Antes da chegada do
branco europeu por aqui, os nativos eram os donos desse Brasil
imenso. Exerciam um ritual próprio de vida, que aprenderam dos
antepassados. Viviam na tribo, cercados pela natureza intacta.
Viviam em liberdade na Baía de Guanabara ou em qualquer praia do Rio
de Janeiro, no século XVI, como de resto no vasto território
brasileiro. Na paisagem natural da Baía de Guanabara, as mulheres
banhavam-se no rio Carioca, preparavam uma bebida com o milho ou a
mandioca, o cauim, que a tribo apreciava. Como os donos da terra e
das águas, caçavam e pescavam. Viviam em comunhão com a
natureza, daí serem vistos no início pelo branco invasor como o
modelo do bom homem em seu estado selvagem.
Em outro momento
foram observados como objeto de dupla finalidade da colonização
europeia. O europeu colonizador queria tirar proveito econômico do
estado selvagem do índio, aproveitando-o como mão de obra gratuita
e necessária, enquanto a catequese desejava fazê-lo como o novo
habitante do reino cristão, libertando-o do paganismo. O índio
servia assim como elemento de observação por gente que vinha de
mares nunca antes navegados e de crítica no campo literário.
Na sua famosa Carta
de Achamento, o escrivão Pero Vaz Caminha inicia toda a série de
crônicas e de literatura descritiva, tendo como abordagem um Brasil
nascente em estado primitivo. Esse primeiro encontro através do
escrivão luso e os nativos informa sobre uma gente de boa
aparência, mansa e atraente na sua pureza para a conversão. Ao
escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, seguiram-se outros
cronistas tratando do assunto com material mais amplo, e, entre
eles, Gabriel Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo, Pero
Lopes de Sousa e Hans Staden.
O tema do
índio em Meu
querido canibal (2000),
de Antonio Torres, tem novo significado e representatividade
romanesca na literatura brasileira. Se bem que em outro contexto, o
texto que resulta deste romancista consagrado, moderno, de técnica
modelar, pende para o herói derrotado, e, nessa constatação, em
que impera a linguagem acessível para delinear a crônica no
espaço do descaso histórico com o drama e a tragédia dos
nativos, mostra o índio como uma criatura sem saída em sua
heróica atitude guerreira, transformadora de sua comunhão com a
natureza. Opera como um dos elementos de uma nova concepção de
civilização, que resiste ao conquistador, mas que termina por ser
exterminado.
Em José de
Alencar, as qualidades do nosso primeiro habitante são idealizadas
e executadas como compensação. Elege-se a exaltação romântica
das virtudes individuais e sociais, os sentimentos de orgulho,
lealdade, amor à liberdade, valentia, que o transformam no herói
nacional, moldado assim com caracteres próprios, distantes das
adaptações europeias.
Com
Adonias Filho, o assunto lembra até certo ponto o índio de José de
Alencar no que diz respeito ao tratamento digno que lhe é
conferido, embora as visões sobre o mesmo tema se afastem no plano
da elaboração e execução ficcionais do mundo porque nascidas em
épocas diferentes, contextos distantes, ajustando-se cada uma delas
às suas peculiaridades e metas. No indianismo adoniano, o herói
trágico mostra-se na trama vinculada à selva, na infância da
região cacaueira baiana, penetrada por forças obsessivas do
destino, como elemento da ação ou que impulsiona o episódio. As
determinantes coincidentes do naturalismo situam esse herói à
maneira de um percurso imutável, em que o trágico fixa suas garras
de horror e infortúnio, tendo como proposta final a catarse, que
chega impregnada do alívio. Ou encontra saída na ressurreição,
naquela dimensão que não é desta vida.
Em
Antonio Torres, a personalidade do índio Cunhambepe se faz conhecer
através de própria conduta marcada no gesto primitivo, entre a
naturalidade da existência e a oposição ante o invasor europeu.
Os nativos são vistos pelo autor através de observações
sensatas, pesquisa ampla nos estudiosos do assunto, em documentos,
revistas e jornais. A essência dessa personalidade do nativo chega
de zonas críticas, que se vai formando nas lembranças do rito,
rastros da desgraça, nas vozes do embuste e da farsa histórica,
na repercussão do som e da fúria, que, vinda do passado, está
como vestígios no presente.
Desde a estreia em
1972, com o romance Um
cão uivando para a Lua,
o baiano Antônio Torres chamou a atenção da crítica e leitores
do melhor ambiente literário como um romancista que chegava para
ficar com destaque no corpo das letras brasileiras contemporâneas.
O consagrado romancista, que nasceu no povoado do Junco, atual
município de Sátiro Dias, na Bahia, no início foi jornalista em
São Paulo. Ao longo de sua carreira literária, produziu, entre
outros, os romances Os
homens dos pés redondos
( 1973), Essa
Terra
(1976), Balada
da infância perdida ( 1986),
Um
táxi para Viena d’Áustria
(1991),
O cachorro e o lobo
(1997) e Meu
querido canibal
((2000).
Seus livros
têm frequentes reedições. Um deles, Meu
querido canibal ,
já alcança a décima segunda edição. Nestes tempos velozes da
tecnologia, apetência constante dos meios eletrônicos, primazia
da imagem visual, em que se propala que o romance impresso tem seus
dias contados, o caso de Antonio Torres desdiz a afirmativa das
posições unilaterais, precipitadas. É o testemunho de que não é
bem assim. Muda-se o suporte do livro, mas o romance impresso, de
boas qualidades literárias, visibilidade, densidade, rapidez, como
quer Italo Calvino, precisão no que pretende dizer, linguagem
acessível, sem ser vulgar, conteúdo rico, imaginário esplêndido,
continua vivo.
Em Meu
querido canibal, numa
sacada inteligente, Antonio Torres reinventa-se em escritor-cronista
moderno para, de peito aberto, como um neorromântico, mostrar-se
indignado com a memória de um herói verdadeiro, perdido no tempo,
“mesmo tendo demarcado um território e inscrito nele a sua
legenda”. No capítulo 2, alerta que esse herói, de nome
Cunhambepe, que quer dizer homem de fala mansa, era um guerreiro.
Situado no tempo da pedra polida, viveu numa região paradisíaca
batizada de Rio de Janeiro. Pertencia à nação tupinambá, que
significa Filho do Pai Supremo, povo de Deus, oriunda do grande
tronco tupi-guarani.
A leitura
desse romance em que, desprovido do tom panfletário, gratuito e
irresponsável, denuncia o extermínio do índio brasileiro, eram
cerca de seis milhões quando por aqui aportou o português
aventureiro, ávido de riquezas, tendo como abono os jesuítas,
melhor dizendo, a espada numa mão e a cruz na outra, permite, sem
esforço, considerar que Cunhambepe é o primeiro herói de um país
cujos rastros terríveis vieram das pegadas truculentas de
aventureiros, degredados, traficantes, corsários, contrabandistas
e corruptos.
Fácil perceber
que a história de Cunhambepe não é do edênico bom selvagem, dono
das selvas e das águas, dos sonhos advindos da natureza em estado
puro, vivendo nu como quando se vem ao mundo, na era da pedra
lascada, contemplando-a e tentando adivinhá-la nos seus profundos e
assombrosos mistérios. Não é a do herói dos brancos e traidor
dos índios. É a de quem estava do lado de seu povo, levando-o a
lutar até o último gemido, porque era melhor sucumbir do que ser
submisso ao invasor escravagista. Nisso residia o sentido de quem
estava numa guerra estupidamente desigual, entre o canhão
avassalador do branco europeu e a flecha banida da taba para rolar
na mancha das águas, que envergonha. .
Com sua
biografia restrita a referências mínimas, sua história reduzida a
poucas linhas, mesmo assim entregue ao sabor das traças, esse
querido canibal herói encontra em Antonio Torres uma reconstituição
brava e eficaz resultante da motivação digna do imaginário e da
transpiração eficiente na escrita comprometida com a verdade.
Colhida e corrigida esta em estudiosos do assunto, tantas vezes
equivocados, quando dotados de preconceito e superficialidade
omitem a figura nativa na galeria dos heróis autênticos da
história desse país, porque em conluio com o embuste no
tratamento oficial do tema.
Adorável
canibal, esse guerreiro, herói verdadeiro, encontrado por Antonio
Torres para o bem da literatura brasileira, retirado da nebulosa de
nossa história com traços firmes na escrita ágil e atraente.
REFERÊNCIAS
TORRES, Antônio.
Meu
querido canibal,
Editora Record, Rio, 2016.
ALMEIDA, José
Maurício de. A
tradição regionalista no romance brasileiro. Editora
Achiamé, Rio de janeiro,
1981.
CÂNDIDO, Antonio.
Formação
da literatura brasileira. São
Paulo: Livraria Martins Editora, 1964, segundo volume.
MATTOS, Cyro de. As
criações de Adonias Filho,
Publicações da Academia Brasileira de Letras, Rio, 2017.
SODRÉ, Nelson
Werneck. História
da literatura brasileira.
José Olympio Editora, Rio, 1960.
*Cyro
de Mattos é
contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista, organizador de
antologia, autor de livros para crianças e jovens. Membro efetivo
da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela
Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado no Brasil, Portugal,
Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália, França,
Alemanha, Espanha e Dinamarca. Conquistou o Prêmio Internacional de
Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, o Afonso
Arinos da Academia Brasileira de Letras, Associação Paulista de
Críticos de Arte com “O Menino Camelô”, infantil, e o Prêmio
Nacional Pen Clube do Brasil com o romance “Os Ventos Gemedores.
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