No Capítulo 6, "Do Círculo Ártico ao Mar da Galileia", de seu livro de memórias Do Sindicato ao Catete, Café Filho conta sua visita, em 1951, como vice-presidente de Getúlio, a vários países, entre eles o Israel, Líbano e Síria. Israel, então engatinhando com seus três aninhos de idade, dava uma lição de socialismo ao mundo com seu kibutz. Infelizmente a beligerância das nações circundantes com o tempo acabou obrigando o Estado Judeu (que também abriga cristãos e muçulmanos) a se transformar em uma espécie de Esparta moderna, uma fortaleza inexpugnável. Na leitura você observará que, enquanto os judeus esforçavam-se por construir sua nova nação, contra todos os obstáculos, as nações árabes em volta já eram turbulentas, com atentados e distúrbios. A seguir, a narrativa extraída da obra de Café Filho:
ISRAEL E OS ÁRABES
Istambul, na Turquia, e Nicósia, na Ilha de Chipre, foram as
etapas seguintes do meu itinerário, através de rápidas visitas.
Detive-me, depois, quatro dias em Israel, podendo, assim,
avaliar de perto a obra de construção da Pátria dos judeus, que tivera a sua
independência proclamada três anos antes.
O esforço que presenciara na Iugoslávia só tinha paralelo
com o do Estado de Israel. Também nessa nova nação se praticava um socialismo
avançado. As enormes fazendas coletivas que lá se organizaram impressionaram-me
pelo senso de cooperação dos seus membros. Abrigavam, às vezes, mais de sete
mil pessoas, que não recebiam salário nem tinham participação nos lucros.
A fazenda provia-lhes as necessidades, e todos se esforçavam
ao máximo.
Se o kibutz
progrida, melhor para eles. Se não, todos tinham consciência de que seriam
prejudicados.
Encontrei em Israel um espírito coletivo dificilmente
alcançável. Mas não ficava nisso a obra que realizavam.
Os trabalhos científicos de recuperação do deserto, a
conquista da água do subsolo como um dos principais fatores de desenvolvimento,
a solução dos problemas culturais, religiosos, sociais e econômicos vinham
sendo alcançados em meio de um drama político e militar resultante da crise
internacional em que se debatia Israel, com as suas fronteiras transformadas em
frentes de batalha, onde os períodos de guerra e trégua se alternavam no
exaustivo e trágico revezamento.
Comoveu-me o heroísmo das comunidades judaicas, sua energia
e perseverança, animadas pela devoção a um ideal, o da manutenção para sempre
do Estado de Israel.
Vi, nesse país que nascia, impressionante exemplo de
solidariedade, provocada, naturalmente, pelo desafio das circunstâncias e
confortada pela consciência histórica, em substituição aos estímulos comuns da
livre competição e do lucro individual.
Não senti, porém, que aqueles homens e mulheres de
extraordinária capacidade — técnicos e trabalhadores admiráveis em sua
abnegação — fossem pessoalmente felizes.
Revelavam espíritos de equipe só comparável ao espírito de
renúncia, sob a compreensão sombria de sagrados interesses nacionais.
Construíam-se, quando lá estive, blocos de mil edifícios de
apartamentos, para abrigar a legião contínua dos judeus que procuravam a nova
pátria. Chegavam e iam trabalhar nas suas futuras residências, alojando-se,
enquanto trabalhavam, em gigantescos acampamentos.
Telavive já contava, em 1951, com mais de trezentos e
cinquenta mil habitantes, e se ouviam na capital todos os idiomas da terra.
Fui alvo de carinhosas demonstrações de hospitalidade,
inclusive um banquete oferecido pela Câmara dos Deputados, com a presença de
quase todo o Ministério.
O Presidente Chaim Weizmann recebeu-me em sua residência em
Telavive, já bastante alquebrado pela enfermidade de que em breve sucumbiria.
Ao ser recebido pelo Primeiro Ministro Ben Gurion,
surpreendeu-me vê-lo sem gravata. Quando nos separamos, manifestei certa
estranheza, mas fui informado de que aquilo era nele um costume e um traço
característico, já tendo dado margem a incidentes em reuniões e conferências
internacionais.
A construção do Estado de Israel — conforme a surpreendi de
passagem, e, por conseguinte, em flagrantes de itinerário, do modo como a senti
em contato com o seu povo, e, por outra forma, em emoções vividas de mais longa
permanência, ou à distância, através de impressões de leitura e depoimentos
humanos — há de inspirar, sempre, todos os homens, alentando-lhes a confiança
no esforço bem organizado para a consecução de um objetivo que tenha num ideal
o seu ponto de partida.
Poetas, escritores, sociólogos, cientistas, historiadores,
artistas plásticos e dramáticos celebrarão, sempre, com sucesso, a grandeza
dessa epopeia moderna dos judeus.
Todos os povos da terra hão de vibrar diante dela com
profunda admiração.
Uma coisa, no entanto, é incontestável: a obra do Estado de
Israel apresentar-se-ia impossível em condições diferentes.
Ela é magnífica, porém irreproduzível. Seu arrojado exemplo
não se aplica, e não se poderá, portanto, aproveitar em outra qualquer parte.
O Estado de Israel não foi construído e não vive apenas do
trabalho dos seus habitantes e da produção do seu solo, ainda que este, como se
sabe, tenha sido estimulado pela técnica mais prodigiosa na criação de
condições de fertilidade permanente.
Chegam-lhe recursos de todas as partes do mundo e das nações
mais ricas. Israel é, na realidade, uma nação infinitamente maior que o seu
limitadíssimo território.
Perguntei ao Ministro da Fazenda israelense sobre o
orçamento nacional.
— Temos um déficit orçamentário de 90%... — respondeu-me
ele.
Isto quer dizer: a receita do Estado cobria apenas 10% das
suas despesas, em 1951.
O Ministro da Fazenda de Israel era uma pessoa bem humorada,
a despeito do espantoso desequilíbrio que lhe cumpria administrar.
Ante a revelação do Ministro, comentei com ele:
— O formidável espetáculo do Estado de Israel, pelas suas
condições muito peculiares, jamais se poderia verificar no Brasil.
Ponderou-me, com um sorriso, o gestor das finanças
israelenses:
Por quê? O Ministro da Fazenda do Brasil também é judeu...
Referia-se ao Ministro Horácio Lafer
Em meu encontro com o Ministro das Relações Exteriores,
Moshe Sharret, pediu-me ele que transmitisse ao Governo brasileiro o desejo de
que fosse logo nomeado nosso representante em Telavive.
O Ministro de Israel junto ao Governo do Brasil, já
designado, foi-me apresentado na ocasião.
Ao voltar ao Rio, levei o pedido ao Presidente Vargas, que
me respondeu:
— Já convidei o Samuel Weiner. Ele será o nosso ministro em
Israel.
Fiquei surpreso com a notícia, não tanto por ser novidade,
pois já haviam circulado rumores a respeito, mas porque se tratava de uma
Legação que só poderia ser ocupada por diplomata de carreira, não sendo viável,
ainda, a sua transformação em Embaixada.
Não existia, assim, no momento em que estive no Estado de
Israel, nenhuma autoridade diplomática brasileira acreditada junto ao governo.
E as fronteiras de Israel com os Estados árabes vizinhos, conforme mencionei,
estavam fechadas e guarnecidas de tropas.
Só me foi possível ir à Transjordânia através de negociações
processadas pela Legação dos Estados Unidos em Telavive, recebendo-me, depois,
na fronteira, o Cônsul-Geral da Espanha, Duque Terra Nova, e um sacerdote
católico da mesma nacionalidade.
Penetrei, pois, sob a proteção da bandeira espanhola na
Jerusalém árabe, transpondo o vale de Josafá.
Dirigi-me ao interior da cidade percorrendo parte da
Via-Crúcis, visitando o Templo e o Palácio de Pilatos, a pedra da Mesquita de
Omar, local de onde, segundo a lenda, Maomé subiu aos céus, e uma outra
mesquita em que, oito ou dez dias antes, fora assassinado o rei Abdullah, e
que, por isso, ainda tinha cerrada a porta onde se dera o fato.
Avistei-me com representantes das religiões maometana,
copta, greco-ortodoxa e católica romana.
Tanto na parte judaica como na parte árabe de Jerusalém e
ainda no percurso que fiz de automóvel ao deixar Israel na direção do Líbano,
andei por terras da Bíblia: Judá, Tiberíades, Cafarnaum, Nazaré, Calvário,
Monte das Oliveiras, Monte Tibor, Mar da Galileia, berços e sepulcros de santos
venerados, sítios de milagres e sacrifícios, relicários e altares que,
perpetuando a fé criadora de uma civilização, evocam passagens da sua história
feita de tradições.
A geografia política não é mais a mesma da Palestina no
tempo do Novo Testamento. O tempo, no entanto, não parece haver transcorrido
sobre algumas descrições encontradas na Bíblia, que ainda correspondem à
atualidade, dando-nos a impressão de estar vivendo dois mil anos antes da era
cristã que conhecemos.
É a impressão do peregrino que se detém para contemplar e
visitar Judá.
A Jerusalém dos nossos dias está longe, porém, de
apresentar-se como a aldeia da entrada triunfal de Jesus, que Ele contemplou ao
chegar com os discípulos a Betfagé. Não é a cidade da predição de Ezequiel, no
Velho Testamento, que seria posta contra um cerco, edificada contra uma
fortificação, levantada contra uma tranqueira, pondo-lhe arraiais e vaivéns
redor.
É agora uma cidade de pedra, rasgada por grandes avenidas,
com modernos hotéis e densa população, restituída, no entanto, à legenda do
passado pelo mistério da noite que a encobre de sombras antigas, mas,
principalmente, com um toque sobrenatural, pela luz do amanhecer, uma claridade
que a distingue na profusão de cores que se entreabrem aos notívagos e aos
madrugadores através do sol que se acerca deles iluminando-lhes a insônia e a
contemplação de Jerusalém.
A Nazaré cheguei na hora da missa cristã ortodoxa. O
ambiente do templo era de absoluta concentração. De reverência e silêncio.
Ninguém levantava a cabeça para olhar ninguém. Nenhum gesto, nenhuma voz. Total
absorção dos fiéis no ofício religioso que se celebrava, atitude que não
ocorre, geralmente, nas igrejas aos domingos em países, como o Brasil, de
maioria católica, muitos, porém, católicos por hábito, costume ou tradição.
Em Nazaré, a severa impregnação que imobilizava a quantos
acompanhavam a missa, se devia ao meio ambiente onde se situava.
No Calvário, estão erguidos três altares e ali três
diferentes cultos velam, alternadamente, o lugar da crucificação do Cristo, não
correspondendo, entretanto, à Igreja Católica Romana, mas à religião
Greco-Ortodoxa, que lhe conserva o patrimônio, o local da Cruz.
O Calvário como o Monte das Oliveiras, vistos de perto,
perdem as proporções que nos ficaram na imaginação pela leitura dos textos
sagrados. São pequenas elevações do terreno, comparadas com a ideia que
tínhamos de sua grandeza e volume.
Há uma grande emoção em visitar-se os locais celebrados no
Novo Testamento, diluindo-se, porém, um pouco a mística ao penetrar neles e
melhor fora que continuassem imaginados e intocados.
No túmulo de Cristo, chocam-se as impressões vivas do
presente com a ideia de que ali esteve sepultado Aquele que uniu espiritualmente, entre tantas outras do
Ocidente, a Nação Brasileira, mantendo até hoje uma filosofia que inspira e
disciplina a vida de muitos povos.
Um pouco do que observara na Iugoslávia, em relação ao
governo, observei nos lugares santos em relação à Igreja Católica Romana e outras
relações.
O padre da Igreja de Judá, construída no local onde nasceu
São João Batista, entregou a mesma expressão do pároco da Dalmácia, ao
referir-se à coexistência religiosa em Jerusalém:
— É um horror! — exclamou para mim, em espanhol.
Visitei os templos de todas as religiões, inclusive dois e
mais templos da mesma crença religiosa.
Registrou-se na Mesquita de Omar a curiosidade de um
sacerdote em conhecer o valor da esmola que me havia observado dar a um dos
seus companheiros.
Não seria a importância do óbolo em si, mas, possivelmente,
acredito, em função da contabilidade de sua casa de orações.
Regressando a Telavive, fui notificado do sucesso das
negociações com a Síria, por intermédio do Secretário da Legação dos Estados
Unidos, no sentido de me ser permitida a entrada pela fronteira Israel—Líbano.
Fui recebido na fronteira pelo Encarregado de Negócios do
Brasil e pelo Secretário de nossa Legação em Beirute e, em nome do Governo do
Líbano, pelo Chefe do Protocolo da Chancelaria Libanesa.
Antes de chegar à Capital, examinei o terminal dos oleodutos
do Iraque, recentemente construído, numa extensão de mil e duzentos
quilômetros, percorrendo os depósitos de armazenamento e as câmaras de
descarga, além do porto de embarque em fase de construção.
Visitei no dia seguinte o Presidente da República Cheikn
Bechara El-Kouri, no seu palácio de verão, próximo à cidade de Aley, nas
montanhas.
À noite, o Governo do Líbano ofereceu-me um jantar ao ar
livre no restaurante de um dos principais hotéis da Capital, escolhido, ainda,
para a homenagem, por se encontrar situado na Avenida Brasil.
Fui informado que um grupo de brasileiros desejava
avistar-se comigo. Marquei o encontro imediatamente no mesmo hotel, indo
reunir-me a eles depois do jantar.
Constituía sempre para mim um prazer conversar no
estrangeiro com compatriotas.
O diálogo, como não podia deixar de ocorrer, girou em torno
de temas brasileiros, mostrando os visitantes um grande conhecimento pessoal da
situação paulista.
Foi-me fácil, assim, identificar o local de suas atividades.
Eram homens altos, fortes e morenos, descendentes, por
certo, de imigrantes, o que denotavam nos traços da fisionomia.
— São todos vocês de São Paulo? — perguntei-lhes curioso de
saber se, entre aqueles brasileiros, existiria alguém nascido no Nordeste, como
eu, ou natural do Rio Grande, de Minas Gerais, do Paraná ou de Goiás. Em que
estado nasceram?
— Nascemos aqui no Líbano — responderam-me.
— Todos?
— Todos. Mas somos brasileiros, o senhor não está vendo?
— Viemos ao Líbano a passeio...
Durante a permanência no Líbano, visitei a Síria no dia 4 de
setembro. Cheguei cedo a Damasco e ali deveria pernoitar, o que não aconteceu —
tornando à noite a Beirute com os companheiros de excursão.
Depois de cumprimentar o Presidente Achen Atassi, percorri
as partes interessantes da Capital síria.
No centro da Mesquita de Ommayade, monumento suntuoso
construído pelos maometanos, impressionou-me o túmulo, que me pareceu de ouro,
onde está guardada a cabeça de São João Batista.
Na estrada de Damasco, detive-me no ponto em que São Pedro
se refugiou dos seus perseguidores, onde foi aprisionado e de onde fugiu
miraculosamente, tendo visitado, também, a casa de Ananias, a cujo subterrâneo
São Paulo se recolheu após a sua conversão.
Há nesses sítios um sentido de mistério que revela uma
antiguidade maior do que se possa ajuizar, perdurando, em consequência, a
dúvida quanto à autenticidade das suas reminiscências, não se podendo saber, ao
certo, se datam de alguma época ou foram criados pela imaginação.
Estive no “Grande Bazar”, de comércio promíscuo e bem
sortido de brocados, móveis, tapetes e utensílios marchetados, criações
artísticas e artesanais de um país de lendas e tradições.
Tenho a impressão que visitamos Damasco em um dia pouco
conveniente.
Houvera, pela manhã, assassínios à porta da Mesquita de
Omayade e, em consequência, o povo se encontrava agitado. Em um grande mercado,
próximo ao templo, notamos a polícia embalada.
No hotel, onde almoçamos, sucediam-se as conferências
políticas.
Estávamos informados quanto às mortes e ao sentimento das
ruas. Mas, por falta de outros esclarecimentos, um dos companheiros de excursão
cometeu a imprudência de tentar tirar fotografias no interior do santuário
maometano.
Só então, e de maneira áspera, fomos advertidos de que
incorremos em heresia, praticando ato desrespeitoso e expressamente proibido.
A despeito das explicações dadas, não se desfez o mal-estar
criado. O motorista sírio, que nos conduzia, confidenciou-me em espanhol, um
tanto preocupado com a situação, a existência de um estado de revolta contra a
nossa atitude desprevenida.
A esse tempo, penetraram na mesquita os esquifes dos
assassinados, carregados nos braços erguidos dos carpidores, para o ritual da
encomendação dos corpos.
A dor e a cólera pareciam misturar-se, extremadas e
inseparáveis, no grupo espectral do séquito fúnebre.
Os gritos das lamentações confundiam soluços e imprecações,
dir-se-ia que recordando os mortos e amaldiçoando a sorte, repercutindo, assim,
assustadoramente, os sons da ululação, ora plangentes, ora frenéticos.
Aumentava nossa inquieta sensação de perigo, no local que
involuntariamente já profanáramos.
Aconselhou-nos o motorista a nos retirar da mesquita pela
porta dos fundos. No mercado, havia, agora, maior número de policiais armados.
Entramos, para acalmar os nervos, em um café, onde nos foi
servido um pequeno lanche.
Mais calmos, sofreadas as emoções, pedi a conta.
— Não lhe custou nada. Não há despesa a pagar, respondeu-me,
em português, o dono do bar.
Insisti em pagar a conta.
— Tivemos muita honra em servi-lo. Não é Vossa Excelência o
Vice-Presidente do Brasil? — perguntou-me.
Vira um retrato meu em jornal de Beirute, com a notícia de
minha visita à Síria.