UMA NOVA NARRATIVA, de LUIS ROBERTO BARROSO

Gostei deste artigo do Ministro do Supremo Tribunal Federal publicado na Revista Veja de 08/02/2017. Equilibrado, mostra nosso lado positivo (que muitas vezes ignoramos) e negativo (esse sim, fartamente divulgado). Mostra nossa ciclotimia: ora "ninguém segura este país", ora "estamos à beira do abismo". Gente, nem tanto ao mar, nem tanto à terra! O artigo diagnostica a doença e aponta caminhos para a cura. Sem cair na armadilha da velha e desgastada dicotomia esquerda versus direita. É preciso pensar "fora da caixa". Gostei de verdade.

Narrativa é a palavra da temporada. Considero-a melhor do que pós-verdade, oficialmente vencedora do ano de 2016. Na entrada do Oráculo de Delfos, na Grécia antiga, lia-se a inscrição: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”. Atribuída a Tales de Mileto, essa frase é considerada o marco do nascimento da filosofia ocidental, ao passar o homem e sua capacidade de reflexão para o centro dos acontecimentos. Cabe a cada indivíduo definir a sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Isso vale para os países também. Uma narrativa envolve o esforço de autocompreensão, de reconstrução da própria trajetória e da busca de um sentido para o futuro. Nela está embutida a exigência de se fazerem diagnósticos certos e sem idealizações, e de se buscarem as soluções que o realismo e o bom-senso impõem. Este artigo é um breve esforço nessa direção
Alguns exemplos para o mundo. Temos algumas contribuições importantes para a causa da humanidade. Apesar de ainda existir um velado racismo, somos o país da diversidade racial e da miscigenação. Brancos, negros, índios e todas as combinações possíveis formam a gente brasileira, em uma composição de cores e variados traços físicos. Somos, também, o país da diversidade religiosa, no qual cristãos, judeus, umbandistas e muçulmanos convivem sem atritos relevantes. Ortodoxias exacerbadas e fundamentalismos radicais não frutificaram por aqui. Somos um país de fronteiras pacíficas, de vasta extensão territorial, repleto de belezas e riquezas naturais. O país do bom humor, da alegria de viver, das festas populares e da extroversão. Gente sem medo e sem culpa de ser feliz.
Alguns fatos para nos envergonharmos. Mas somos, também, o país da desigualdade social extrema. Do número de homicídios superior ao de muitos países em guerra. Da violência contra todos, notada mente pobres, negros, mulheres, homossexuais e transgêneros. Da falta de habitações adequadas, de urbanização, de saneamento. Da favelização ampla, que degrada as pessoas, as cidades e o meio, ambiente. Um país com deficiências dramáticas na educação pública, na saúde pública, no transporte público, na segurança pública. Com poucas instituições de ensino de destaque e com monopólios públicos soterrados pela corrupção e pela ineficiência. Um país com estatísticas aterradoras no trânsito. Do jeitinho que contorna a lei, a ética e a isonomia. Mais recentemente, fomos protagonistas do maior escândalo de corrupção do mundo.
Uma nova narrativa para o país. A convivência de virtudes incomuns com vícios primários tem feito com que a percepção do Brasil por seu povo e por seus formadores de opinião oscile entre o ufanismo e a autodepreciação: ou somos os melhores do mundo ou temos um sentimento de inferioridade diante de outras experiências nacionais. Precisamos de um exercício de pensamento original que ajude a definir o nosso lugar no mundo, o que somos e o que temos para oferecer. Uma nova narrativa, capaz de olhar para trás e para a frente, de apresentar diagnósticos e propostas. Ao longo da história brasileira, pensadores e atores sociais notáveis – idealistas, pragmáticos, céticos ou visionários – empreenderam esforços para compreender, explicar e transformar o Brasil. Gente como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta, para citar apenas alguns. Ou artistas extraordinários, como VilIa-Lobos, Chico Buarque ou Caetano Veloso.
Patrimonialismo. Começando pelos diagnósticos, é possível identificar três disfunções atávicas que marcam a trajetória do Estado brasileiro. A primeira delas é o patrimonialismo. O termo revela o modo como se estabeleciam as relações políticas, econômicas e sociais entre o imperador e a sociedade portuguesa, em geral, e os colonizadores do Brasil, em particular. Não havia separação entre a fazenda do rei e a fazenda do reino, entre bens particulares e bens do Estado. Os deveres públicos e as obrigações privadas se sobrepunham. O rei tinha participação direta e pessoal nos tributos e nos frutos obtidos na colônia. Vem desde aí a difícil separação entre esfera pública e privada, que é a marca da formação nacional. A aceitação resignada do inaceitável se manifesta na máxima “Rouba, mas faz”.
Oficialismo. A segunda disfunção que vem de longe é o oficialismo. Essa é a característica que faz depender do Estado – isto é, da sua bênção, apoio e financiamento – todos os projetos pessoais, sociais ou empresariais. Todo mundo atrás de emprego público, crédito barato, desonerações ou subsídios. Da telefonia às fantasias de Carnaval, tudo depende do dinheiro do BNDES, da Caixa Econômica, dos fundos de pensão, dos cofres estaduais ou municipais. Dos favores do presidente, do governador ou do prefeito. Cria-se uma cultura de paternalismo e compadrio, a república da parentada e dos amigos. Um dos subprodutos dessa compulsão se expressa na máxima do favorecimento e da perseguição: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.
A cultura da desigualdade. Esse é o nosso terceiro mal crônico. A igualdade no mundo contemporâneo se expressa em três dimensões: a igualdade formal, que impede a desequiparação arbitrária das pessoas; a igualdade material, que procura assegurar as mesmas oportunidades a todos; e a igualdade como reconhecimento, que busca respeitar as diferenças de gênero e proteger as minorias, sejam elas raciais, de orientação sexual ou religiosas. Temos problemas nas três dimensões. Como não há uma cultura de que todos são iguais e deve haver direitos para todos, cria-se um universo paralelo de privilégios: imunidades tributárias, foro privilegiado, juros subsidiados, auxílio-moradia, carro oficial, prisão especial. A caricatura da cultura da desigualdade ainda se ouve, aqui e ali: “Sabe com quem está falando?”.
Avanços importantes. Ainda somos viciados em estatismo, paternalismo e privilégios. Mas diversas gerações têm enfrentado esses desajustes, que vêm sendo superados com a velocidade possível. Nem sempre tivemos sorte: ao longo da história, o iluminismo sucumbiu em diferentes momentos da vida brasileira. José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, San Tiago Dantas: nenhum deles foi a voz que prevaleceu no seu tempo. Mas, ainda assim, em épocas mais recentes, conseguimos vitórias importantes: a superação da miséria absoluta, a proibição do nepotismo nos três poderes, a luta aberta contra a corrupção, o enfrentamento da violência contra as mulheres, a legitimação das uniões homoafetivas, um debate mais aberto sobre a questão das drogas e sobre a descriminalização do aborto. Há vitórias a celebrar. A propósito, decisões judiciais até podem ajudar a empurrar a história, mas, sem mobilização social, cidadania ativa e espírito cívico, avanços iluministas não se consolidam. A democracia é o governo do povo, não de juizes.
Um projeto progressista. A curto prazo, precisamos de um projeto progressista, que envolve três eixos: econômico, com empreendedorismo, inovação, risco e competição, em lugar da dependência e favorecimentos; social, com políticas redistributivas equilibradas e justas, que incluem assistência social onde indispensável, serviços públicos de qualidade e um sistema tributário menos regressivo; e político, com uma onda de patriotismo e idealismo apta a implantar um sistema eleitoral e partidário melhor, capaz de atrair novas vocações. Para além do curto prazo, é preciso mirar o horizonte.
Um novo começo. A história é um caminho que se escolhe, e não um destino que se cumpre. Precisamos de um esforço de autocompreensão. Identificar nosso patrimônio comum, nossos valores, nosso projeto civilizatório. Sem dogmas nem superstições. A Constituição é uma boa bússola, e não um obstáculo. Sobre o desencanto de uma República que ainda não foi, precisamos de um novo começo.

HOMENAGEM AOS BEATLES ou OS REIS DO IÊ IÊ IÊ

OS REIS DO IÊ IÊ IÊ (crônica de Ivo Korytowski escrita em junho de 2001 depois de assistir no Cinema Laura Alvim a uma cópia restaurada do primeiro filme dos Beatles, A hard day's night Os reis do iê, iê. iê!)

Chego ao Bruni Ipanema uns vinte minutos antes do início da sessão das quatro. A fila, quilométrica: mar de adolescentes. Na bilheteria, o aviso de lotação esgotada. Aguardo duas horas pra enfim assistir à sessão das seis. Dentro do cinema, algazarra, gritinhos das fanzocas! Todas as filas lotadas, mesmo as primeiras, perto da tela, normalmente evitadas — gente esparramada até pelo chão.

Três décadas e meia depois, revejo o mesmo filme, cópias restauradas, som digital: OS REIS DO IÊ IÊ IÊ. Cinema vazio, sessão tranqüila. Os cabelos compridos dos Beatles já não parecem tão compridos assim. As canções inovadoras de então, hoje, de tão familiares, soam como standards e, após décadas de convívio com o Inglês, consigo entender as letras! Mais cinqüenta anos, serão clássicos, como Lieders de Schubert.

O mundo, então, era outro, dividido em dois blocos antagônicos, luta de vida ou morte: capitalista e comunista. Como no maniqueísmo, um bloco representava o BEM, outro bloco representava o MAL. Qual era qual, dependia do ponto de vista. Mais ou menos uma questão de fé: havia os crentes no Mundo Livre em luta contra a Cortina de Ferro, e os partidários do socialismo na guerra santa contra o imperialismo ianque. Os arsenais nucleares acumulados pelas duas superpotências dariam para destruir várias humanidades. "Depois da morte de Cristo, os apóstolos pensavam que o Juízo Final e o fim do mundo eram iminentes. Embora acreditassem nisso, não havia nenhuma ameaça real de destruição. Atualmente, a situação é inversa: o mundo está mesmo ameaçado de destruição e ninguém acredita", teria dito Jaspers — li esta citação em algum jornal ou revista de 1970 e anotei num caderno.

A descoberta da pílula anticoncepcional foi um "estouro", como se dizia. A camisinha, praticamente relegada ao baú de velharias, indo fazer companhia à galocha e ao pincenê. Mas que ironia, retornar com força total décadas mais tarde, em presença da AIDS! A Igreja não tardou em condená-la, como outrora condenara o heliocentrismo e hoje condena, digamos, a engenharia genética e a eutanásia. Ao libertar o sexo da procriação, a pílula fez a humanidade descobrir os prazeres do então denominado "amor livre". Hoje, transar com quem bem se entende tornou-se tão normal, que parece que sempre foi assim. E as mulheres nem se dão mais ao trabalho de tomar a pílula. Deixai nascer as criancinhas!

Naquela época, a música, tal qual o mundo, dividia-se em dois blocos antagônicos: a música dita clássica — a "verdadeira música", imortal — e a música popular, descartável, "que daqui a alguns anos ninguém mais ouvirá": rock and roll, cha-cha-cha, twist, hully-gully. Só que esses "alguns anos" se passaram e acabamos tendo a surpresa de descobrir que a "música popular" — sobretudo o jazz — foi a "música clássica" do século XX! E a "música clássica" do século XX... quem é que ainda ouve, a não ser um ou outro aficionado, a "música clássica" do século XX?

Acreditava-se que no ano 2000 (caso o mundo fosse poupado do cataclismo previsto por Nostradamus) nos alimentaríamos de pílulas. Em vez de dormir, tomaríamos pílulas também. O céu estaria coberto de aeromóveis, bondes aéreos e táxis celestes. Passaríamos as férias na Lua. O mundo formaria um bloco político único, sem nações. E passaríamos umas cinco horas diárias diante do "telesen", aparelho que substituiria o cinema, teatro, rádio e televisão — vide "O Estranho Mundo do Ano 2000", no volume II de Nosso Universo Maravilhoso, do início dos anos 60.

As garotas se dividiam em “direitas” e “piranhas”: as direitas, só "davam" depois de terem seu casamento devidamente garantido e agendado. Já as "piranhas" mostravam-se mais generosas — é dando que se recebe. Inveja da galera de hoje, que pode escolher dentre um farto menu de tchutchucas, purpurinadas, popozudas, preparadas, glamourosas, cachorras...

Os carros fabricados no Brasil: o onipresente e simpático Fusca, o Aero Willys, o DKW Wemag, o Gordini, o JK — mas, cá entre nós, a quem interessa isso?

As drogas que a gente curtia eram todas legais: birita, antidistônicos, bolinhas moderadoras de apetite! "Maconha" ainda se chamava "diamba", estranho narcótico consumido por índios e caboclos de, sabia-se lá, que tribos e sertões. Erva maldita, ainda.

A televisão, preto e branco; o computador, um trambolhão que só existia lá nos States; revista de sexo explícito, só na Suécia — berço do amor livre. Lembram? Quem comesse carne na Sexta-feira Santa, ninguém se admiraria se lhe caísse raio na cabeça. Corpus Christi, dia santo, e não feriadão pra se viajar à Região dos Lagos ou Guarujá. Bons católicos freqüentavam a missa aos domingos, bons judeus, a sinagoga nas noites de sexta-feira (sempre fui mau judeu). O casamento no Brasil, indissolúvel — só a morte tinha o poder de rompê-lo.

Mas — posto que sem Internet, sem Viagra, sem filmes pornô — tínhamos um tesouro que não temos mais: os quatro Beatles,
juntinhos e todos os quatro vivos.

Que mais no mundo se nos fazia preciso?

Colagem com as fotos dos Beatles que vinham junto com o "disco branco"