CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: POESIA DA VIDA


RELOGINHO, RELOGINHO
Carlos Drummond de Andrade

Reloginho, reloginho
embora apenas suplente,
bate bate direitinho,
bate bem rapidamente
a hora de meu bem chegar.
Mas se é hora de partir,
atrasa o mais que puderes
e não deixes nunca ir
a mais doce das mulheres.

Reloginho, compreendido?
Sempre teu, agradecido.

Do livro Poesia errante


DEZOITO ANOS SEM DRUMMOND

Edmílson Caminha
Texto escrito em 2005

Faz 18 anos que se foi Drummond, em 17 de agosto de 1987, exatamente doze dias depois que morrera a filha amada, Maria Julieta. A propósito da data, vem-me à memória não o poeta, o cronista, mas o brasileiro Carlos, o cidadão comum, igual a tantos outros homens e mulheres do seu tempo. Servidor público, foi Drummond, de 1934 a 1945, chefe de gabinete do Ministro da Educação, seu amigo e conterrâneo Gustavo Capanema. Não nos esqueçamos de que o Presidente da República se chamava Getúlio Vargas, que mantinha o governo sob rédea curta e administrava o Brasil com mão de ferro.

Como vemos, Drummond esteve, por onze anos, muito perto do poder e a poucos passos dos poderosos, e disso não se aproveitou para usufruir privilégios nem para fazer fortuna: viveu honrada e parcimoniosamente, com os ganhos de funcionário público e de escritor que colaborava na imprensa. Deixou para a viúva, Dona Dolores, a pensão devida e um bom mas nada luxuoso apartamento, na Rua Conselheiro Lafaiete, entre Copacabana e Ipanema, em que hoje mora o neto Pedro Augusto e onde já estive muitas vezes.

Se há quem hoje diga, em meio ao escândalo de mensalões, que participou de falcatruas apenas para receber dívidas, Drummond poderia ter prevaricado sob a desculpa de que, para os mortais, é duro resistir quando se está tão perto do tesouro... Não o fez, pelos princípios morais e pelos valores éticos que lhe nortearam a existência. Já dissera Machado de Assis: "A ocasião não faz o ladrão: faz o furto. O ladrão já nasce feito."

Assim, tanto quanto uma admirável obra, Carlos Drummond de Andrade nos deixou uma lição e um exemplo: uma lição de vida e um exemplo de dignidade, com que honrou o Brasil e fez melhor o tempo que lhe foi dado viver.

Escritor e jornalista, Edmílson Caminha é o autor de Drummond: a lição do poeta (Brasília, Thesaurus, 2002).




VIOLA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Cyro de Mattos

Dos humanos desacordes
compuseste a tua viola
afinada atrás do tempo.
De tudo um pouco ensinas
na arte de ver a vida
além de tudo vinagre.
Esta pedra no meio
do caminho estrepa.
No que segue claro
me sinto menino, maior,
montanha, tamanho de José,
no que não se desvenda
oh, razão, mistério
ninguém acha escape.
E vozes mais das vezes
uma esperança perdida,
a morte do leiteiro,
um quadro na parede,
são alçapões do amor.
Ó da rosa radiante,
a que chamamos solitude,
palavra no ar, tuas mãos,
espantos, tantos espantos.

Do livro Os Enganos cativantes


Grafite de Drummond na entrada do Túnel Velho, Copacabana

PORQUE MEU BEM FAZ ANINHOS
Carlos Drummond de Andrade


Porque meu bem faz aninhos
um raio de sol dourado
entrelaçou mil carinhos
pelo céu, de lado a lado.

Um ramo de beijos ternos
balançava sobre os ninhos
entre miosótis eternos
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
o rei, o valete, a sota
mais a fada e os anõezinhos
dançaram samba e gavota.

A nuvem mais cor-de-rosa
enfeitiçou-se de gatinhos
de bigode à Rui Barbosa
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
eu ganhei um chocolate
que tinha sete gostinhos
todos do melhor quilate.

Hoje eu brinco, pulo, canto,
assim como os passarinhos,
e mais eu canto me encanto
porque meu bem faz aninhos.

Do livro Poesia errante (1988)


E AGORA, POESIA? (trecho de matéria da revista Veja de 26 de agosto de 1987)

Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na primeira, o poeta mineiro, de 84 anos, enterrou a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta, de 57, vítima de um câncer generalizado. Cabeça baixa, olhos secos e atônitos, Drummond (...) disse: “Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim.”

Doze dias depois, o poeta morto [às 20h45 de 17 de agosto de 1987] percorreu a alameda, conduzido no caixão pelos seus três netos e amigos.

A PALAVRA, NO MEIO DO CAMINHO (trecho de um dos raros depoimentos do poeta, concedido em janeiro de 1984 a Edmílson Caminha e publicado no suplemento literário do Diário do Nordeste).

Edmílson: Seus versos já viraram letra de música, enredo de escola de samba e tema de campanha eleitoral. Partindo-se do debate em torno do que é nacional e do que é popular na cultura brasileira, você se considera um poeta popular?

Drummond: Não, eu não me considero um poeta popular, não tenho essa pretensão. Claro que eu gostaria de ser, mas o conceito de poeta popular é muito ligado aos meios de comunicação de massa. Eu não tenho acesso a eles, a televisão jamais me contrataria para fazer um programa semanal. (...) 0 escritor de papel perde longe para os compositores e para os poetas chamados populares. Acho até que o poeta popular de cordel tem mais divulgação do que o poeta brasileiro dito de elite.


Drummond e a Cow Parade (2011)

VISITA A DRUMMOND (do livro de Antonio Carlos Villaça, Os saltimbancos de Porciúncula).

Drummond não gostava de receber ninguém na sua casa. Muitas vezes, conversei com ele, no gabinete do MEC, uma espécie de furna com armários de aço, a isolá-lo do resto da sala.

Fui uma única vez ao seu apartamento, já no fim, dia 18 de setembro de 1985. E por motivos especiais. Maria Julieta, a filha única, fora eleita para o Pen Clube. E morava num minúsculo apartamento, na rua Barão da Torre. Seria impossível receber lá a diretoria do Pen Clube, para a comunicação oficial.

Drummond, solícito, resolveu que a reunião seria em sua casa, um sétimo andar na rua Conselheiro Lafaiete. (...)

Pois nos recebeu au grand complet, em grande estilo, um senhor coquetel, vários garçons, uísque, vinho, salgadinhos variados e até doces. Foi uma festa. O poeta caprichou. Amava tanto aquela filha, que morou longos anos em Buenos Aires.

O poeta estava feliz. Elegantíssimo, de camisa azul, paletó claro. Ia e vinha. como um perfeito anfitrião. Não propriamente à vontade, cerimonioso (como era seu feitio). Mas tão amável. (...)

Mais de meia-noite, Drummond acompanhou os visitantes até a calçada.

TRECHO SOBRE DRUMMOND na década de 1930 do 4o volume das memórias de Pedro Nava, Beira-mar

Era muito magro, mas extremamente desempenado, tinha o gauche que tornar-se-ia folclórico, um ar de orgulhosa modéstia (não sei se posso colocar juntas as duas palavras, entretanto não acho outras), aparência, à primeira vista, tímida, escondendo o homem dono de uma das maiores bravuras físicas e morais que já tenho visto juntas na mesma pessoa. Engana-se quem o julgar pela magreza e pelo franzino. Na realidade esse ser delgado é todo feito de tiras de aço, de couro, de juntas de ferro que servem o homem forte que ele é.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Poema de Manuel Bandeira em homenagem aos 60 anos de Drummond

Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent'anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas.
Prima na Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de Andrade.)

Como é fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Louvo o Padre, o Filho, o Espírito.
Santo, e após outra Trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é Carlos Drummond de Andrade.


VINTE ANOS SEM MARIA JULIETA E DRUMMOND
Texto de 2007 de Edmílson Caminha

Os vinte anos da morte de Maria Julieta — em 5 de agosto [de 1987] — e de Carlos Drummond de Andrade, apenas doze dias depois, são marcados pelo nascimento de um herdeiro e pela edição de um livro. A criança é Miguel, filho de Josiane e de Pedro Augusto, que vem ao mundo com a honra de ser neto de Maria Julieta e de Manuel Graña Etcheverry (grande intelectual argentino) e bisneto de Dolores e do poeta Carlos. O livro é Querida Favita, com mais de cem cartas (inéditas!) do itabirano famoso para a sobrinha Flávia — ou Favita, como carinhosamente a chamava. A edição, bem cuidada e elegante, é da Universidade Federal de Uberlândia, e já tem dois lançamentos confirmados: em Belo Horizonte, no dia 18, e em Brasília, no dia 23.

Que se homenageie Drummond, mas que não nos esqueçamos da grande escritora que foi Maria Julieta. Aí estão, para provar, Um buquê de alcachofras e Pombos & gatos. E, principalmente, A busca, admirável romance escrito por uma jovem de 17 anos, que impressiona pela força dos sentimentos e pela boa realização literária. É hora, já, de organizar em livro as centenas de crônicas escritas por Maria Julieta para O Globo, textos que a incluem, sem favor, entre os melhores nomes do gênero na literatura brasileira.

Certo dia, ao lhe dizer que algumas das suas crônicas, de tão primorosas, poderiam ser assinadas pelo pai, revelou-me ela um segredo: às vezes, por estar acamada, Drummond escrevia a crônica para O Globo; em troca, chegou a filha a mandar, para o Jornal do Brasil, crônicas suas como se fossem do pai. “E nunca ninguém reclamou, nem de um lado nem do outro...”, disse, ao confessar a jogada de cúmplices.

Desaparecidos há vinte anos, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade continuam vivos, pela grandeza da obra com que fizeram o mundo melhor e a vida mais bela.


DRUMMOND PERMANENTE
Poema de Cyro de Mattos

Em meu ouvido um pássaro
Canta de tudo os instantes
Neste diálogo com o mundo
Como oferendas do amor.
Quantas vezes não mundo
Tão solidário enternece.
Por entre gestos de espanto
Nesta rosa dos eventos
Não sei o que mais comove,
Canto ao homem do povo,
Aquele quadro no deserto,
Sinais e expressões do tempo
Faminto de situações patéticas.
Apenas eu sei que tropeço
Nesta pedra no meio de tudo.
Ó de Itabira, se bem procuro,
Afinal termino encontrando
Não a explicação (relativa)
Da vida mas a beleza,
Sem explicação, da vida.



MÃOS DADAS
Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.




O POEMA MAIS GENIAL DE DRUMMOND

No meio da jornada da vida, entre a primeira fase modernista de uma poesia vigorosa, incisiva, antilírica (prosaica por vezes), em suma, de ruptura com o passado, E agora José, No meio do caminho tinha uma pedra, e a fase madura de intenso lirismo, “sentimentalismo ginasiano, lirismo kitsch” acusa/exagera o polêmico Diogo Mainardi, Porque meu bem faz aninhos, Quero ser namorado a vida inteira, época em que conquistou um grande público como cronista de jornal, em meio a essas duas fases, dizíamos, Drummond publica um livro surpreendente, de grande elaboração formal, uma poesia "erudita", no nível dos grandes clássicos do vernáculo: Claro Enigma (1951). Ali figura o poema mais genial de Drummond, o melhor poema brasileiro de todos os tempos segundo alguns escritores e críticos: “A máquina do mundo”.

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


JARDIM

Negro jardim onde violas soam
e o mal da vida em ecos se dispersa:
à toa uma canção envolve os ramos,
como a estátua indecisa se reflete

no lago há longos anos habitado
por peixes, não, matéria putrescível,
mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados

e mãos oferecidas e mecânicas,
de um vegetal segredo enfeitiçadas,
enquanto outras visões se delineiam

e logo se enovelam: mascarada,
que sei de sua essência (ou não a tem),
jardim apenas, pétalas, presságio.


"as janelas olham"

CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.


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