Magistral esta crônica do Zuenir sobre o caráter contraditório de nosso país, publicada em O Globo ontem. Ele menciona a ciclotimia coletiva brasileira. Em crônica intitulada Ninguém Segura Este País? que escrevi para a Oficina Literária em 2002 falei sobre essa ciclotimia. A minha humilde crônica vem após a do mestre Zuenir.
Uma jornalista francesa fez esta semana uma entrevista
conjunta com Roberto D’Avila e comigo, entre outros, para tentar entender o
Brasil às vésperas da Copa do Mundo e das eleições. Não é tarefa fácil. A
França de René Descartes é, além de cartesiana, claro, previsível. Bem antes
das últimas disputas municipais, já sabia que os socialistas iam perder, que a
oposição ia ganhar e que a extrema-direita ia crescer ameaçadoramente.
Já nós, não sabemos nem quais serão os candidatos, nem se
Dilma vai se reeleger ou se Lula vai voltar. Se não há certeza sobre o
presente, como prever o por vir? Nossa desculpa para ela foi que, como disse o
ex-ministro Pedro Malan, “no Brasil até o passado é imprevisível”.
E tanto é verdade que todos nós, jornalistas, economistas,
sociólogos, erramos de tal maneira em nossas antevisões que somos chamados de
“profetas do passado” — só conseguimos acertar o que passou, assim mesmo, nem
sempre.
Além de nossa colega, muitos tentaram nos decifrar. “É o
país do futuro” (Stephan Zweig), “É o país dos contrastes” (Roger Bastide),
“Não é um país sério” (Charles de Gaulle), “Não é um país para principiantes”
(Tom Jobim). O Brasil parece se divertir em ser rebelde e irredutível às
classificações. Ambíguo, ele não é uma coisa ou outra, mas as duas.
Não é isso ou aquilo, mas isso e aquilo. Complexo e
surpreendente, ao mesmo tempo cordial e violento, generoso e mesquinho, honesto
e corrupto, egoísta e solidário, trabalhador e preguiçoso, o país gosta de
desmentir o que se diz dele, a favor ou contra. É capaz de infames
perversidades, teve um dos sistemas de escravidão mais cruéis do mundo, cometeu
atrocidades como as que estão vindo a público agora, nos 50 anos do golpe
militar, é insensível aos seus milhões de miseráveis.
É a sexta economia mundial, mas ocupa o 85º lugar em
desenvolvimento humano. Apesar disso, pode se mostrar solidário e fraterno
diante de um desastre natural, socorrendo vítimas e fornecendo-lhes alimentos e
roupas, por meio de um voluntariado organizado ou não. Campanhas como as de
transplantes e doação de órgãos, por exemplo, são, pelo recorde de adesões,
referências mundiais.
Para ver como funciona outra importante característica
nossa, a ciclotimia, que faz nosso astral e nossa autoestima oscilarem da
euforia à depressão, sugerimos à jornalista voltar depois da Copa, quando o
país será outro — melhor ou pior, já que aqui o evento não é apenas esportivo,
mas também cívico, e “a seleção é a pátria de chuteiras” (Nelson Rodrigues).
Se vencer, uma onda de
otimismo se estenderá até a política. Se perder — Felipão já foi avisado — será
o inferno, como foi em 1950, cujo trauma da derrota está enquistado até hoje em
nossa memória coletiva.
O estado de espírito coletivo do brasileiro é ciclotímico: às
fases de ufanismo desbragado (“Ninguém segura este país”, ou, mais
recentemente, a euforia pós-plano Real) sucedem-se tempos do mais negro
pessimismo (O último a sair apague a luz!) E há um quê de totalitário nestas
ondas de humor: quando todos estão deslumbrados, ai de quem ousar criticar o
país (Brasil, ame-o ou deixe-o)! E quando todos estão desiludidos, pega mal,
não é de bom-tom discernir algum aspecto positivo na nação ou no governo. Ou
bem estamos à beira do abismo, ou bem estamos na antecâmara do paraíso: não há
matizes, não há nuances, não há meios-termos.
Já o estado de espírito privado do brasileiro (aquilo que ele
sente in pectore e que só vem à tona
nas conversas íntimas ou, coletivamente, apuradas as eleições) é monolítico: um
bloco de brasileiros cultiva prazer masoquista em se queixar de “tudo isto que
está aí”: tudo no Brasil, sem exceção — educação, segurança, renda, televisão,
saúde etc. — vai de mal pra pior. Esse bloco vê conspirações por todo lado:
Criou-se um novo feriado? É para os funcionários não se revoltarem contra os
baixos salários. Se grassa nova epidemia, o vírus foi propagado pelas
multinacionais pra vender remédio. A debacle da Argentina, prenúncio do que
está por vir cá por nossas plagas.
O outro bloco ufana-se de viver no melhor país do mundo, abençoado por Deus, e bonito por natureza.
A mulher brasileira, se Deus criou coisa melhor, ficou só pra ele. O progresso
transpira por todos os poros: enquanto trinta anos atrás ligação entre Rio e
São Paulo tinha de ser solicitada à telefonista, e só era completada horas
depois, hoje em dia qualquer pé-rapado circula fagueiro com seu celular.
Restaurante, alguns anos atrás, programa caro, reservado às datas especiais:
Dia das Mães, aniversário. Agora, em qualquer bairro, além do comércio
tradicional — farmácia, padaria — pululam pizzarias e restaurantes a quilo —
sem falar nos churrasquinhos em plena calçada. A corrupção sempre existiu, e
foi até pior no passado, mas agora que vivemos numa legítima democracia começa
a vir à tona (sinal de avanço!). E o debacle Argentino... eles seguiram o
caminho errado, nós optamos pelo caminho certo!
É como se estes dois “blocos” vivessem em dois países totalmente
distintos.
O fato é que o copo com água pela metade pode parecer “meio
cheio” ou “meio vazio”, conforme a vontade do freguês. Nossa renda per capita não é muito inferior à da
Polônia, país encravado em plena Europa central, sendo três vezes superior à da
Índia. O Brasil tem mais do dobro da economia da Rússia, que não é um país
qualquer, mas a ex-segunda superpotência mundial.* Disputamos pau a
pau o mercado mundial de aeronaves de médio porte com o avançado Canadá (certa
vez, retornando pela Swissair da Europa pra cá, enchi-me de orgulho ao ler, na
revista de bordo, que as linhas aéreas regionais do grupo haviam fechado um
contrato de aquisição de não sei quantas aeronaves com a... Embraer). Nosso
índice de acidentes de avião é de 0,8 contra 0,7 da Europa e 8,7 da África.
Temos um mercado editorial pujante superior (em número de títulos lançados) ao
da Itália, e nossas Bienais do Livro atraem centenas de milhares de visitantes.
Em certas áreas da Medicina (por exemplo, cirurgia plástica) somos referência
mundial. O Brasil é o único país do Hemisfério Sul a participar do projeto
Genoma.
No outro lado da balança, a seca nordestina — vergonha das
vergonhas — vem se repetindo, implacavelmente, sem solução à vista. A violência
urbana atingiu índices insuportáveis: no Rio de Janeiro, morre uma pessoa a
cada dois dias vítima de assalto (sem falar nas vítimas das balas perdidas nos
tiroteios entre facções criminosas ou entre criminosos e polícia). Poucos
países no mundo apresentam disparidade de renda maior do que a nossa: 24,4% dos
brasileiros vivem com até um salário mínimo, e apenas 2,6% da
população economicamente ativa percebe mais de vinte mínimos.** A
corrupção se afigura endêmica e dificilmente (quem é empresário, sabe) se fecha
algum contrato com órgão público (da prefeitura de cidadezinha do interior à
Estatal) sem deixar um “por fora”.
* Fonte: Banco Mundial, dados de 2000 (renda per capita pelo Método PPP - Paridade do Poder de Compra.
** Fonte: Dados do Censo 2000 citados na Veja de 12/5/02.