HOMENAGEM A HELGA FLATAUER, SOBRENOME DE SOLTEIRA PADERSTEIN

Der deutsche Text des Vortrags von Helga Flatauer über ihr Leben können Sie hier lesen. 

Em 16 de fevereiro de 2021 comemoramos o centenário de nascimento de Helga Flatauer (sobrenome de solteira Paderstein), que infelizmente não está mais conosco, já que faleceu em 2011 aos noventa anos de idade. Helga foi a introdutora no Brasil do programa “Alcançar a Recuperação”, no Hospital Albert Einstein, de apoio a mulheres mastectomizadas, baseado no “Reach to Recovery” da American Cancer Society, através de voluntárias que também passaram pela mastectomia. A seguir uma palestra de Helga proferida em alemão em Vockenhausen em 4 de abril de 2008, traduzida por seu sobrinho, o editor deste blog. O texto original alemão da palestra pode ser lido aqui

Antiga árvore genealógica da família doada por Helga Flatauer ao Museu Judaico de Frankfurt

 A PALESTRA

Hoje estou diante de vocês, moradores de Eppstein e Vockenhausen. Não me será difícil falar com vocês sobre minhas lembranças. Lembranças de uma longa vida.

Eu retiro essas lembranças de antigos diários e centenas de cartas que meu pai e minha mãe escreveram durante a emigração.

Vamos começar pela primeira parte de minha história. Muito tempo antes de eu ter nascido. Histórias que minha mãe contava. A segunda parte conta sobre a época sob o regime nazista e nossa emigração para o Brasil.

Sobre meu retorno à Alemanha talvez possa falar também.

No ano de 1919, a volta do meu pai da guerra. Condecorado com a Cruz de Ferro 1a Classe. Retornou com a consciência orgulhosa de ter servido sua pátria. 96 mil soldados judeus participaram da guerra. Dos 550 mil judeus que viviam então na Alemanha, 80 mil lutaram no front. E 12 mil soldados judeus tombaram na guerra.

Lembro-me de fotografias do front em um papel um tanto avermelhado e desbotado. Os soldados pareciam bem contentes. Perder a guerra, nisto não se pensava.

 

Wilhelm Paderstein durante a guerra


A família do meu pai vivia em Paderborn, Vestfália. Meu avô, Emil Paderstein, um brilhante homem de negócios. Foi o fundador da cervejaria Dortmunder Union e como banqueiro fundou o Deutsche Bank em Paderborn. Era um homem bem abastado. 

Casou-se com Frederike Grünebaum. Um linda e jovem mulher. Vinte anos mais jovem que seu marido. Tiveram cinco filhos.

 

Wilhelm Paderstein e seus pais

Wilhelm (Guilherme), o filho mais novo dentre cinco crianças, queria se tornar fazendeiro. Como foi parar em Hof Häusel não sei dizer. Seu pai financiou a compra. Em uma carta dirigida ao pai Wilhelm expressou seu agradecimento ao pai com a promessa de cultivar a fazenda e administrar o dinheiro da forma mais conscienciosa.

Sua noiva, Grete Gerson, uma moça alegre e divertida de Berlim, nascida em Dortmund, viajou para Eppstein, à margem do Taunus, a fim de visitar seu noivo. O casamento em Berlim estava planejado.

Durante sua visita Gretchen foi surpreendida pela ocupação das tropas francesas. Uma viagem de volta a Berlim não era possível. Mas um telegrama dos pais, preocupados com a integridade moral da filha, chegou em Hof Häusel com as seguintes palavras:

“Onde dorme Gretchen?”

“Na cama”, foi a resposta, curta e concisa para aquela época.

 

Margarethe (Margarida) Gerson (direita - mais tarde, Paderstein) com colegas de escola


O casamento foi selado em 19 de novembro de 1919 em Niederjosbach, ou Oberjosbach, no cartório. E o casal foi morar na antiga casa, uma antiga queijaria, como consta dos documentos. 

Grandes castanheiras atrás da casa davam no verão sua sombra e mais tarde seguraram os balanços das duas menininhas em seus braços. 


Hof Häusel, aquarela de Charlton Smith de junho de 1966


Uma nova casa residencial foi planejada. Grande e espaçosa. O Dr. Voggenberger [Fritz Voggenberger, 1884-1924], um arquiteto de Frankfurt, fez a planta. Até hoje o telhado repousa acima das copas das árvores. O Dr. Voggenberger morreu muito jovem. Lembro-me ainda do obituário e de sua fotografia num jornal. Era uma casa fora do comum. Com certeza bem moderna para aquela época.

Em 16 de fevereiro de 1921 nasceu Helgali [diminutivo de Helga] em Frankfurt no hospital Marienkrankenhaus. Era pleno inverno. Um carro foi chamado de Frankfurt e levou horas até enfim chegar. Minha mãe precisou descer a rua íngreme na neve e gelo. E rezava ao bom Deus que a poupasse de dores no caminho para baixo.

Uma menininha nasceu. Era para ter sido um menino para portar o orgulhoso sobrenome Paderstein. A decepção do meu pai foi grande. Como consolo a criança foi chamada de Helga. Um nome alemão. Loura de olhos azuis. Eu cumpri minha promessa.

Em agosto de 1921 chegou em Hof Häusel um homem jovem para ajudar na colheita. Seu nome era Ewald Just. E com entusiasmo e paixão juvenil apaixonou-se pela menininha. Na despedida escreveu um poema pedindo que fosse entregue para Helga no seu 14o aniversário, em 1935. Também seu poema me acompanhou de volta para cá.[1] E vou lê-lo no final para vocês, como um documento, ao final de minha narração.

O poema mostra para mim, e talvez também para vocês, que não se pode alterar seu destino. Ao contrário, que o ser humano, apesar de todos os bons desejos e expectativas, deve seguir seu rumo na vida prescrito. Raramente pensamos nisto!

E lentamente transcorreram os anos.

 


Em 25 de janeiro de 1926 nasceu minha irmãzinha [Anita, mãe do editor deste blog]. Nunca esquecerei esse dia. De manhã cedo, ao que me pareceu, dormindo na cama da minha mãe, acordei. Era a voz da Senhorita Änne, a babá. Helgali, disse para mim, você ganhou uma irmãzinha. Não consegui imaginar como seria. Com um pequeno buquê de violetas na mão, viajamos à tarde de trem para Frankfurt. Em um pijama cor de salmão forrado de penas de cisne brancas, minha mãe estava deitada numa grande cama. O berço com minha irmãzinha ao seu lado. Minha mãe me parecia então uma mulher linda.

Então veio o primeiro dia de escola em Vockenhausen. Valentes marchavam as perninhas por gelo e neve. A lancheira cheia de delícias ficou pendurada muitos anos, como consolo, sobre a porta do meu quarto de criança.

Mas aí chegou o inverno e um destino ruim me surpreendeu. Estava com sete anos. No galinheiro e seu laguinho que ainda não havia congelado por completo, os pezinhos afundaram na água gélida. A camada de gelo se rompeu em mil fragmentos e as galinhas e gansos ficaram observando. O medo de uma bronca foi grande, e os pezinhos ficaram frios e molhados. O que eu devia contar em casa?

Um resfriado transformou-se em infecção dos pulmões. E ela quase me custou minha pequena vida. A IG Farben Hoechst havia naquela época descoberto um medicamento novo. Sulfa era seu nome. Testaram em mim. E salvou-me a vida. Aos poucos fui sarando.

A criança precisava se restabelecer. Na primavera viajamos até Lugano, ficando em um hotel à beira-mar. Papai comprou uma vara de pescar. Algum peixe morderia a isca? Não sei. Escondi a vara nuns arbustos no parque. No dia seguinte, havia desaparecido.

Depois que voltei para casa, não deveria mais ir à escola em Vockenhausen. Professoras particulares vieram dar aula em nossa casa. Deveriam substituir nossa escola. Na minha cabecinha de criança, a escola era uma praga. Em vão eu pelejava com a tabuada de multiplicação, francês e ortografia.

Lá fora os cavalos aguardavam. O estábulo com o adorável cheiro. O feno nas pastagens precisava ser virado. Os gatos esperavam por seu leite. As galinhas cacarejavam e punham um ovo. O pavão balançava sua cauda de penas coloridas. Sua fêmea, em seu vestido de penas marrons sem graça, postava-se admirada ao lado. Medo eu tinha dos gansos que, como nossos inimigos, reconheciam nossas pernas de criança. Tudo isto e ainda muito mais era minha vida no sítio.

Porcos eram abatidos. O triste guinchar ante a morte certa. Saíamos correndo, o mais rápido possível. E do porco guinchante surgiam presunto e salsichas. Schlachtplatte.[2] Um prato suculento. O pão era assado. Sobre duas cadeiras na cozinha repousava a gamela. Levedura, farinha, sal e água eram misturados com a mão. E a fragrância de pão recém-assado invadia a casa.

As prímulas amarelas, tantas. As mãos infantis eram pequenas demais para conterem o buquê. Primavera, verão, outono e inverno. Cada estação do ano tinha sua história. Cerejas grossas no alto das árvores. Suco de maçã em garrafas com etiquetas coloridas. Grandes barris e sidra, nossa bebida diária.

Andar de trenó na neve. O boneco de neve e a descida de trenó pela montanha. Coque preto para calefação. O aquecedor menor para dias frescos no outono. O aquecedor maior no inverno. Uma vez por semana tomávamos banho. Era uma algazarra, um divertimento. Todos na mesma água. Fomos educadas de forma frugal.

E aí chegava o Natal. A expectativa era tamanha. Nenhum buraco de fechadura era pequeno demais para impedir que espiássemos, com um olho, a iminente felicidade. Mas no dia 9 de dezembro Papai Noel já surgia à nossa frente.[3] Com sua barba branca e voz profunda. Ele sabia todas as nossas mentirinhas, travessuras, e seu saco era tão grande. Prometíamos nos comportarmos pelo resto da vida. E aí ele pegava o saco e sacudia. Os presentes, nossos desejos silenciosos, jaziam no chão.

Depois se assava. Kringel [tipo de pretzel], biscoitos, bolo de mel. Ao final do dia, quando já estava escuro, vinha o anjo do Natal com sua veste branca. Os biscoitos no peitoril da janela da cozinha ele deveria provar. Bem atrás no jardim em um pinheiro ardia uma vela. Iluminava seu caminho.

E finalmente, em 24 de dezembro, véspera de Natal. Mal conseguíamos aguardar! Aqui no saguão, onde estou hoje, uma grande mesa coberta com todos os presentes. No salão o piano e a árvore de Natal. Ouço a voz de vovó Lieschen. Uma bela voz, noite feliz, noite de amor. Oh Tannenbaum, oh Tannenbaum, wie grün sind deine Blätter.[4] Todos cantávamos juntos. Os presentes eram abertos. A casa estava toda perfumada. Todos nós estávamos contentes. Frieda, a cozinheira, Hanna, a copeira, que mais tarde se casou na igreja católica em Eppstein e acompanhou seu marido aos Estados Unidos. Mina, a arrumadeira, com suas pernas um tanto tortas. Ehlert, o administrador, com seus filhinhos. E claro que os cachorros. Ninguém era esquecido. Estávamos despreocupados e satisfeitos. A vida para nós era bela, e nada pressentíamos de nosso destino.

O pacote de frutas do sul da Vovó Lieschen para o Natal não faltava. Laranjas, bananas. Maçãs da Califórnia com bochechas vermelhas. Papai via as frutas de forma crítica e comentava: comam suas peras e maçãs alemãs!

Bons modos, tão importantes na vida, nos eram ensinados. Não falar com a boca cheia, não apoiar os cotovelos na mesa. Não deixar comida no prato. Tínhamos um papai rigoroso e uma mamãe afetuosa.

Cavalgar e o grupo de equitação em Wiesbaden com Tio Heini na ponta. Quantas horas, as mais felizes de minha vida, pertenciam a esses momentos. Petrella, meu cavalo de nosso estábulo com a estrela branca na testa. Meu grande amor. Lágrimas do primeiro amor derramei ao seu pescoço. Será que entendia minhas preocupações? Tanta coisa eu poderia ainda lhes contar daquela época.

Em pensamentos estou sentada no meu quarto. Junto à minha escrivaninha envernizada de branco. As paredes revestidas com papel de parede azul-claro. Em uma prateleira cactos de todos os tamanhos e formas. Quando todos dormiam, na calada da noite eu cortava um botão de rosa no jardim. O orvalho jazia sobre suas folhas. E à luz de vela meu diário era preenchido página após página. Com sonhos infantis e dores. A vida era tão importante naquele tempo.

Mas aos poucos, bem ao longe, nuvens escuras se formavam. Hof Häusel continuava à luz do sol. O portão de ferro forjado, a entrada para a casa, trazia a data 1934 e as iniciais W P, Wilhelm Paderstein. E nossa vida transcorria tranquila.

 

Haras Hof Häusel

 

Cavalgar no grupo de equitação em Wiesbaden era “funz”. A palavra para fabuloso na nossa linguagem de então. O ponto alto era o corso no outono em Wiesbaden na Wilhelmstraße sob o júbilo das massas e sob as janelas ornadas com as bandeiras da suástica vermelhas. Eu era autorizada a cavalgar na ponta sobre um vistoso cavalo branco. Acompanhada à direita e à esquerda por dois companheiros. As pessoas lançavam buquês de flores sobre nós. Na cabeça uma grinalda com ásteres lilases e amarelos. A cor de nosso clube de equitação. Um dia bem feliz na minha vida. Mas só por um breve tempo.

Num ensolarado dia de outono, tocou a campainha da casa. Tio Heini, meu grande amor, queria falar conosco. Havia sido pressionado. Uma judia não tinha mais lugar na garupa de seus cavalos. O que significou para mim o fim do mundo.

E aí vieram as leis. Arianos não podiam mais trabalhar para judeus. Palavras como Rassenschande[5]  passaram a fazer parte do idioma alemão.

Começamos a nos ocupar com uma imigração. Israel, Ragusa, Suíça, Côte d'Azur. Nenhum destes lugares se concretizou. Permanecemos em Hof Häusel. Íamos pescar trutas no riacho. Trutas, que abocanhavam, gulosas, as minhocas no anzol. De noite iam parar na caçarola. Uma refeição deliciosa.

Amigos vinham nos visitar. Passava-se manteiga no pão, consumido com cidra num canto tranquilo. Hoje vejo a fuga da verdade que ali existia. “Não queríamos acreditar em nada daquilo!” Emigrar? Mas para onde?

Kurt Meyer, um grande amigo meu, que gostava muito de mim, cujo pai era proprietário da cervejaria Sonnenbrauerei em Mainz, deixou a Alemanha na calada da noite. E salvou sua vida indo para a Suécia. Seu pai mais tarde se matou. Ernst Philipstal emigrou para a África. Fazíamos planos. Queríamos casar. Não deu em nada. Meu amor não era grande o suficiente e eu ainda era nova demais. O Sr. e Sra. Kass, nossos amigos de longa data de Frankfurt, emigraram para a Inglaterra. Também Morels. Werner Mankiewitz, um primo do meu pai. Nós o encontramos mais tarde em Buenos Aires. Mary e Änne, as amigas de minha mãe. Tiveram sorte e conseguiram um visto para os Estados Unidos.

À nossa volta estava ficando vazio e quieto. Ehlert, nosso administrador com seus filhinhos e sua mulher, deixaram-nos e choraram. Mina a arrumadeira, Hannah a cozinheira, também elas nos deixaram. Só o Dr. Fernkorn, nosso preceptor, pôde ficar. Para nossa sorte tinha uma mãe judia. Seu cargo de professor havia perdido. Sua nova missão era preparar a nós, crianças, para a vida.

 

Estados Unidos (1929)

Outra vez veio uma nova lei. Cavalos judeus não podiam mais correr nos hipódromos alemães. Não eram suficientemente arianos. Em uma viagem a Berlim em visita à Vovó Lieschen, não achamos nenhum restaurante e nenhum hotel, ainda que fosse para tomar um copo d'água. Em todas as entradas e portas um aviso: judeus não são bem-vindos.

Sim, a necessidade de uma emigração se tornava premente. Tio Walter e Tia Eu de Königstein preparavam seus papéis para o Brasil. Ali trabalhava seu filho numa grande indústria química. Dava para comprar terras lá. Candidatar-se a ir para a selva plantar café em Rolândia. A selva aguardava os ingênuos emigrantes. Após muitos anos de dificuldades inacreditáveis na vida diária, Rolândia havia se tornado um Eldorado.

O Brasil tornou-se nossa meta. Quase todas as fronteiras em 1938 estavam fechadas. Brasil, país cuja língua desconhecíamos. Começamos a ter aulas de português. Mal se sabia naquela época onde ficava a América do Sul!

As tarefas domésticas sem empregada nem ajuda na enorme casa tornaram-se parte de minha vida diária. Aprendi a fazer as camas. Aprendi a cozinhar, passar a ferro e costurar. Hof Häusel foi até o fim o refúgio de muitas pessoas. Todas com o mesmo objetivo: escapar do inferno de nossa terra natal.

Os cavalos foram vendidos. Menos um problema. Reichsfluchtsteuer [imposto sobre saída de capitais], todo tipo de taxações sobre judeus. Centenas de milhares de marcos fluíram para o caixa de nosso perseguidor. E enfim a casa também foi vendida. Em 8 de setembro, aniversário de minha mãe, o cônsul brasileiro entregou-nos o visto para o Brasil. Era um visto para a família “católica” Paderstein. E hoje aqui sou grata ao pastor de Brehmtal, que sem hesitar com seu carimbo nos documentos salvou nossas vidas.

Era outono. E na manhãzinha de 30 de setembro de 1938 os caminhões de mudanças estavam diante da porta. Com um grande buquê de flores de outono do jardim nos braços de minha mãe, meus pais deixaram a segurança de uma vida. Vovó Lieschen havia vindo de Berlim. Como pôde aguentar tudo aquilo? O Dr. Fernkorn, junto comigo, Helga, seu grande amor, virou a chave da porta da casa pela última vez na fechadura. Deixamos a casa e descemos o caminho pelo bosque até Eppstein. Ali, onde uma curva no caminho estreito ia dar no bosque, ficaram parados uma última vez. Heiner, como chamávamos carinhosamente o Dr. Fernkorn, arrancou um galho de pinheiro e deu para mim com a promessa de sua eterna lealdade. As agulhas do pinheiro numa caixinha com um Ex Libris “Emita Luz, Helga Paderstein” entalhado por ele voltaram comigo para a Alemanha e mantêm desperta a lembrança.

Depois o trem nos levou até Frankfurt. De tarde, nunca esquecerei esse dia, Vovó Lieschen pegou o trem expresso de volta a Berlim. Estava na janela de seu compartimento. O trem partiu com atraso. Saberia ela que nunca mais veria sua filha e seus netos? Em 1943 ela se suicidou. O Brasil havia fechado as fronteiras. Getúlio Vargas, um ditador, era germanófilo e um fascista. Imigrantes judeus não conseguiam mais vistos. Na mesma noite um avião nos trouxe à segurança da Holanda. Não antes que, devido ao controle de transferência de divisas, nos tivessem depenado. Minha mãe chorava.

A emigração começou. Após alguns dias em Paris, onde moramos num pequeno hotel. Após nossa partida da Alemanha, quanto coisa aconteceu.

Num navio francês viajamos rumo à nossa nova terra natal. O Cruzeiro do Sul nos acompanhava no céu ao nos aproximarmos do Brasil. A foice da lua parecia diferente no céu. O calor, o sol, o mar azul fizeram com que logo esquecêssemos que éramos emigrantes.

 

O símbolo carioca, Cristo Redentor, braços abertos abençoando a cidade

E aí chegou o dia em que nos aproximamos do Brasil. A maravilhosa praia branca acompanhou-nos durante o dia todo. Malas foram feitas. A expectativa era grande. No final da tarde o navio chegou no Rio de Janeiro. O símbolo carioca, Cristo Redentor, braços abertos abençoando a cidade, erguia-se num pedestal de nuvens. Jamais esquecerei tal dia. O dia em que o Brasil se tornou nossa nova terra natal.

Tudo era estranho. A língua. Pessoas negras. Cabelos crespos. O calor do início do verão. A excitação. A Europa e todos os seus perigos ficavam definitivamente para trás. O Cristo Redentor continha-nos em seus braços protetores. Havíamos alcançado nosso destino.

No porto nos aguardava um senhor que não conhecíamos. Emigrantes não paravam de chegar, e era preciso ajudá-los. Tudo tão estranho. Num táxi lotado, já no escuro, percorremos a Avenida Rio Branco, a rua principal do Rio. Passava no meio da cidade. Admirados víamos as muitas luzes. Admirados víamos a praia branca. Admirados víamos a confusão de gente de todas as cores. E cansados chegamos em Copacabana em uma pensão barata.

Desfazer as malas. A primeira noite. O calor do verão brasileiro. O primeiro passeio na manhã seguinte ao longo da praia. Novos conhecidos. Gente, emigrantes como nós que chegaram antes de nós e já tinham alguma experiência da adaptação à nova vida.

Logo procuramos uma moradia. Mas não antes de um grande susto. O cônsul brasileiro em Frankfurt, nosso amigo, havia chegado no Cap Arcona, um navio alemão que ligava então Europa e Brasil. Queria falar conosco e nos encontrou num pequeno hotel. Nós não falávamos sua língua, o português. O visto católico era a razão de sua vinda. Ele ameaçou nos expulsar devido aos documentos falsos. O que podíamos fazer? Tivemos que pagar tudo que ele exigiu. E nosso já parco dinheiro minguou ainda mais.

Alugamos um apartamento mobiliado. Ficava pertinho da praia. De manhã cedo, devido ao calor insuportável, eu lavava nossas roupas, cozinhava e arrumava a casa. Depois íamos à praia. A areia branca bonita, o mar, os morros e a queimadura de sol!

Íamos à feira. Laranjas, bananas, abacaxis. Legumes de todas as cores e com nomes exóticos. Assávamos bolo de banana. Não havia maçãs nem peras. A tudo nos adaptávamos. Aos domingos íamos ao hipódromo. Com nossas apostas procurávamos ganhar algum dinheiro. Raramente nossos cavalos chegavam na frente.

 

Aos domingos íamos ao hipódromo

 

A gente se reunia em um bar alemão e bebia cerveja brasileira. E conversava sobre as últimas notícias da Europa, que chegavam escassamente. Uma carta levava então ao menos quatro semanas. Avião não existia ainda. A correspondência viajava de vapor para lá e para cá.

Enfim chegou nossa mudança após três meses no Brasil. Havíamos enquanto isso alugado um apartamento. Vazio, sobre uma padaria. De madrugada, às três horas, as máquinas começavam a misturar a massa de pão e não dava mais para dormir. O apartamento era pequeno. Os móveis, grandes demais. Uma grande parte tivemos de vender. Mas enfim tudo ficou no seu lugar. Um ambiente simpático e aconchegante. Cada um tinha seu quarto.

As preocupações eram grandes. A pergunta tão ameaçadora: como prosseguirão as coisas? De que vamos viver? Meu pai não havia aprendido uma profissão! Mas mesmo que tivesse, o que poderia fazer com ela? Começar tudo de novo? Uma vida nova?

Procurei um trabalho. Minha irmã foi mandada para o colégio e rápido aprendeu a língua portuguesa. Meu primeiro emprego foi como babá. As crianças berrando eram uma praga.

Aí meu pai recebeu uma oferta. Criar cavalos no interior do país. Entregamos o apartamento. De novo, tudo foi empacotado. E meus pais deixaram o Rio de Janeiro. Bem longe de toda civilização.

Com grande coragem enfrentaram a nova vida inusitada. Em geral tudo transcorreu bem. Até o Brasil ser pressionado, em 1943, a declarar guerra à Alemanha. Um navio com soldados brasileiros foi enviado à Itália. Um grande cemitério sobre uma colina conta a história. Falar alemão foi proibido. Papel preto era colado nas vidraças. Os alemães tornaram-se inimigos dos brasileiros. Meus pais naturalmente também. Às pressas deixaram a fazenda na calada da noite. Com um pequeno negócio filatélico que meu pai dirigia e minha mãe, que também começou a trabalhar, ganhavam sua vida modesta.

Em 1945 deixei o Rio de Janeiro para tentar a sorte em São Paulo. Em 1946 casei-me com Heinz Flatauer de Marienburg. Pelo resto de minha vida meu grande amor.

Minha irmã [Anita] casou-se em 1948 com Joaquim Korytowski

Em 1946 casei-me com Heinz Flatauer de Marienburg

 

Minha irmã casou-se em 1948 com Joaquim Korytowski, de Plauen. Tiveram três filhos. Mas após uns poucos anos incomumente felizes o destino inevitável nos alcançou. Após seu terceiro filho, Sylvio era seu nome, minha irmã contraiu câncer no seio. Tentou-se salvá-la com todos os meios disponíveis naquela época. Em vão. Aos 33 anos ela nos deixou, seus três filhinhos e seu marido, para sempre.

Meus pais mudaram-se para São Paulo a fim de viverem perto de nós. Suportaram sua dor com uma dignidade incrível. E a vida continuava.

Hof Häusel lhes foi devolvido e depois vendido. Com esse dinheiro a vida deles se tornou enfim mais fácil.

Meu pai faleceu em 2 de julho de 1977, aos 83 anos, após uma breve doença.

Minha mãe seguiu-o em 1990 aos 93 anos. Fiquei sozinha. Em 1987 meu marido havia me deixado para sempre.

 

Meus pais”: Margarida e Guilherme

 

Meus pensamentos voltam com frequência ao Brasil. Em pensamento visito os túmulos. Em pensamento converso com meus amigos. Aqueço-me ao sol brasileiro. Penso com carinho nas pessoas ali. Pessoas com um espírito aberto e amistoso.

Mas também aqui sou grata às pessoas pelo tanto de amor e amizade que me concedem. Pelo tanto de amizade com que me acolhem. Faço muitas palestras, que me enriquecem. Hof Häusel será para sempre parte de minha vida. E talvez, quando penso a respeito, também no Brasil senti falta do farfalhar dos bosques de pinheiros.

Em sonhos percorro os campos, meus pensamentos voltados ao passado.

Saúdo todos vocês e encerro meu relato. Gostaria de responder às perguntas de vocês. Uma espécie de debate.

 

Na torrente da vida vamos em frente:

O passado fica para trás, novas perspectivas se abrem.

Muita coisa boa passa por nós, alguns penhascos temos de contornar.

E disto consiste a nossa vida.

 

Muito obrigada,

Vockenhausen, 4 de abril de 2008.



[1] Após viver décadas no Brasil, Helga retornou, após a morte do marido e da mãe, à Alemanha, onde veio a falecer em 2011.

[2] Prato à base de chouriço, salsicha de fígado e barriga de porco cozidas.

[3] Dia de São Nicolau, em 6 de dezembro, e não no dia 9.

[4]  Canção de Natal alemã: Pinheirinho, pinheirinho, quão verdes são suas folhas.

[5] “Vergonha da raça”, ou seja, relações sexuais entre arianos e judeus.