler uma obra de autor grego, e ela leria obra de autor brasileiro, Jorge Amado, possivelmente; e um que já vinha no trem desde a Alemanha, em outra cabine, onde trabalhara seis meses no restaurante da irmã.
Às duas e meia da tarde, cansadíssimos, chegamos. Tão cansados que mal tivemos forças para sair para jantar. E, no entanto, jantamos duplamente: primeiramente, num restaurante indicado pelo guia; nitidamente comercial, não nos agradou; frustrados, fomos à forra: próximos do hotel, entramos numa taberna e jantamos pela segunda vez.
Dia 20 – Atenas
Mais de uma pessoa nos advertira para não perdermos mais de um dia com Atenas, e passarmos o máximo de tempo nas ilhas. De fato, afora os sítios arqueológicos, Atenas é uma cidade moderna (mais ou menos como Roma); porém, tem seus encantos, e dá vontade de ficar mais uns dias por lá.
O suprassumo do turismo na Grécia é fazer cruzeiro às ilhas. Sai caro: 400 dólares um cruzeiro de final de semana, e nosso tempo disponível é bem superior. Não nos deixamos deslumbrar pelo romantismo do navio e (seguindo dica de um amigo) optamos pelo mais prático: por 140 dólares, compramos bilhete das linhas aéreas gregas (Olympic Airways) Atenas-Rodes-Creta-Atenas.
Descendo-se a avenida principal de Atenas, em direção ao centro, divisa-se, ao longe, no alto de uma colina, a Acrópole. Resolvidos os problemas de câmbio e compra de passagens aéreas, tomamos o seu rumo, caminho natural do turista recém-chegado em Atenas. A Acrópole reúne as ruínas de várias edificações do período clássico, destacando-se o Partenon (templo de Atena, deusa da sabedoria). Aliás, quase dois anos antes, já havíamos sido apresentados, em Londres, a pedaços do Partenon. Há três séculos, ainda se podia admirar o Partenon inteiro. Com a decadência da civilização clássica, ele foi adaptado em igreja cristã. A partir da ocupação turca, porém, a Acrópole (estrategicamente situada) passou a ser usada como posto militar: o Partenon, depósito de munições, foi atingido por bala de canhão veneziano em 1687 e destruído, vindo a ser parcialmente restaurado no século passado. No século XVIII, fragmentos das frisas foram levados por lorde Elgin à Inglaterra, compondo até hoje o acervo do British Museum.
Almoço em Plaka, bairro antigo (da época da independência grega, no século passado), atualmente área de turismo, repleta de bazares, tabernas e casas noturnas. Esquivamo-nos de restaurantes com aspecto mais sofisticado, e acabamos atraídos (na Grécia, muitos restaurantes mantém um dos garçons à porta, convidando transeuntes a entrar) por taberna de aspecto simples, mesas ao ar livre, ocupado pela população turista jovem. Escolhemos os pratos com aspecto mais apetitoso, exibidos em panelões: folhas de parreira recheadas (prato comum aqui; no Brasil, costumam ser servidas em restaurantes árabes), ensopado de polvo e salada grega (tomate, pepinos, queijo de cabra, temperos e muito azeite). O conceito de “comida típica”, aliás, permite uma série de observações. Por exemplo, existe uma cozinha chinesa quase que universal: já comemos porco agridoce na Grécia, Bélgica, Escócia, Inglaterra, Bolívia...; o molho é basicamente o mesmo. No entanto, visitantes da China me relataram ser a comida lá completamente diferente, horrorosa por sinal. Por outro lado, já tivemos várias surpresas com a comida dita árabe: no Egito, por exemplo, não a encontramos; já a comida grega, contém muitos dos elementos associados à “comida árabe”: os legumes recheados, composição de saladas com tomates, pepinos e cebolas, a “coalhada árabe”, os espetinhos de carne (kababs, no Brasil, kaftas)... e a própria bebida nacional grega, o ouzo, não passa de um arak, bebida supostamente árabe. Pergunta: como bebida árabe, se os árabes não bebem? Por outro lado, apesar de aqui raramente comer-se arroz, “arroz à grega” não é invenção de restaurante brasileiro: às vezes peixe ou carne são servidos com pequena porção de arroz, duro como o da paella, com pedacinhos de verduras e passas. E para terminar: quem souber onde comer quibes fora do Brasil, que nos avise!
Despertado o apetite de meus leitores, vamos ao resto do dia: após o almoço e café para reanimar (outro mito que gostaria de contestar: de que o café consumido no Brasil é “lixo”, o bom sendo exportado; em nenhum país do mundo existe café tão gostoso como o do botequim da gare da Central do Brasil), voltamos à Acrópole, para o espetáculo do pôr-do-sol. Já noite, atravessamos mais uma vez o Plaka, até a praça Syntagma, onde pegamos o trolley para nosso hotel.
Dois pequenos incidentes: em Plaka, abordou-nos, em português, proprietário ou funcionário de um bazar, cidadão grego nascido no Egito, que emigrara para o Brasil, onde tem filhos já criados, tendo retornado recentemente à Grécia porque, em suas palavras contundentes, agressivas até, “no Brasil depois dos quarenta anos é-se impedido de trabalhar”. Na volta ao hotel, sem saber o preço exato do trolley, separei nota de cem dracmas (coincidentemente, o dracma vale mais ou menos o que valia o cruzado, no oficial, quando partimos), prevendo pagar a passagem e receber eventual troco; dentro do veículo é que observei não trabalharem os transportes públicos com troco: o passageiro já entra com a quantia exata em moedas, depositando-as numa urna. O preço por cabeça era 30 dracmas, porém, em moedas, só tinha cinqüenta. O motorista foi compreensivo: deu-nos desconto de dez.
Dia 21 – Atenas a Rodes
Pegamos o voo das cinco e quinze da madrugada para a ilha de Rodes, perto da costa da Turquia e a um passo – de gigante – de Chipre e dois de Israel. Foi o único voo em que ainda encontramos lugar. Tamanho era nosso sono, que nem deu para sentir medo do voo.
Para compensar a espelunca de Atenas, procuramos hotel mais ou menos sofisticado, próximo à praia, no qual demos prosseguimento a nosso sono, prematuramente interrompido.
Ao acordarmos, tivemos uma surpresa: nas palavras de Fafá, Rodes é uma cidade linda, limpa e toda florida. Verdadeiro paraíso dos escandinavos. Já no aeroporto, observáramos a quantidade de voos procedentes de nações escandinavas e da Europa central. O turismo aqui é uma atividade econômica que ocupa muita gente: nunca imaginei deparar com infra-estrutura turística tão completa, nos melhores padrões europeus, ruas e ruas repletas de restaurantes, pubs, bares, todos primorosamente decorados, num cenário quase tropical, mar de um azul de sonho, clima deliciosamente ensolarado.
Existem duas Rodes: externamente às antigas muralhas, a cidade moderna, cosmopolita, praiana; em seu interior, praticamente a cidade do tempo das Cruzadas, com acréscimos turcos: um transporte no tempo! Na Antiguidade, Rodes foi importante entreposto comercial, abrigando o famoso colosso, uma das sete maravilhas do mundo antigo; na Idade Média, serviu de cabeça-de-ponte para as incursões dos Cruzados à Palestina; em 1522, caiu sob domínio turco, até ser ocupada pela Itália fascista em 1912. Somente após a Segunda Grande Guerra é que passou a integrar o moderno estado grego.
Existem duas Rodes: externamente às antigas muralhas, a cidade moderna, cosmopolita, praiana; em seu interior, praticamente a cidade do tempo das Cruzadas, com acréscimos turcos: um transporte no tempo! Na Antiguidade, Rodes foi importante entreposto comercial, abrigando o famoso colosso, uma das sete maravilhas do mundo antigo; na Idade Média, serviu de cabeça-de-ponte para as incursões dos Cruzados à Palestina; em 1522, caiu sob domínio turco, até ser ocupada pela Itália fascista em 1912. Somente após a Segunda Grande Guerra é que passou a integrar o moderno estado grego.
As praias não chegam aos pés das brasileiras: compõem-se de espécie de cascalho acinzentado. Entretanto, nada mais distante do burburinho de nossas praias, os vendedores apregoando com estridência as mercadorias, cachorros e crianças irrequietas salpicando de areia os banhistas, a cerveja e cachaça “rolando soltas”... Aqui reina a contenção européia: os frequentadores se restringem a tomar banho de sol sobre as espreguiçadeiras que fazem parte da praia, sem maiores efusões; no mar sem ondas, predominam pedalinhos; por toda a orla, chuveiros, para o banho pós-praia. Grande parte das mulheres prescindem do sutiã, peça anacrônica para os nórdicos sedentos de sol. Em compensação, não existe a exibição de superdimensionadas bundas, matéria em que somos campeões, sim senhor!
Dia 22 – Passeio a Lindos
Fizemos passeio a Lindos, pequena aldeia litorânea de casas todas branquinhas, a uns 60 km de Rodes, com sua imponente acrópole sobre rochedo escarpado que mergulha no mar. Vejam as fotografias.
Último passeio em Rodes: acrópole do monte Smith (foto abaixo), com o antigo teatro e estádio; nosso adeus à cidade medieval. Irish coffee na cidade moderna. E o avião para Iraklion, principal cidade de Creta.
Dia 24 – Iraklion
De manhã, fizemos tour para Cnossos, onde, durante trinta anos, sir Evans escavou o antigo palácio, sede da civilização minóica, a mais antiga civilização européia, contemporânea da civilização egípcia. O tour terminou no museu arqueológico, que reúne afrescos, jóias, sinetes, inscrições, jarros etc. das antigas civilizações, encontrados em Creta. Uma observação de nossa guia: enquanto no palácio de Versalhes, apesar de imenso, não existe um único banheiro, o palácio de Cnossos possuía banheiro com banheira e... água corrente!
Dia 25 – Iraklion
Manhã de muito vento e poeira: foi-se o sol. Iraklion não é balneário, como Rodes. No entanto, parece haver aqui mais turistas do que habitantes, não obstante a cidade em si não ter beleza nenhuma. Não só as escavações arqueológicas atraem hordas, como Iraklion é importante porto de escala entre Atenas e Alexandria, no Egito, Limassol, em Chipre, e Haifa em Israel. Que estranho impulso traz número tão elevado de peregrinos aos palcos de civilizações arcaicas, tão distantes do cotidiano? Não se darão conta de que o contacto com o que restou de civilizações há tanto tempo mortas vem apenas realçar nossa fragilidade e fatuidade? Esconder-se-á, por trás destas vagas turísticas, sentimento semelhante ao que move o muçulmano a Meca e o cristão a Roma?
Não obstante a poeira a penetrar por todos os poros, fizemos pequeno passeio à zona do porto, onde se ergue antigo forte veneziano, de pedra, aberto à visitação. (Milhares de pessoas despenderam milhões de horas lapidando imensos blocos de pedra e encaixando-as umas sobre as outras, formando imensas muralhas, castelos, fortes, que, com a introdução da pólvora na Europa, tornaram-se, como que por passe de mágica, inteiramente obsoletos...) Após uma “pita” que me custou uma diarréia (tentarei descrever a pita: espécie de pão árabe ensopado no azeite, enrolado em forma de casquinha de sorvete, recheado com fatias de carne de porco, assada num imenso espeto giratório (foto), tomate, especiarias, batatas fritas...), descansamos à tarde no hotel, para à noite tomarmos ouzo com carne de carneiro na região do mercado, ouvindo (sem entender patavina) bem-humorados gregos de espessos bigodes a tagarelar... pitoresco, não?
A impressão que estamos tendo dos gregos é a melhor possível: ouvi de alguém ser a Grécia um país pobre de povo rico (o Brasil, coitado, é país rico de povo pobre)... Talvez o turismo tenha algo a ver com isso: é tão intenso, a ponto de fazer da Grécia imenso “parque de diversões”. Em nenhum outro país, vi tamanha quantidade de tavernas, bares, restaurantes... tem-se a impressão de que um de cada dois gregos sobrevive disso. O grego tem o aspecto vigoroso, não usa roupas rotas ou rasgadas (chamaram-me a atenção, sob esse aspecto, grupo de pescadores, em Rodes, muito bem trajados, com suas calças compridas de material impermeável, assim como mendigo – aparição rara! – na boca da rua Dédalo, trajando paletó impecável – só faltou a gravata!) e parece feliz. Costumo medir o grau de equilíbrio de um povo pelo consumo de bebidas alcoólicas: em algumas regiões do interior do Brasil chega a ser assustador, por exemplo; aqui aparenta ser baixo.
Sobre o grego (a língua): assim como surpreende chegar em Israel e ouvir o hebraico, língua associada aos livros de reza e à sinagoga, na boca de putas, açougueiros, motoristas de caminhão..., igualmente causa certo estupor ouvir a língua dos filósofos (modernizada), o alfabeto zelosamente estudado no curso de Filosofia, usados no dia-a-dia. Outra descoberta interessante: a expressão “isso para mim é grego”, denotando algo incompreensível, não é pertinente (o Ricardo já me chamara a atenção para isso). Há muito mais semelhanças entre o grego e o português do que sonha nossa vã filosofia (muitos termos das línguas latinas e anglo-saxônicas compõem-se de radicais gregos). Alguns exemplos: taberna (taberna), kajeteria (kafeteria), qhlejwnon (telefonou), kronasan (krouasan)... Entenderam? (A última palavra é “croissant”)
Dia 26 – Iraklion-Mykonos, digo, Iraklion-Atenas
Mykonos, escrevi acima? Era nossa intenção. Porém, quando vimos o caixote voador, cruzamento de helicóptero com os aviões militares usados pelos americanos na invasão da Normandia, desistimos. Teleférico sem fio? Não!
À noite, refeitos do susto, voamos para Atenas: num 737!
Dia 27 – Atenas a Mykonos
Apesar de termos ido dormir a uma da madrugada, pedimos para nos acordarem às seis, e lá fomos nós, em jejum, de metrô, para o Pireu, a fim de pegarmos o navio das oito para Mykonos.
Mykonos é uma cidadezinha diferente de qualquer outra. Em primeiro lugar, vive exclusivamente de turismo. Lá quase não há as coisas normais vistas nas outras cidades: tinturarias, oficinas mecânicas, escritórios de contabilidade... só há hotéis, hospedarias, quartos para alugar, motocicletas para alugar, lojas de souvenirs, tavernas... a arquitetura é sui generis: parece cidade de escultura.
As casas parecem moldadas no alabastro: normalmente sobrados, menores do que as casas “normais” com que estamos habituados, branquinhas, branquinhas, de ferir a vista, por serem revestidas de cal, arestas arqueadas, sobressaindo-se janelas e portas de cores vivas, azuis, verdes, contrastando com o branco. As ruelas, estreitíssimas, cobertas de pedras com faixas de cal pintadas sobre elas, formando estranhos quadriláteros, chegando a lembrar cenários de alguns filmes expressionistas. A placidez é interrompida, por vezes, pela zoeira de pequenos triciclos motorizados. Nas fachadas frontais das casas, íngremes escadas brancas, algumas com vasos de flores sobre os degraus, conduzem ao pavimento superior; algumas moradias têm grinaldas dependuradas, normalmente de flores, contendo porém por vezes réstias de alho ou cebola.
As casas parecem moldadas no alabastro: normalmente sobrados, menores do que as casas “normais” com que estamos habituados, branquinhas, branquinhas, de ferir a vista, por serem revestidas de cal, arestas arqueadas, sobressaindo-se janelas e portas de cores vivas, azuis, verdes, contrastando com o branco. As ruelas, estreitíssimas, cobertas de pedras com faixas de cal pintadas sobre elas, formando estranhos quadriláteros, chegando a lembrar cenários de alguns filmes expressionistas. A placidez é interrompida, por vezes, pela zoeira de pequenos triciclos motorizados. Nas fachadas frontais das casas, íngremes escadas brancas, algumas com vasos de flores sobre os degraus, conduzem ao pavimento superior; algumas moradias têm grinaldas dependuradas, normalmente de flores, contendo porém por vezes réstias de alho ou cebola.
Após o almoço, fomos à procura de abrigo: hospedamo-nos, a preço módico, num quarto de casa particular, usada como pensão. Dadas as peculiaridades da cidade, cujas ruas formam literais labirintos, tomamos a precaução de gravarmos algumas coordenadas, que nos facilitassem, mais tarde, a volta ao local de pouso. Anotamos o nome do bar defronte à casa: Anargyros. Providencial ação: havia navios ao largo e, à noite, a cidade foi tomada de assalto por hostes de turistas. No meio a tanta gente, por casas e ruas tão semelhantes umas às outras (e depois, naturalmente, de uma garrafa de vinho), tivemos dificuldade em reconstituirmos o caminho de casa. Salvou-nos um letreiro sobre uma seta: Anargyros.
De manhã, incursão fotográfica por Mykonos, procurando fixar seus aspectos característicos. Não escaparam às nossas fotos alguns personagens típicos daqui: os gatos, os burricos de venda de hortaliças (foto abaixo) e (last but not least) Petros.
Petros é o pelicano de estimação de Mykonos, figura de cartões postais, amado pelas crianças, as quais assusta abrindo seu bico imenso, quando por elas importunado. Solto na praça principal, Petros é uma graça: anda de lá para cá, sempre perseguido por algum fotógrafo, mete-se entre os stands de cartões postais, circula pelas mesas dos bares. Petros figura nos álbuns fotográficos de milhões de turistas que visitaram Mykonos: sob certo aspecto, é mais famoso do que a rainha da Inglaterra.
Petros é o pelicano de estimação de Mykonos, figura de cartões postais, amado pelas crianças, as quais assusta abrindo seu bico imenso, quando por elas importunado. Solto na praça principal, Petros é uma graça: anda de lá para cá, sempre perseguido por algum fotógrafo, mete-se entre os stands de cartões postais, circula pelas mesas dos bares. Petros figura nos álbuns fotográficos de milhões de turistas que visitaram Mykonos: sob certo aspecto, é mais famoso do que a rainha da Inglaterra.
À tarde, voltamos de navio para Atenas.
Dia 29 – Atenas
Último passeio por Atenas: mercado de pulgas, Plaka (onde compramos estatuetas de alabastro e os dois quadrinhos que enfeitam nossa sala), imediações da Acrópole. Último almoço grego. Último jantar: na saída do restaurante próximo ao hotel que nos acostumamos a freqüentar, fomos saudados por toda a equipe (como num filme), do cozinheiro ao caixa, passando pelo gerente. Que gente simpática, os gregos!
Dia 30 – Atenas-Amsterdã-Rio
Mortos de saudades do nosso lar, sorridentes embarcamos no avião da KLM para Amsterdã, onde conectamos com o voo para o Rio. Após quase um mês sem notícias do Brasil, eis que ele dá os primeiros sinais de vida. No International Herald Tribune, distribuído no voo, a notícia de que a inflação brasileira em maio foi de 17,8%.
Texto e slides (digitalizados) de Ivo Korytowski
Rio de Janeiro, 6 de junho de 1988
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