PALESTRA PROFERIDA NO NIEM (NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS MIGRATÓRIOS) EM 5 DE OUTUBRO DE 2017
Como todo bom cético, desconfio das profecias. Quando alguém profetiza que o mundo vai acabar, e olha que nunca faltaram os profetas do apocalipse, a gente sabe que as chances da profecia se realizar são de 0,00001 por cento. Mas se existe um profeta no Antigo Testamento para o qual podemos tirar o chapéu foi Ezequiel ao prever: “E espalhar-te-ei entre as nações, e dispersar-te-ei pelas terras” (Ezequiel 22:15). A história dos judeus é uma história de glórias – a saída do Egito e conquista da Terra Prometida, os reinados de David e seu filho Salomão, a vitória sobre os selêucidas comemorada até hoje na festa do Hanucá, a fundação do moderno Estado de Israel – mas também é uma história de sofrimentos. Os judeus sofreram três diásporas: primeiro o reino de Israel, reunindo as tribos do norte, foi conquistado pelos assírios e seus habitantes, dispersados e assimilados pelas culturas circundantes, sem deixar traços – daí as “lendas” envolvendo as tribos perdidas de Israel. Depois o reino de Judá, ao sul, foi conquistado pelos babilônios e sua elite foi levada para o exílio na Babilônia, até que o tolerante Ciro, rei da Pérsia, permitisse seu regresso e a reconstrução do Templo. E enfim adveio a terceira e mais prolongada Diáspora quando a Judeia ousou desafiar o poder do Império Romano e, após dois grandes confrontos, foi arrasada e sua população judaica foi aniquilada, dispersada ou escravizada. O Templo foi destruído e até hoje quem visita Jerusalém pode ver um de seus muros de arrimo em ruínas: o Muro das Lamentações. E quem visita o Foro Romano na Cidade Eterna vê o Arco de Tito comemorando a vitória sobre os judeus. Um dos painéis em relevo do arco mostra os espólios levados do Templo de Jerusalém, entre eles a menorá (candelabro de sete braços). Mas a diáspora em si não seria tão dramática sem a pecha lançada sobre os judeus de deicidas, assassinos de Cristo. Essa culpa coletiva, com base em Mateus 27:25 – “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos” – foi doutrina oficial da Igreja até meados do século XX. O primeiro capítulo do meu Passaporte para o Paraíso aborda o absurdo dessa culpabilidade. Assim, durante quase dois milênios, a história dos judeus é uma história de errância, coagidos de tempo em tempo e de local para local a emigrar em consequência das restrições, expulsões, pogrons (ataques violentos), tudo isso culminando no trágico e absurdo Holocausto da era nazista. Mas não foi sobre isto que vim falar.
Vim falar um pouco sobre a LITERATURA DE MEMÓRIAS DA EMIGRAÇÃO JUDAICA do Velho para o Novo Continente. Com um título pomposo assim vocês devem estar esperando que eu vá desdobrar aqui um amplo painel exaurindo toda essa literatura. Na verdade serei mais modesto. Vou trazer para vocês uma amostragem de algumas obras publicadas, de autores mais, ou menos consagrados (entre elas o meu Passaporte para o Paraíso), bem como diários e memórias sem ambições literárias, que circulam apenas entre amigos e familiares dos autores, mas com informações relevantes.
Vamos começar pela autora Esther Largman. Ela mora perto de mim, no Bairro Peixoto. Algum de vocês já leu um livro da Esther? Ela é historiadora nascida na Bahia e autora de romances históricos de temática judaica. Está na Wikipedia e se celebrizou por As jovens polacas, onde abordou um tema tabu, que a comunidade judaica carioca preferia que tivesse sido empurrado para baixo do tapete: moças judias pobres das aldeias do leste europeu atraídas por proxenetas, que passavam por bons mocinhos, com promessas de casamento aqui na América do Sul, mas que acabavam sendo obrigadas a trabalhar na prostituição. Os direitos de filmagem desse livro foram comprados, quem sabe um dia veremos esse filme nas telas? Mas é sobre Tio Kuba nos trópicos que quero falar. Trouxe aqui para mostrar. Este livro tem na Estante Virtual bem baratinho. É uma história romanceada, com nomes fictícios, até mais ou menos metade do livro dos antepassados da Esther e depois da vida da própria autora. A obra aborda magnificamente as restrições impostas aos judeus no mundo eslavo (Rússia, Polônia, etc.) às vezes culminando em agressões violentas e mortes sem que as autoridades movessem um dedo para coibi-las. Em meio a essas vicissitudes pairava o dilema: emigrar (para a Palestina, Europa ocidental ou o Novo Mundo) versus “esperar para ver como fica”. Uma passagem da primeira parte do livro (pp. 59-60) ilustra bem essa dúvida.
Tempos depois, apareceu um sobrinho chamado Leizer e, ao se apresentar, foi logo dizendo:
– Tio Yacov, sou filho de seu irmão e vim convocar vocês para sairmos desta terra que não se cansa de nos amaldiçoar.
Ficaram todos espantados com essa presença, bastante insólita, pois que de uma criança mirrada surgira um rapagão, cara de bebê, pesando mais de oitenta quilos.
– Como assim? – perguntou Yacov, sob os olhos curiosos do pequeno Moisés, chamado de Móti.
[...]
– Estou dizendo que devemos preparar os papéis, pegar nossos haveres e transformar em dinheiro, pegar um trem até a França e de lá um navio para a América. É isso que estou falando – completou o prático primo de Móti [...].
– Assim? – perguntou perplexo Yacov. – Tão simples? Seus pais, o que dizem? Elias vai emigrar?
Leizer meneou a cabeça.
– Meu pai e minha mãe não querem abandonar meus avós que estão idosos.
Yacov estudava o sobrinho, admirava sua determinação.
– Sabe o que acontece, Leizer? Nós temos nossos negócios, não é tão fácil. Aliás estamos passando por grande crise, preciso controlar muito bem para não arcar com grande prejuízo.
[...]
Meses passados, chegou uma carta do rapaz, de um lugar chamado Salvador, capital de um estado chamado Bahia, num país chamado Brasil. A correspondência desenvolveu-se entre meu tio e meu avô, que ficava atento ao que ocorria no mundo e nesse tal de Brasil.
Normalmente algum espírito mais aventureiro ia na frente e, lá do Novo Mundo, mandava cartas para amigos e familiares, tentando atraí-los. Quem era casado ia primeiro sozinho para tentar a sorte e mais tarde chamava esposa e filhos. Organizações filantrópicas judaicas promoviam projetos de colonização para atrair judeus do Velho para o Novo Mundo. Assim, poucas páginas mais à frente (p. 65), o personagem Yacov decide também partir:
No segundo ano da década de vinte, na primavera, Yacov despediu-se de Jenny, dos filhos Móti e Tatiana, esta ainda criança. Estava comovido. No fundo era muito emotivo, apenas trancava-se diante da exuberância e modos aristocráticos que sempre transbordavam de Jenny. Mas nos últimos tempos a esposa parecia muito alquebrada, conformada em ter, daqui a algum tempo, de sair da sua cidade, como tantas outras famílias o fizeram, os membros mais jovens partindo, deixando os mais velhos, quando estes também não emigravam. Uma debandada geral. Não só de judeus, mas de diversas nacionalidades à procura dos trópicos, de terras agrestes e livres, onde pudessem reconstruir seus lares, viver dignamente. Por que não?
Sonhava-se com bananas, abacaxis, laranjas, mangas; com cores, com o sol mais quente e prolongado, com águas tépidas. Com fartura. Com liberdade.
A JCA (Jewish Colonization Association), organização filantrópica fundada pelo Barão Maurice de Hirsch em agosto de 1891 em memória do filho perdido, espalhava folhetos coloridos instando os judeus a saírem da Europa, proporcionando passagens e possibilidades de colonizarem o Canadá, Argentina e, mais tarde, o sul do Brasil.
O negro no imaginário alemão do séc. XIX. Ilustração do livro infantil Der Struwwelpeter (João Felpudo na versão brasileira) de Heinrich Hoffmann |
Quem descreveu de forma romanceada uma dessas colônias no Rio Grande do Sul foi Adão Voloch em O colono judeu-açu. Tem na Estante Virtual e custa barato. O clima ensolarado, as frutas tropicais, os negros e mestiços dos Trópicos mexiam com o imaginário de europeus que possivelmente nunca haviam visto um negro na vida e para quem uma banana constituía artigo de luxo, vendido por unidade, como contava minha avó. No meu Passaporte para o paraíso, que também aborda o tema da emigração, um dos personagens, que vai imigrar para o Brasil, tenta adquirir um mínimo de conhecimentos sobre a nova pátria:
Otto esforçava-se em adquirir conhecimentos básicos acerca de sua futura pátria; para tal, folheava ritualisticamente bela edição encadernada, comprada em quiosque de Hamburg, sobre povos e costumes da América do Sul. Sejamos francos: Otto nunca fora exímio em geografia. [...] as únicas informações de Otto sobre o Brasil eram: que ficava ao sul dos Estados Unidos da América e que possuía exuberantes cidades com palmeiras e plazas (conseguira decorar o nome de duas: Rio de Janeiro e Buenos Aires) e a população predominantemente mestiça. “Será que, no Brasil, os jóqueis são pretos?” pensava, sorrindo à ideia de seu animal favorito ser montado por tição.
Agora vou falar sobre um livro extraordinário de 1997 que aborda as perseguições aos judeus na Rússia czarista, a imigração primeiro para um país europeu mais liberal e avançado, a Holanda (em 1909), depois, por necessidades financeiras, a viagem ao Brasil e a adaptação nos trópicos: Memórias da imigração: Reminiscências e reflexões, de Saádio Lozinsky. O livro foi escrito originalmente em iídiche, que era um dialeto do alemão falado pelos judeus da Europa central e oriental, e foi traduzido ao português pelo seu neto, Milton Scaler. Embora fora de catálogo, é facilmente encontrado na Estante Virtual a um preço módico.
Embora formassem uma colônia numerosa e antiga, os judeus eram vítimas de um antissemitismo virulento na Rússia tzarista que depois se estendeu à Rússia soviética. Na página 79, lemos:
Os seis milhões de judeus, não obstante o milênio de sua existência no imenso território russo, eram nos tempos tzaristas estranhos com limitados direitos civis e humanos.
Para os judeus foram estabelecidos locais fixos de moradia em separado [...] Eram baixados leis, decretos, editos, circulares, avisos, notificações, normas, tudo com um só objetivo: oprimir, rebaixar, menoscabar, ferir a dignidade dos judeus na Rússia. E, de tempos em tempos, uma expulsão, um pogrom, ou simplesmente um assalto.
Pogroms eram ataques violentos, com destruição e mortes, contra as comunidades judaicas, descritos nas páginas 138-41 do livro:
Os movimentos populares de violência contra os judeus ganharam maior ímpeto e fúria.
Bons amigos russos de ontem, sob o império de venenosa pregação antissemita pela imprensa odiosa, nas tavernas e por setores da igreja ortodoxa, se tornaram ferrenhos inimigos nossos. Como resultado, turbas exaltadas se lançaram ao ataque contra a população judaica, esfaqueando, assassinando, saqueando, pilhando, violentando.
[...]
E, de alto a baixo, o furor sanguinário se abateu sobre a vida e os bens do judaísmo russo, diante dos olhares insensíveis do mundo inteiro.
[...]
Era com o incitamento à matança de judeus que o governo tzarista procurava compensar a insatisfação do povo russo [...]
Nesse depoimento impressionante de Saádio toda a mecânica da imigração é esmiuçada em detalhes. Diz a quarta capa: “Nascido em 1873, na velha Rússia, Saádio Lozinsky foi levado pela vida a migrar de sua Moscou natal às pequenas aldeias, dali ao primeiro exílio, na Holanda, depois de atravessar meia Europa, e dez anos mais tarde ao Brasil, onde foi um genuíno pioneiro da comunidade judaica”.
Na pág. 158 o autor narra sua decisão de emigrar, a reação dos amigos e a réplica profética de Saádio:
Ao fazer as visitas de despedida, meus conhecidos e bons amigos lamentavam minha decisão, a seu ver plena de riscos. O que poderia eu lhes responder?
[...]
eu disse aos meus amigos, como má profecia: meus caros, virá o momento em que vocês terão inveja de mim. Vocês desejarão se salvar mas não o conseguirão. Será muito tarde. Todos os caminhos estarão obstruídos.
Ao embarcar no navio a caminho do Rio de Janeiro, Saádio conjectura (p. 185):
Para onde viajo, o que me aguarda no destino? Um país estranho, pessoas estranhas. Encontrarei o que procuro?
O autor compara a facilidade com que se conseguia entrar no Brasil em 1914 com as dificuldades impostas pelo regime Vargas em 1938, quando os judeus alemães, acossados pelos nazistas, tentavam emigrar para onde quer que obtivessem um visto, ainda que tivessem que ir parar no fim do mundo (e teve judeus que foram parar na China mesmo) ou que tivessem de pagar propina a algum cônsul (voltaremos a este tema adiante). Aliás essas dificuldades foram relatadas na obra já clássica de Maria Luiza Tucci-Carneiro O antissemitismo na era Vargas. Vocês já devem ter ouvido falar desta obra importante.
Como era fácil entrar no Brasil em 1914. Com que hospitalidade o governo recebia novos imigrantes. Portões abertos para todos. E como foi que o Brasil alcançou o avançado estágio em que hoje se encontra se não pelo concurso de novos elementos, de novas forças, imbuídos de vigorosa determinação de aqui fincar raízes e participar da construção do país? E que quadro oposto ora se nos apresenta vinte e quatro anos mais tarde, em 1938. Que política desumana para um país tão extenso, de população rala e de recursos naturais imensos ainda não explorados. (pág. 186)
Ainda sobre as restrições do regime varguista à entrada de imigrantes judeus, indaga o autor (pág. 223):
Um país de extensão territorial considerável como o Brasil, onde só o Estado do Mato Grosso tem área superior a de vários países da Europa reunidos, não poderia acolher boa parte dos refugiados?
A resposta, dou-a agora: não só poderia, como seria grandemente beneficiado, já que os judeus, para onde emigraram, deram grandes contribuições à cultura, à economia, à medicina, etc. Aliás emigrantes em geral costumam dar contribuições positivas, já que estão imbuídos de um espírito de se esforçar para melhorar na vida. A história da formação da nação americana e também da nossa são testemunhos disto.
Agora vamos dar um salto até a neta de Saádio, Judith, irmã do Milton Scaler, autor da tradução. Casou-se ela com um judeu vienense, Wilhelm Berger, cuja história da imigração para o Brasil também é emocionante. Ele conseguiu um feito dificílimo: entrou ilegalmente na Suíça, um país, em meio aos Alpes, praticamente inexpugnável, verdadeira fortaleza, que ninguém, nem Napoleão, nem Hitler, jamais conseguiu invadir. As fronteiras suíças eram fortemente vigiadas e difíceis de transpor. Do contrário, imaginem quantos milhões de judeus alemães não teriam se refugiado naqueles píncaros alpinos. Willy, como era chamado, escreveu uma breve autobiografia em seis páginas datilografadas para o caso de seus netos um dia se interessarem pela trajetória do avô. Sua viúva, atualmente com 92 anos e totalmente lúcida, me deu acesso a essas memórias, das quais leremos aqui alguns trechos:
Judith Berger segurando meu livro |
Após a anexação da Áustria ao Terceiro Reich, a vida em Viena, e provavelmente em outras partes da Áustria, se tornou insuportável e perigosa para os judeus. Da nossa janela eu tinha que presenciar a marcha dos soldados alemães, que foram recebidos de braços abertos pelos nazistas austríacos e certamente com medo das mudanças aguardadas por parte daqueles que não eram nazistas. Os primeiros meses eram ainda suportáveis. Eu me lembro de um encontro com um simpático professor de história do ginásio e senti sua insatisfação. Ele foi obrigado a colocar no seu casaco a cruz nazista. Conversou um pouco comigo, certamente sabendo que eu era judeu. Foi talvez perigoso para ele, já que todo mundo observou os acontecimentos.
Em princípio de agosto daquele ano de 1938, meu primo Rudi, filho da minha tia Elizabeth, irmã da minha mãe, tomou a decisão e a iniciativa de deixar a Áustria o quanto antes. Ele então viajou para Tirol, entrando ilegalmente – já que não era possível uma entrada permitida – para a Suíça. Assim que ele chegou em Zurique, mandou-me um mapa do caminho, indicando todos os detalhes.
Willy conta então que, munido do mapa enviado pelo primo, decidiu seguir a mesma rota. Primeiro, de trem noturno de Viena ao Tirol austríaco, depois, de automóvel “em duvidosa companhia” (escreve ele no diário, não sei que companhia seria essa), até um vilarejo no Tirol onde almoçou num pequeno restaurante e iniciou a subida montanhas acima até a altitude de 2 mil metros. Como no verão é normal se fazerem esses passeios, transpôs a fronteira suíça sem ser incomodado.
Cheguei a tardinha e toquei a campainha da casa de uma senhora indicada também pelo meu primo, que já sabia dos problemas dos refugiados dos nazistas, e me recebeu amigavelmente. Convidou-me para um simples jantar em companhia dos netos, que estavam com ela nas férias. Pensei em continuar no dia seguinte para outra subida também de aproximadamente 2.000 metros nas montanhas. No entanto, o tempo não foi muito firme e também fiquei um pouco cansado. Portanto, tinha que ficar mais dois dias na casa daquela senhora, que não se incomodou e me convidou sempre para as refeições. O pequeno lugar chama-se Laret (se olharem no Google Maps vocês vão achar).
Com a melhora do tempo, Willy prosseguiu sua jornada, mas foi detido por um guarda de fronteira, que o levou a um hotel com ordens de, na madrugada seguinte, apresentar-se a um outro guarda. A Áustria já estava ocupada pela Alemanha e voltar para lá seria seu fim. Mas o outro guarda parece que se compadeceu, fez vista grossa e o deixou em paz. Willy continuou penetrando Suíça adentro e naquela noite pernoitou em casa de um pastor (suponho que fosse um pastor de ovelhas, não de almas):
Já na tardinha, pedi a um pastor, com dificuldade de língua naquela região, para pernoitar. Ele foi muito amável, apesar da dificuldade de comunicação, e me ofereceu um leite com chocolate quente, e pude dormir no palheiro daquela cabana, pensando em poder continuar no dia seguinte.
No dia seguinte, Willy pegou carona no carro de uns lenhadores até a estação ferroviária, onde tomou um trem até Chur (Coira em português). No trem, conheceu um funcionário suíço em férias a quem contou sua história e que lhe deu cinco francos, com que comprou o bilhete para a etapa final de Chur até Zurique, onde o primo o aguardava.
Me apresentei no dia seguinte à comunidade israelita de Zurique. Fui muito bem recebido e me deram uma pequena importância para minhas despesas diárias. Como não pude ficar por muito tempo na Suíça, procurei os diferentes consulados da América do Sul, sem resultado. Somente o cônsul do Brasil prometeu um visto temporário se eu conseguisse uma representação de uma firma comercial.
Os representantes da firma para a qual Willy trabalhara em Viena conseguiram um contato com uma firma têxtil suíça de bordados e tecidos finos interessada num representante no Brasil, que enviou uma pequena coleção de amostras para o endereço de Willy em Zurique. Em companhia do primo, prosseguiu viagem até Le Havre, na França, onde pegaram um navio francês até o Brasil, com escalas em Bordeaux, Lisboa, Casablanca e Dacar. No Rio, instalaram-se numa pensão em Copacabana mas, como seus recursos eram limitados, conseguiram acomodações no Lar da União, da comunidade judaica, na Rua Alice. Ganhando algum dinheiro com aulas de piano, Willy alugou um pequeno quarto no Cosme Velho, de onde saía para visitar seus alunos em Santa Teresa, Muda, Tijuca e Copacabana.
E também de lá fui ao Centro para ter o contato com as firmas de importação de tecidos e bordados para mostrar a coleção que trouxe da firma suíça representada por mim. Não falando o português ainda, procurei as firmas que falavam alemão ou francês. Outras firmas somente mais tarde, mais ou menos após meio ano. Depois de alguns dias, mandei o primeiro pedido para Gais (Appenzel) da firma que representei depois durante 48 anos. Pouco tempo depois, mudei para Copacabana, na rua República do Peru. Em 1946 tive a felicidade de conhecer (um bom amigo me apresentou) uma moça de família judia maravilhosa e casei no final de agosto daquele ano. Toda a história dessa família de origem russa está contada num grande livro escrito pelo avô de minha esposa [que é o Saádio Lozinsky já citado].
Outro testemunho extraordinário sobre a perseguição e emigração são as Memórias de uma época, de Ellen Günzburger, escritas aos 86 anos – atualmente ela tem 93 – e publicadas pela filha em edição independente que circulou entre a família e amigos. “Nasci em Hannover, no dia 26 de setembro de 1924, filha única de uma família judaica de classe média”: assim começa o livro. Vejamos algumas passagens de interesse para o pesquisador da emigração e de suas motivações (pobreza, guerra, perseguição):
Na pág. 17 temos um interessante testemunho de como a ideologia e fanatismo dividem as pessoas, transformando velhos amigos em inimigos:
A casa dos meus avós era geminada, ou seja, a casa ficava encostada à casa do vizinho, com quem se davam bem. O vizinho tinha gado que todo dia era levado para o pasto. [...] O leite das vacas era vendido para a vizinhança ou aproveitado para fazer manteiga. Tudo era feito a muque. Máquinas elétricas não existiam naquele tempo. Claro que meus avós também eram fregueses. E não é que mais tarde este vizinho acabou tornando-se um nazista de primeira ordem? Inacreditável! Vejam, meu pai nasceu em 1889 e Hitler tornou-se chanceler em 1933. Durante mais de 40 anos o vizinho e os meus avós viveram em harmonia.
A maldade dos nazistas não tinha limites e não poupou sequer as crianças. Nos primeiros anos do regime as crianças judias foram impedidas de frequentar as mesmas escolas das crianças cristãs e, quando o regime atingiu seu paroxismo, foram simplesmente assassinadas. A Enciclopédia do Holocausto informa que “os alemães e seus colaboradores assassinaram cerca de 1,5 milhão de crianças, sendo um milhão delas judias”. Ellen, porque seus pais enfim tomaram a decisão de emigrar, escapou da morte e vive ainda hoje, mas não escapou das restrições que, já nos primeiros anos do regime, foram impostas às crianças judias, como conta em suas memórias:
Não havia completado ainda um ano no liceu quando veio a ordem de que crianças judias não podiam mais frequentar as escolas cristãs. E, como era lei frequentar a escola, no mínimo, até aos 14 anos, criou-se uma escola judaica, que Hannover [...] minha cidade natal, não tinha.
Sobre a Noite de Cristal:
Kristallnacht (noite de cristal) foi o atentado contra os judeus em diversos locais da Alemanha e da Áustria na noite entre 9 e 10 de novembro de 1938. Sinagogas foram destruídas e incendiadas; lojas dos judeus apedrejadas e mercadorias saqueadas. Eu vi tudo. Foi horrível.
Quanto mais cedo se tomasse a decisão de emigrar, mais fácil era obter o visto do país pretendido e sair levando algum dinheiro e bens. Por exemplo, lembro de um amigo de minha família (Heinie Glass) que, já em 1933, quando Hitler ascendeu ao poder, ao ouvir suas primeiras arengas antissemitas pelo rádio, sabiamente decidiu: “Aqui não fico”. E naquela época veio para o Brasil como um emigrante alemão normal, como os emigrantes que haviam colonizado Santa Catarina, ainda não como refugiado. À medida que as leis e ações antijudaicas foram recrudescendo, o número de fugitivos também cresceu, mas muitos ainda esperaram, quer porque tinham pais idosos que não queriam abandonar, ou porque tinham a esperança de que o exército acabaria derrubando aquele tresloucado do Hitler, ou por quaisquer outros motivos. A decisão de aguardar pelos acontecimentos custou caro a muita gente. Vejamos o que nos conta Ellen (pp. 40-41):
Minha mãe há muito tinha pressentido que a situação na Alemanha ficaria difícil e já no ano de 1936 queria emigrar para os Estados Unidos. Naquela época podia-se, ainda, escolher para qual país emigrar. Meu pai não acreditava que a situação política e social piorasse; afinal ele, que havia lutado na Primeira Guerra Mundial, era alemão. “Como sustentar a família numa terra estranha?”, perguntava. Com a perseguição cada vez maior contra os judeus e com o início da Segunda Guerra Mundial em 1939, tínhamos que sair com urgência da Alemanha, ou também seríamos deportados para um campo de concentração. Vários países passaram a dificultar a imigração, inclusive estabelecendo quotas de entrada. Não nos foi mais possível ir para os Estados Unidos. Conseguimos um visto para Paraguai e passagens de navio a partir da Itália. Paraguai aceitava a imigração mediante pagamento de uma taxa. [...]
Íamos pegar o navio na Itália, para onde nossos pertences também seriam transportados. Infelizmente, pouco tempo antes do embarque, Itália entrou na guerra e os navios não atracavam mais lá. Todos os nossos planos tiveram que ser alterados. Não podíamos mais sair da Itália e a viagem foi adiada por meses, até que se concretizasse uma nova possibilidade. Essa possibilidade foi a imigração para o Brasil.
Na época já vigorava aqui no Brasil o Estado Novo, que tinha lá suas afinidades com os regimes fascistas europeus e que começou a impor restrições à entrada de refugiados judeus. E aí entre em jogo o proverbial “jeitinho” brasileiro: alguns cônsules enriqueceram extorquindo dinheiro em troca de vistos. Essa história vergonhosa foi desencavada pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e é narrada em seu livro O antissemitismo na Era Vargas. A minha avó foi uma das pessoas que deu depoimentos à Maria Luiza sobre essa história do visto. Recentemente o jornalista Roberto Lopes dedicou um livro a esse tema também: Anjos e Safados no Holocausto 1938-1939: Histórias da diplomacia latino-americana na Europa durante a perseguição nazista aos judeus. Ellen Günzburger também menciona as dificuldades impostas pela burocracia brasileira (p. 43):
Meu pai tinha um primo no Brasil a quem eu chamava de tio Henrique. Tínhamos que saiu da Alemanha e, nessas alturas, dependíamos da chamada de um parente. Meu pai entrou em contato com o primo, que, através de conhecimento junto às autoridades brasileiras, conseguiu a nossa vinda para o Brasil. Por incrível que pareça, quem ajudou a conseguir a documentação para a nossa imigração foi Filinto Müller, conhecido do meu tio na área comercial e que também tinha fama de simpatizante de Hitler. Mas, mesmo com a documentação em ordem, o governo brasileiro, através de seus cônsules, não dava o visto de entrada, com a desculpa de que a quota do mês já estava preenchida. Meu pai foi diversas vezes para a cidade de Hamburgo, onde ficava a representação brasileira para os habitantes de Hannover, e ouvia sempre a mesma resposta: a quota do mês já estava preenchida. Minha tia Paula, que morava em Berlim, através de seu círculo de amizades, ajudou-nos a receber o visto para o Brasil.
Fomos até Berlim, onde ficamos cerca de uma semana em uma pensão, aguardando a liberação do visto. A secretária da representação brasileira, ao devolver os passaportes para o meu pai com o visto, levou um susto: “O senhor não poderia ter recebido o visto em Berlim, pois Hannover está vinculada a Hamburgo! Há quanto tempo o senhor está em Berlim?” Meu pai respondeu: “Há seis meses.” Então, vamos registrar na documentação Hannover e Berlim!, respondeu a secretária. E assim foi feito.
Vejamos como Ellen descreve a chegada na nova pátria:
Chegamos no dia 28 de novembro de 1940, bem cedinho, no Rio de Janeiro. Todos os passageiros se apertavam no convés, debruçados na amurada do navio, para ver a bela enseada do Rio de Janeiro. Era um dia claro e ensolarado. Um panorama lindíssimo, vendo o Cristo de um lado, o Pão de Açúcar do outro, e, acima de tudo, a nossa liberdade. Que sentimento mais feliz.
Agora vamos falar de um escritor excepcional, vencedor do Prêmio Nobel. Não é um escritor brasileiro, nós nunca ganhamos o Prêmio Nobel. Um escritor judeu, nascido na Polônia em 1902, que emigrou para Nova York em 1935, quando ecos do discurso nazista se faziam ouvir em sua terra, seguindo o rastro de seu irmão Israel Joshua Singer, também escritor, que emigrara para lá um ano antes. O nome dele: Isaac Bashevis Singer. Escreveu em iídiche, a língua dos judeus da Europa central e oriental, mesmo idioma em que escreveu Saádio Lozinsky e Sholem Aleichem. Quando ganhou o Nobel da Literatura em 1978, teve um período de evidência também aqui no Brasil, com várias obras vertidas para o português, entre elas seu livro autobiográfico Amor e exílio, traduzido por Lya Luft. Nele temos páginas magistrais sobre a decisão de deixar a Polônia, a obtenção do visto, a viagem de navio, a chegada em Nova York. O livro pode ser comprado na Estante Virtual a preço módico. Vejamos alguns trechos que selecionei para vocês:
No começo dos anos trinta minha decepção comigo mesmo chegou a um tal ponto que eu perdera toda a esperança. Para dizer a verdade, tivera pouco a perder. Hitler estava na iminência de assumir o poder na Alemanha. Os fascistas poloneses proclamavam que tinham para com os judeus os mesmos planos que os nazistas. (p. 163)
Quanto a mim, já que não tinha coragem de me matar, minha única chance de sobreviver era escapar da Polônia. Não era preciso ser muito bom profeta para prever o inferno que estava chegando. Só os que andavam totalmente hipnotizados por slogans tolos não viam o que baixava sobre nós. Não faltavam demagogos e tolos completos que prometiam às massas judias que elas combateriam junto com gentios poloneses nas barricadas, e que, depois da vitória sobre o fascismo, judeus e gentios na Polônia se tornariam irmãos para sempre. Os piedosos líderes judaicos, de sua parte, prometiam que se os judeus estudassem a Torá e mandassem os filhos aos cheders [escolas religiosas judaicas] e yeshivás [seminários rabínicos ortodoxos], o Onipotente faria milagres em seu favor.
Eu sempre acreditara em Deus, mas conhecia bastante a história judaica para duvidar de seus milagres. (p. 165)
Tudo foi difícil para mim – o passaporte, o visto. Mesmo um ianque ingênuo como o cônsul americano não acreditou que eu estivesse sendo convidado para a América para falar de literatura. Eu parecia um menino assustado, não um conferencista. (p. 189)
Depois de longo interrogatório, balançando a cabeça sombriamente, o cônsul pôs no meu passaporte o carimbo de um visto de turista. Deu de ombros e desejou-me boa viagem. [...] Naturalmente eu me sentia exaltado por ter conseguido, pode-se dizer, o privilégio da vida, livrar-me dos carrascos de Hitler. Mas ao mesmo tempo, pensei, isto é um homem. Sua vida e morte dependem de um pedaço de papel, uma assinatura, o capricho de outra pessoa, seja cônsul [...] juiz ou comissário. [...] Naquele dia de pré-primavera senti mais que nunca a dependência do homem, seu desamparo. Invejei as pedras da rua que não precisavam de passaportes nem vistos, nem romances nem favores. Não era eu que estava vivo e elas mortas, pensei. Bem ao contrário. As pedras viviam, e eu estava morto. (p. 190)
De repente, Varsóvia me pareceu uma cidade estrangeira. Eu mal reconhecia as lojas, os edifícios, os bondes. Lembrei uma passagem do Gemara: “O que está para ser queimado já foi queimado.” Parafraseei isso em minha mente. O que estamos nos preparando para abandonar já foi abandonado. (p.191)
Naqueles dias uma viagem à América ainda era considerada uma aventura. Verdade que Lindbergh já sobrevoara o Atlântico, mas o transporte de passageiros para a América ainda se fazia de navio. (p. 195)
Graças a Deus nenhum dos meus medos e premonições se concretizou. Não fui detido em Ellis Island. Os funcionários da Imigração não me deram nenhum problema. Meu irmão Joshua e um colega seu, escritor, chamado Sigmund Salkin, membro da imprensa anglo-judaica na América, vieram me apanhar no navio. Depois de algumas poucas formalidades, eu estava sentado no carro de Salkin. (p. 219)
Meu avô materno na Primeira Guerra Mundial |
Singer escapou de um destino cruel: na Polônia 90 por cento de seus 3.300.000 judeus pereceram. O filme O Pianista do Polanski mostra o sofrimento dos judeus poloneses. O livro A History of the Jews do grande historiador inglês Paul Johnson, no capítulo 6, aborda bem o absurdo do Holocausto e suas causas. Uma delas são séculos de pregação antijudaica por parte dos católicos e luteranos. Lutero escreveu uma obra antissemita. Está tudo no livro do Johnson. Existe uma tradução em português, mas o texto original é mais gostoso de ler. Outro relato pungente de um sobrevivente polonês que veio parar no Rio de Janeiro e foi amigo do meu pai é Remember! de Marcel Scharfstein. Existe só em e-book na Amazon.
Agora vamos à história da minha família e como ela veio parar aqui no Brasil. Ambos meus avôs, materno e paterno, lutaram na Primeira Guerra Mundial, ou seja, eram bons alemães, acima de qualquer suspeita. Meu avô materno (foto acima) foi condecorado com a Cruz de Ferro por bravura. Lutou nos dois fronts, francês e russo. O pai dele era banqueiro em Paderborn, durante uma folga do exército ele conheceu minha avó, e adquiriram um sítio em Eppstein, perto de Frankfurt, onde meu avô criou cavalos de corrida. Até que, com a ascensão do nazismo, seus cavalos “judeus” foram proibidos de correr. Um dia por acaso deparou com o consulado brasileiro em Frankfurt, entrou e acabou conseguindo o visto para cá. Só que existe o outro lado da moeda: depois que meus avós aportaram aqui, o cônsul os extorquiu, deixando-os em precária situação financeira. Minha avó deu depoimentos à historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sobre esse episódio da extorsão, que constam de sua obra O antissemitismo na Era Vargas. Essa história também é uma das fontes de inspiração do meu Passaporte para o paraíso, de que falarei em alguns minutos.
Agora vamos à história da minha família e como ela veio parar aqui no Brasil. Ambos meus avôs, materno e paterno, lutaram na Primeira Guerra Mundial, ou seja, eram bons alemães, acima de qualquer suspeita. Meu avô materno (foto acima) foi condecorado com a Cruz de Ferro por bravura. Lutou nos dois fronts, francês e russo. O pai dele era banqueiro em Paderborn, durante uma folga do exército ele conheceu minha avó, e adquiriram um sítio em Eppstein, perto de Frankfurt, onde meu avô criou cavalos de corrida. Até que, com a ascensão do nazismo, seus cavalos “judeus” foram proibidos de correr. Um dia por acaso deparou com o consulado brasileiro em Frankfurt, entrou e acabou conseguindo o visto para cá. Só que existe o outro lado da moeda: depois que meus avós aportaram aqui, o cônsul os extorquiu, deixando-os em precária situação financeira. Minha avó deu depoimentos à historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sobre esse episódio da extorsão, que constam de sua obra O antissemitismo na Era Vargas. Essa história também é uma das fontes de inspiração do meu Passaporte para o paraíso, de que falarei em alguns minutos.
Propriedade de meus avós maternos na Alemanha |
A minha mãe, nascida em 1926, quando tinha 12-13 anos escreveu um diário, em alemão, onde relatou a saída da Alemanha, a perseguição aos judeus, a viagem de navio ao Novo Mundo, a chegada no Rio, a adaptação à nova pátria. O original desse diário prometi doar ao Museu Judaico de Frankfurt quando terminarem as reformas que começaram ano passado e devem se estender até o ano que vem. Selecionei trechos interessantes do diário, traduzi ao português e publiquei no meu blog Literatura & Rio de Janeiro, junto com várias fotografias. Convido-os a lerem o diário (clicando aqui).
No domingo, 20 de fevereiro de 1938, minha mãe escreveu: “Tomamos a decisão de emigrar para o Rio de Janeiro. Nosso sítio [Hof Häusel, em Eppstein, perto de Frankfurt] já foi vendido. Tudo acontece tão rápido.” Depois até 9 de julho minha mãe relata fatos corriqueiros sem maior relevância, mas em 21 de outubro o tom muda:
Saímos da Alemanha!!!!!!
Nova York |
Vou escrever bem pouquinho. Já está bem tarde. Estamos em Nova York, onde ficaremos até sexta-feira da semana que vem. [Antes de virem ao Brasil, meus avós ainda viajaram aos EUA, onde vivia a irmã do meu avô, com esperança de talvez conseguir visto de permanência ali. Depois retornaram à Europa para enfim embarcarem na França rumo ao Brasil.] O sítio foi vendido. Depois de muitos aborrecimentos com as autoridades, fizemos nossas malas. Há muito tempo não escrevo, mas agora vou à forra. Mais uma coisa. Podemos nos considerar felizes por termos saído daquele país (a situação de todos os judeus não é boa. A maioria não consegue sair do país. Podemos nos dar por felizes!!!!!!! São dez e meia da noite. Para nós começa uma vida nova.
Em 7 de novembro (num aparente erro de datação, já que os fatos narrados ocorreram realmente no dia 9) minha mãe escreveu:
O pior ainda estava por acontecer. Todos os judeus foram buscados. Os homens estão se escondendo. Horrível. Todas as sinagogas foram incendiadas, as lojas saqueadas. As pessoas mandam cartas com notícias terríveis. Não dá para descrever com palavras. Estamos perplexos, corremos para ler os jornais. Sinistro. A maioria já está morrendo lá.
Depois vem a viagem de navio para o Brasil, da qual citarei alguns trechos:
Dia ruim, enevoado e frio. Partimos ao meio-dia. Primeiro fomos à nossa cabine, que é bem bonita, desfazer as malas.
Dia muito bonito. Estamos em Lisboa. A maioria dos passageiros desembarcou e está fazendo uma excursão. Nós passeamos por conta própria.
Os dias estão maravilhosos. O navio balançou um pouco, mas já nos acostumamos.
Agora faz muito calor. Uma pequena prévia do Rio.
Amanhã estaremos na nova pátria. Estou muito curiosa como será o Rio. Mas é uma pena que estamos chegando, pois a viagem foi supermaravilhosa, embora de noite fosse monótona.
Enfim a viagem termina e minha mãe com minha tia e meus avós desembarcam:
Às quatro horas da tarde chegamos. Uma chegada fantástica. Sol brilhante, céu azul, em volta montanhas e diante de nós o Pão de Açúcar. Uma sensação maravilhosa. Nesse percurso tão bonito pouco antes do desembarque, vimos subitamente — como uma aparição celeste — a Cruz [o Cristo]. Mas a montanha sobre a qual estava não dava para ver [estava envolta em nuvens, como às vezes acontece]. Quando não se sabe disso, pode-se pensar que se trata de um milagre e morrer de susto. Por alguns minutos deu para vê-lo, e depois tudo desapareceu. Uma chegada dessas não se vivencia duas vezes.
Chegou a hora de mostrar os documentos. Estávamos todos tremendo, pois sabe-se lá o que o cônsul escreveu? Mas tudo deu certo. Lá embaixo algumas pessoas nos acolheram, pois não conhecemos nada aqui. Primeiro ficamos surpresos. Depois fomos cuidar das bagagens. Todas as 19 malas foram abertas. Uma trabalheira do cão. [...]
Depois fomos de carro pelo Rio até um hotel em Copacabana. Que bonito! Tudo bem iluminado, mal dá para descrever. À noite primeiro jantamos e depois nos deitamos, após o fim de tarde extenuante, para dormir. [...]
Primeira noite no Rio!
Minha mãe |
Minha mãe se adaptou muito bem aqui no Rio, como demonstram suas anotações dos primeiros dias:
O primeiro dia no Rio! Dormimos maravilhosamente. De manhã comemos muitas frutas. Sim, agora estamos neste lugar depois de tanta batalha. Mal dá para acreditar. Vimos a praia maravilhosa de 16 quilômetros [as praias de Copacabana e Leme juntas têm uns 4 quilômetros; minha mãe exagerou um pouco]. Muito bonita.
É maravilhoso aqui, o que não é de se estranhar. A 12 dias de distância da Europa, tudo de bom.
Hoje fomos pela primeira vez no mar. Que maravilhoso. A água do mar bonita e morna.
Nossos pais estão procurando apartamento. Precisamos encontrar algo. As pessoas são todas muito gentis conosco.
Achamos um apartamento muito bonito. [...]
Mudamos para o apartamento. As malas foram desfeitas. Está bem aconchegante aqui, após tanto tempo de novo um lar.
Mencionei que alguns cônsules extorquiram dinheiro em troca de vistos. Meus avós também foram vítimas de extorsão – mas mesmo assim deram graças a Deus por terem podido permanecer no Brasil e minha avó principalmente tornou-se grande fã do país, que ela após a guerra, quando recebeu indenização e a pensão do governo alemão, viria a percorrer de norte a sul e de leste a oeste. Em seu diário minha mãe conta em detalhes a extorsão. No dia 14 de dezembro de 1938 ela escreve: “Estivemos no cônsul, este safado. Ele ainda quer nos arrancar dinheiro aqui, tenta meter medo em nós.” Em 5 de janeiro, diz ela:
De manhã fomos ao centro na polícia tirar impressões digitais, o que é bem imundo. Depois já em casa ouvi a bela notícia de que a merda do cônsul quer que paguemos 30 contos. Acabou que ele conseguiu nos colocar em apuros, pois isto é muito dinheiro nas nossas circunstâncias. Temos mais ou menos o dobro. Mas não podemos fazer nada, pois ele nos ameaça denunciar às autoridades. Esse velho safado. Torcemos para conseguir encontrar alguma saída, mas não vamos conseguir. Mas talvez ele se contente com a metade. Deveríamos ter dado a ele essa "ninharia" lá na Alemanha, porque lá tínhamos dinheiro. [Embora meus avós fossem ricos na Alemanha, havia uma limitação ao montante que podiam levar para fora do país.]
No dia seguinte escreve:
O negócio com o cônsul chegou a uma conclusão. Ele exigiu 22 contos, que bem ou mal tivemos que pagar. [Quando instituído em julho de 1940, o salário mínimo valia 240 mil réis. Portanto, 22 contos de réis correspondiam a 92 salários mínimos. Com o salário mínimo a 937,00 hoje seriam 86 mil reais.]
Esse diário foi uma das fontes de Roberto Lopes para seu livro Anjos e Safados no Holocausto 1938-1939. Acho que esse “safados” do título (que foi a tradução que dei para Schwein, literalmente “porco”) ele tirou do diário de minha mãe!
Busco as lembranças nos longos anos que se passaram desde a nossa chegada ao Brasil, no dia 19 de novembro de 1938. Chegamos de navio. Durante o dia inteiro a rota do navio segue as brancas praias do norte do Brasil. Vagarosamente se aproxima do Rio de Janeiro, o nosso destino final. O céu está coberto com nuvens grossas, encobrindo a cidade e o Cristo Redentor, com seus braços abertos, parece flutuando, está em pé sobre as nuvens, uma imagem, a primeira imagem do Brasil. [...]
Passaporte com que minha tia emigrou para o Brasil, com o J de Jude, judeu |
A minha tia Helga Flatauer (sobrenome de solteira: Paderstein), irmã mais velha de minha mãe, sempre gostou de escrever. Durante toda a vida escreveu diários em sua língua natal que, quando ficou idosa e retornou à Alemanha, entregou a uma historiadora. Ela escrevia pequenas crônicas de reminiscências em português que circulavam entre família e amigos. Vamos ver um pedacinho de uma delas (a íntegra do texto pode ser lida clicando aqui):
Minha tia dando uma palestra na Alemanha |
Busco as lembranças nos longos anos que se passaram desde a nossa chegada ao Brasil, no dia 19 de novembro de 1938. Chegamos de navio. Durante o dia inteiro a rota do navio segue as brancas praias do norte do Brasil. Vagarosamente se aproxima do Rio de Janeiro, o nosso destino final. O céu está coberto com nuvens grossas, encobrindo a cidade e o Cristo Redentor, com seus braços abertos, parece flutuando, está em pé sobre as nuvens, uma imagem, a primeira imagem do Brasil. [...]
O navio atraca no cais. Uma bagunça total, entre calor sufocante, gente incrivelmente preta de tanto suar carregando malas, caixas e tudo que um navio traz no seu porão. Alguém está à nossa espera. Alguém estranho que cuida da chegada dos imigrantes que não falam a língua, que não sabem se comunicar. Após toda dramática do desembarque, somos conduzidos de táxi para o hotel. Já era noite, as luzes brilhando, passamos pela Avenida Rio Branco. Certamente exausta pela emoção.
Ao longo de todos estes anos se esconde uma vida. O cônsul Gonçalves que pelo navio Cap Arcona chegou, tirou quase todo o nosso dinheiro na primeira corrupção. O nosso encontro no pequeno hotel duvidoso na praia de Botafogo. Bateu-levou. O primeiro apartamento na Rua Rainha Elizabeth, com sua feira na porta da Praça General Osório. Abacaxi, bananas, carambolas, chuchu, jiló! Frutas e verduras brasileiras que faziam parte da adaptação ao nosso país.
Novos amigos, novas amizades, praia e sol. O primeiro trabalho de babá, o primeiro ordenado.
Os depoimentos de minha avó, o diário de minha mãe, as histórias de minha tia, tudo isto, e ainda mais, serviu de fonte para meu livro Passaporte para o paraíso, uma história romanceada, com personagens fictícios, inspirada na saga de minha família. Escrevi o livro trinta anos atrás, recebeu um prêmio literário em 1992 para romances inéditos (além de dois capítulos terem sido premiados avulsamente em concursos de contos), mas somente em 2017 tive a oportunidade de publicá-lo. Foi lançado em abril no Rio e em agosto em São Paulo. Não vou entrar agora em detalhes sobre meu livro porque prefiro que vocês o leiam. [Para mais informações sobre o livro e comentários de leitores clique aqui.] E assim chega ao fim a palestra.
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