O DOURADO REFULGENTE, de Jorge Hausen


O AUTOR: Jorge Hausen é gaúcho de Porto Alegre, tchê!, mora há muitos anos no Rio de Janeiro (na mesma rua que o editor deste blog) e é geólogo por profissão. Participa da Oficina Literária Ivan Proença. O texto a seguir foi extraído do livro A prenda de Seu Damaso, segundo lugar do Prêmio Jabuti de contos de 2008. Escreve Moacyr Scliar no Prefácio: "Ele é um excelente contista. Nisto ele se vincula à tradição gaúcha do 'causo', o costume de contar histórias ao redor do fogo, no galpão, enquanto a cuia de mate passa de mão em mão. É este prazer da narrativa que Jorge Hausen passa a seus leitores."

Sudeste rio-grandense, tardezinha, a algumas léguas da fronteira com o Uruguai, no Capão do Leão, a roda dos amigos estava completa. Hora do chimarrão, do trago (a branquinha de mão em mão) e da conversa fiada. Todos, homens do campo. A maio-ria, seis, filhos dos abastados fazendeiros, fazendeiros das antigas. Gente criada no galpão a leite fresco, carne gorda e fogo de chão [as palavras em vermelho estão no glossário no final], igual à peonada, sem regalia nem folga – dureza, mão grossa de calo. Chapéu preto de feltro na cabeça: aba larga e barbicacho. Lenço no pescoço: vermelho (maragato) ou branco (pica-pau). Camisa de manga arregaçada e colete. Guaiaca alçava as bombachas: o 38 no lado direito, a faca nas costas – os fala-verdade, como chamados. Bota: cano alto, couro de rês e tacha de pessegueiro.
Eles, nos mochos, sentados, o mate e a prosa iam e vinham. Rigorosa ordem. Na hora da cana, por encanto, certo desajuste, a velocidade aumentava. Sede que era.
Na vez de Homerinho Fagundes, cuia na mão, pigarreou, limpou a garganta e começou a trova:

“Não trago testemunha, andava sozinho. Foi lá pros campos do finado coronel Noca Sarmento, nas barrancas do rio Teodósio. Batia casco pelo caminho com meu glorioso malacara – El Gran Vencedor. Poncho forrado, aposta de cancha-reta ganha na Fazenda Estrela do Sul. Ninguém ganha dele no estirão de qualquer cancha, botou pescoço na frente do segundo – o favorito. No caminho, de repente do alto da ponte Velha, no passo do Nhandu-Tatá, avistei, lá nas pedras, na margem do rio, fulgurado no sol a pino do meio-dia, um baita, um baita de um dourado. Deus me benza, animal que não acabava mais, sobrava pra frente, pra trás, pros lados – descalabro de bicho. No grito apeei. Tirei as pilchas todas – espalhadas no chão. Desenfreado, correndo desci o escalvado. Me joguei em cima, no lombo do monstro que bufava, esperneava, corcoveava como bagual na doma. Eu, firme em cima, rédea curta não lhe dava folga. O entrevero todo durou perto de hora, até que não dava mais pra agüentar aquela onça de peixe. Inda de inhapa aquele solzão todo de prancha me queimava a bunda. Tava nas últimas. Suava de molhar o rio. Fraquejava até das pernas, tremendo do esforço. Sem pensar, no puro instinto, vida ou morte, decidido puxei da faca e enterrei o ferro pela costela adentro do desgranido. Grito horrendo de dor...”

“Pera aí” – atalhou Zeca Netto – “tu não tava pelado? Que estória de faca é essa?”

“Que merda, Zeca Netto. A gente tá aqui pra contar causo ou pra discutir?”

Glossário
1 Fogo de chão: fogo que se acende nos galpões das estâncias para o preparo do mate e do churrasco ou ponto de reunião de tropeiros e peões.
2 Barbicacho: cordão, cadarço ou trança de couro, com as extremidades presas à carneira do chapéu, que passa pelo queixo de quem o usa, para prendê-lo à cabeça em dias de vento.
3 Guaiaca: cinto largo de couro macio que serve para o porte de armas e para guardar dinheiro.
4 Fala-verdade: armas pessoais.
5 Mocho: banco individual sem encosto.
6 Trova: fala, conversa.
7 Malacara: animal que tem a testa branca, com uma lista da mesma cor que desce até o focinho.
8 Poncho forrado: com muito dinheiro.
9 Cancha-reta: lugar plano e reto preparado especialmente para corridas de cavalo.
10 Nhandu-Tatá: avestruz de fogo (do tupi)
11 No grito: de imediato, rapidamente.
12 Pilcha: vestimenta típica do gaúcho ou roupa em geral ou os arreios.
13 Bagual: cavalo selvagem, isto é: ainda não domado.
14 Inhapa: brinde (do quíchua).

2 comentários:

Serra do Mar disse...

Olá
Meu nome é Vanize, e conheci o Jorge Hausen tempos atrás. Estava sem notícias. Se possível você poderia me mandar um e-mail dele ou falar pra ele que eu o estou procurando ? Já estive na casa dele na Urca, talvez já tenhamos nos visto por lá. Obrigada.

Jorge Hausen disse...

http://jorgehausen.blogspot.com/2009/11/lancamento-livro-surpresinha.html