Nas Sextas-Feiras Santas do passado, os trens da Central do Brasil não apitavam nem mesmo quando entravam ou saíam dos túneis espalhados pelo trecho que ia de Belém, atual Japeri, até Mendes, subindo a serra do Mar com o esforço de suas caldeiras alimentadas com o bom, o sólido, o inigualável carvão inglês.
Com a guerra, em 1939, o carvão importado foi substituído
por lenha nacional, que muito devastou florestas, fazendo da carne de nossas
árvores o alimento daquelas fornalhas escuras que produziam uma fumaça
esbranquiçada. Muitos trens não conseguiam subir a serra e precisavam do
reforço de uma locomotiva extra, que ia e vinha engatada nos últimos vagões,
como um Cirineu ajudando a composição a levar a cruz ao alto de um calvário
ferroviário.
Mas os trens não apitavam nas Sextas-Feiras Santas. Passavam
silenciosamente pelas estações menores, fazendo estremecer as casas mais
próximas e participando, com a sua mudez, da mudez geral, pois os rádios também
não tocavam, nem os sinos das igrejas: era uma pausa no ruído do progresso e do
mundo. Não chegava a ser triste, mas era diferente, doía em algum lugar, por
menos que se pensasse na paixão e na morte de um Deus crucificado.
Joaquim Pinto Montenegro, que viveria toda a sua vida em
torno dos trens da Central, tinha nas Sextas-Feiras Santas o seu grande dia.
Era com orgulho que fiscalizava cada trem que passava por Rodeio, estaçãozinha
perdida entre os dois maiores túneis do Brasil naquela época, o 11 e o 12. Não
chegava a ser um homem religioso; na verdade, pouco ligava para o drama antigo
do qual tinha uma noção vaga e descomprometida.
Achava que, como funcionário do Departamento de Dormentes e
Trilhos, cumpria-lhe tomar conta da tradição que já encontrara quando, aos 20
anos, entrara como sinaleiro do entroncamento que desviava as locomotivas no
pátio de manobras, pouco antes de os trens serem devorados pela bocarra escura
do túnel 12, o maior do continente na sua opinião e na de seus iguais do quadro
efetivo dos servidores da Central do Brasil.
Por isso, principalmente, a Sexta-Feira Santa era um dia
especial, diferente de todos os outros, pois os trens não apitavam, e isso lhe
exigia um esforço suplementar, embora nem trabalhasse nesse dia. As locomotivas
ficavam apagadas e imóveis como bichos que dormiam um sono de ferro. O tráfego
era menor em todo o percurso da serra do Mar.
Ele desfrutava o feriado tomando conta dos trens que
inesperadamente surgiam do túnel 11, sem apitar, sem avisar que estavam
chegando — e Joaquim Pinto Montenegro olhava com emoção a comprida Mallet, made
in England, que parecia uma viúva enorme e sem grito, vencendo penosamente a
garganta que a separava do comprido, do sinistro túnel 12.
Joaquim Pinto Montenegro não precisava dos apitos para saber
quem chegava ou saía dos dois túneis, que formavam, na sua opinião e na de seus
iguais, as jóias mais preciosas da coroa de glórias da engenharia ferrocarril
nacional. Ele as pressentia milimetricamente. Pelo silêncio de cada locomotiva,
sabia o nome do maquinista, do foguista, do chefe do trem que, naquele
instante, deveria estar percorrendo vagões, avisando aos passageiros que a
próxima estação era Rodeio.
Joaquim Pinto Montenegro não era religioso, mas respeitava a
Sexta-Feira Santa como respeitava o código de sinais que sabia fazer com as
duas bandeirinhas, uma verde, outra vermelha, orientando as pesadas locomotivas
que obedeciam rigorosamente a seus movimentos, parando quando a bandeira era
vermelha, indo à frente quando era verde. Nem a mão formidável de Deus, regulando
o movimento dos astros no espaço infinito, era mais solene e poderosa do que a
de Joaquim Pinto Montenegro.
O último trem passava em direção ao túnel 12. Era já noite
fechada na serra do Mar, o barulho ritmado dos vagões iluminados acentuava o
silêncio geral. Era hora de Joaquim Pinto Montenegro fazer uma coisa extraordinária
na sua vida de guia e de protetor dos trens da Central do Brasil.
Como todo mundo naquela época, Joaquim não comia carne
naquele dia santificado pelo silêncio das locomotivas que cheiravam a carvão
civilizado. Como todo mundo, Joaquim
comera peixe no almoço. E, como todo mundo, sentia-se um pouco
enfraquecido ao final do dia. Era necessário suplementar suas energias com um prato
de canjica que todos tomavam nesse dia, como um sacramento, um alimento sagrado
e permitido. Joaquim tomava sua canjica com solenidade, com a mesma autoridade
com que manobrava suas bandeirinhas no pátio de manobras.
(Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 13/4/2001. Fotografia de Dana Merril obtida na Biblioteca Nacional Digital.)
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