MAS REZAR, É PRECISO de I. L. PERETZ

Peretz é um dos três grandes escritores clássicos da língua iídiche, junto com Scholem Aleihem e Mêndele. Para quem não sabe, o iídiche foi um dialeto do alemão, grafado com caracteres hebraicos, falado pelos judeus da Europa central e oriental e que, com a adoção do hebraico como língua oficial de Israel e o extermínio dos milhões de judeus do leste europeu durante a barbárie nazista, tornou-se uma língua praticamente morta. Mas sua literatura foi muito forte, e no século XX seu maior expoente foi o ganhador do Prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer, com várias obras traduzidas ao português, algumas por Lya Luft.

Segundo J. Guinsburg, organizador da antologia Contos de I. L. Peretz (Editora Perspectiva), Peretz “pode ser considerado como o verdadeiro modernizador da literatura iídiche. Não só porque, através de sua pena, ela ecoou conscientemente o tema social e socialista ou porque se abriu às estéticas literárias da Europa. Romântico, realista, simbolista, impressionista, admirador de Heine, Hamsun, Ibsen, Tchekhov, Górki e tantos outros poloneses, franceses, alemães, foi ele sobretudo o homem que instituiu o indivíduo, a subjetividade, a emoção pessoal, a análise psicológica e mesmo intimista, em uma literatura que até então não fora muito além do tipo, do esboço coletivo, da análise de costumes, da redução do real ao objetivo, ao externo.”

Da coletânea de Guinsburg selecionei para reproduzir neste blog um conto curtíssimo (uma crônica, mais propriamente) que me lembra uma observação feita certa vez por meu pai quando estávamos na sinagoga. Ele disse algo como (as palavras exatas não recordo): “Ainda bem que as rezas são ditas em hebraico, assim a gente não entende todo seu absurdo.” Aí explicou que achava absurdo como as rezas ficavam “bajulando” Deus, chamando-o de Todo-Poderoso, misericordioso, etc. quando na verdade o ser humano está largado à própria sorte  (pelo menos é o que mostra a triste sina do povo judeu). Pois não é que o texto de Peretz bate na mesma tecla? Ei-lo:


Berel, o alfaiate, afinal conseguiu que o filho médico regressasse a casa. Iria praticar na cidade natal. Doentes não faltariam!

O filho chegou na sexta-feira. Sábado o pai quis que ele o acompanhasse à sinagoga.

– Não irei, papai! – disse o médico.
– O quê? Envergonhas-te, por acaso, de andar em minha companhia?
– Deus me livre! Tens cada ideia, pai...
– E pensas então que um médico não tem por que louvar a Deus, nem o que lhe pedir?...
– Não é isso, papai...
– O quê, então? Dize-me. Estás doente? Santo Deus!
– Não é isso, papai! Mas eu não quero ir!
– Gostaria de saber por quê.
– Se queres, seja! Senta-te, e eu te explicarei.

O velho largou o tales e sentou-se.

– Bem... Imagina, papai, que és tão rico, tão rico que alguns rubros não te façam diferença.

O pai suspirou. Para fazer do filho um médico, penhorara tudo o que possuía. Tivera uma casa, lá se fora. Estava sem serviço, pois vendera as máquinas de costura.

– E então? – disse ele, suspirando profundamente.
– Bem. És rico, e em frente à tua casa mora uma viúva. Uma viúva fraca, enferma, e por cima carregada de filhos. Tens de ajudá-la.
– Naturalmente que eu a ajudaria!
– Aguardarias, por acaso, que a viúva te suplicasse, desmaiasse a teus pés e derramasse rios de lágrimas?
– Deus me livre! Para quê? Se eu sei...
– E Deus será pior ou melhor do que tu?
– O que dizes? Mas que pergunta!
– Pois bem! – triunfou o filho. – Se Deus é melhor, ele sabe por si próprio das necessidades de uma pobre alma fraca e enferma. E não há de esperar por suas súplicas...
– Mas...
– Louvar a Deus, queres dizer?
– Sim...
– Bem. O que dirias, papai, se alguém se prostrasse diante de ti, elogiando-te aos teus próprios olhos: Excelente e hábil alfaiate! Honesto alfaiate! Mas que alfaiate admirável! És um autêntico alfaiate! Um alfaiate incomparável!
– Ah! – disse o velho com impaciência. – Dá ânsia de vômito.
– E sabes por quê? Porque não és nenhum tolo, para te comprazeres com elogios fúteis. E tu és apenas um ser humano. Uma débil criatura humana, a quem os insultos podem prejudicar e os louvores ajudar...
– Mas...
– Não há mas! Não há mas, papai! Deus é mais perspicaz do que nós. Pensas que precisa de nossos louvores? Ele não precisa de ouvir, três vezes ao dia, a mesma ladainha: Hábil alfaiate, excelente alfaiate!
– O que dizes?
– Seja: Deus é hábil, Deus é bom, criou Ele o céu e a terra... Não saberá ele disso melhor do que ninguém?

O velho mergulhou em profunda reflexão. Depois exclamou, de repente:

– Tudo está certo, meu filho! Mas rezar, é preciso!

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