FERNANDO LEITE MENDES: UM MESTRE DA CRÔNICA



UM MESTRE DA CRÔNICA, de CYRO DE MATTOS

De origem grega, a palavra crônica vem de chronos, que quer dizer tempo. Forma textual de narrativa curta, possui uma inclinação para os fatos da vida diária, contemporâneos. Escrita para o jornal ou revista, televisão ou rádio, o estofo literário retira-lhe a condição estrita de jornalismo, cuja linguagem é objetiva para informar o fato. Conciso e útil, o jornalismo pretende aproximar do evento os seres humanos com a linguagem precisa, onde quer que estejam, para que tomem conhecimento do que acontece no mundo, enquanto a crônica ameniza a notícia ou o evento levado ao leitor sobre a vida diária.

Na crônica de humor, o autor faz graça com o cotidiano. Na crônica ensaio, o cronista tece crítica ao que acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de poder. Na crônica filosófica logra extrair do cotidiano reflexões sábias a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política ou em outros campos da atuação humana.

Pode ser atemporal, se o assunto, extraído da realidade exterior sob bases sentimentais, revestir-se de arcabouço literário, servindo para ser lido tempos depois desgarrado do seu contexto e ainda assim causando emoção. Sempre dando tratamento agradável ao assunto em que está descrevendo, a crônica é de tal forma argumentativa ou digressiva nos devaneios dos sentimentos. Seu lirismo poetiza a vida, aviva o evento com graça, tornando-o ameno pelo eu que o recorda no relógio do peito.

A crônica atingiu o ápice na Idade Média quando passou a registrar uma série de acontecimentos e a obedecer uma sequência linear. Nessa época era destituída de qualquer interpretação nas informações de natureza histórica. Com a significação dos fatos em fase moderna entrou em uso no século XIX, passando a designar textos que, embora remotamente se ligam à forma originária, revestem-se de tratamento literário para tornar o assunto menos insípido e fugaz. Em nossas letras, Machado de Assis, no século XIX, com engenho e arte encontrou os meios necessários para lhe dar expressividade.

          A crônica no seu arcabouço de escrita híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos. Sujeita ao efêmero que passa ante o eterno que fica, o espaço que melhor achou para morar e se expandir foi o jornal, lugar em que demonstra leveza na informação do fato e corresponde ao que os ingleses chamam de commentary, sketch, light essay, literary column, human interest story. Usa a oralidade na fala dos personagens e o coloquial na escrita, a linguagem é simples, alguns querem que seja como poesia espontânea em forma de prosa.

     A crítica não aceita a crônica como uma expressão literária significativa, se comparada ao romance, à poesia e ao conto. Nenhuma literatura se faz grande com livros de crônicas, alega-se. No Brasil, quando se fala em cronistas de primeira grandeza soam com aplausos os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Henrique Pongeti, Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Fernando Veríssimo.

     No elenco formado por esses cronistas de primeira qualidade poderia figurar o baiano (de Ilhéus) Fernando Leite Mendes?

        Como todo bom autor, ele escreveu um sem-número de crônicas para todos os gostos com fina sensibilidade. Dariam, se publicadas, vários volumes. Ficaram esparsas, esquecidas, perdidas no baú do tempo. O único livro desse cronista admirável, Os olhos azuis de D. Alina e algumas crônicas (1985), hoje uma raridade bibliográfica, foi publicado postumamente, graças à iniciativa do sobrinho Gumercindo Leite Mendes. O volume reúne cinquenta crônicas, algumas antológicas, como “Os gatos e “Elogio do urubu, a primeira de humor e a segunda com sabor de prosa poética; “João da Verdura” e “Adeus, Tamiroff”, crônicas, como de resto, além do cotidiano, de tão humanas, atingem o universal, em seus tons carregados de subjetividade comovente. Apresentam-se pontuadas de ternura na exposição do drama.

     Jornalista de talento excepcional, de Salvador seguiu Fernando Leite Mendes com sua vocação para o Rio onde, nos anos em que residiu na metrópole, nunca esqueceu as raízes baianas, sintonizadas em Ilhéus e Salvador. Em terras cariocas, no seu voo de homem inteligente, se impôs como editor, redator e cronista dos principais veículos da imprensa. Lúcido, esteve presente em algumas colunas importantes que assinou: “O homem da rua”, “ A poesia do asfalto”, “Sextas-feiras estórias”. Foi editor político do jornal “Última Hora”, redator da “Revista da Semana e do “Consórcio Time-Life”, exímio editorialista do “ Diário de Notícias” e do “Correio da Manhã”, redator-chefe do “Diário Carioca”. A notícia informada por ele estava em boas mãos.

Intensamente humano, autêntico lírico que gostava de expressar o lado encantador da vida, como mostra em várias passagens de “Os olhos azuis de D. Alina”; com a alma triste pelo que percebeu na figura de Jacinto de Gouveia, um tocador de piano no cabaré de Ilhéus, que fumava cachimbo inglês e usava cachecol, na cidade atlântica de clima tropical, vivendo pobremente, e que, na última vez que viu o cronista, pediu-lhe que trouxesse do Rio a partitura do poema sinfônico Finlândia, de Sibelius; irônico como pede o assunto em Um comedor de vidro”; alegre com os lances aguerridos da pelada, vista da janela, quando então se revoltou com o adulto que quis interrompê-la, depois aceitou o convite dos meninos e foi pegar no gol.

Com uma capacidade de falar de modo simples e, ao mesmo tempo, sedutor e culto, de gesto solidário e terno, o tempo não quis que esse amanuense da palavra vivesse mais anos aqui entre os humanos. Foi-se embora aos 48 anos. Tivesse mais tempo para esbanjar seu talento verbal, certamente teria posto numa festa demorada da vida mais riso, fraternidade, esperança e sonho, companhias necessárias, ontem como hoje. Haveria mais leitura desses momentos fotográficos que ele registrou no teclado da sua máquina portátil Remington, levada para ser usada onde estivesse, em Hong Kong ou Paris. Mais escuta sensível dos seres humanos haveria, graças a um senhor gordo, com alma de menino, um relógio de cordas suaves no peito, cujos ponteiros costumavam marcar como poesia os passos da existência. Mais divulgado, em seu brinquedo preferido, a crônica, ensejaria minutos de delícia às novas gerações.

CRÔNICA DE ARTUR DA TÁVOLA SOBRE FERNANDO LEITE MENDES
(fonte: https://wilsonleitemendes.blogspot.com/p/fernando-leite-mendes.html):



COPACABANA ACENDE VELAS
Crônica de Fernando Leite Mendes publicada no Correio da Manhã de 29 de setembro de 1964


As igrejas de Copacabana são poucas, porém sinceras. A titular, que é a de Nossa Senhora de Copacabana, propriamente dita, está sob ameaça de se transformar num imenso edifício-hotel, com campo de pouso de helicópteros no terraço. O heliporto em cima e uma capela substituta na base, como se, afinal, não fosse a fé a base de tudo e o heliporto milenar de todos os anjos.

Mas há uma que fica à porta do bairro, sentinela escandalizada diante da veemência dos motoristas todos que invadem o Túnel Novo, em busca da velha praia.

É a Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, pureza de templo feio, de linhas duras e pouca arquitetura,[1] postada à entrada do universo da Zona Sul, urbi et orbi de muito menos pecado do que todo mundo supõe.

Pelo menos, Copacabana vai mais à missa do que se imagina. E guarda os dias santos. E em maio reza as novenas do Mês de Maria. É pura maldade pensar que as pessoas deixam a fé no subúrbio e a devoção na Zona Norte. Copa é terra de homens, mulheres e meninos que temem a Deus e sabem que religião também tem hora. Até porque ninguém é fanático.

Aquele noviço de Minas Gerais, que trouxe de Ouro Preto a saudade da glória dos tempos velhos, ficou triste no dia em que descobriu Copacabana. "Muito mais gente na praia do que na Igreja", pensou o servo do Senhor, em melancolia. Mas logo que foi estendendo os olhos de rapaz de claustro pelas águas, pelas areias e pelas gentes, tudo debaixo do sol daquele dia, acabou reconhecendo: "Mas essa também é uma festa de Nosso Senhor". A noite é que é de Nossa Senhora. E da humilde Terezinha de Jesus, pelo menos na sua igreja à porta do Túnel.

Pois ali, a fé achou a nave pequena e ganhou o passeio da rua. Então, a primeira vela se acendeu. e depois a segunda e a terceira. E hoje nem o vento apaga, soprando forte, a marca de luz daquelas velas.

A luz daquelas velas está acesa no coração de Copacabana, a ímpia. E a força da igrejinha feia, à entrada do Túnel, é tão grande, que, de bonde (antigamente), de carro, de ônibus ou a pé, todo mundo que passa ali se benze. Até os ateus. E fazem muito bem.




[1] Trata-se de um projeto art-déco, de linhas geométricas (foto abaixo).


Nenhum comentário: