Que este “diário de viagem” sirva de orientação & inspiração àqueles que planejam explorar essas encantadoras cidades históricas mineiras.
Vista de Ouro Preto, Armand Julien Pallière, óleo sobre tela, 1820, Museu da Inconfidência |
Repousemos
na pedra de Ouro Preto,
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros lassos.
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros lassos.
Murilo
Mendes, “Motivos de Ouro Preto”
(para baixar um pdf com seus poemas clique aqui)
Em Ouro Preto ninguém se defende contra a agressão da poesia.
(para baixar um pdf com seus poemas clique aqui)
Em Ouro Preto ninguém se defende contra a agressão da poesia.
Afonso
Arinos de Melo Franco, Roteiro lírico de Ouro Preto
ouro preto raiando de tarde e outono
vila rica ladeira cochilo e ressono
ouro preto a cidade e o lombo da mula
vila rica eriçada nas eras da bula
ouro preto cantiga de avante menino
vila rica amanhando em redobres de sino
Geraldo Reis, Pastoral de Minas, 21, prêmio de poesia do concurso Cidade de Belo Horizonte - 1981. A íntegra do poema pode ser lida aqui.
ouro preto raiando de tarde e outono
vila rica ladeira cochilo e ressono
ouro preto a cidade e o lombo da mula
vila rica eriçada nas eras da bula
ouro preto cantiga de avante menino
vila rica amanhando em redobres de sino
Geraldo Reis, Pastoral de Minas, 21, prêmio de poesia do concurso Cidade de Belo Horizonte - 1981. A íntegra do poema pode ser lida aqui.
1o DIA: CHEGADA
EM OURO PRETO
Fim de tarde. Mirante do Morro de
São Sebastião. As várias igrejas se sobressaem em meio às telhas do casario,
evocando um Rio Antigo que hoje só sobrevive em velhas litografias – assim como
certas ruas do centro portenho evocam uma Avenida Central que hoje só perdura
em velhas fotografias.
As igrejas históricas cariocas estão lá, firmes e fortes, protegidas pelo
tombamento, mas escondidas pelos arranha-céus. A preservação do centro
histórico de Ouro Preto constitui um milagre num país onde o patrimônio
histórico e cultural nem sempre recebe os devidos cuidados e sofre toda sorte
de rude golpe: incêndio, furto, deterioração, demolição, descaracterização,
desfiguração.
Mirante do Morro de São Sebastião. As várias igrejas se sobressaem em meio às telhas do casario. |
... evocando um Rio Antigo que hoje só sobrevive em velhas litografias. |
Por que algumas cidades, como
Ouro Preto, Olinda e Parati, congelam-se no tempo enquanto outras, como Rio de
Janeiro e Salvador, expandem-se indefinidamente, sufocando e destruindo seu
núcleo original – no Rio de Janeiro, esse núcleo, o Morro do Castelo, foi
literalmente arrasado? No caso de Ouro Preto, a topografia montanhosa fez com
que a capital fosse transferida, ao final do século XIX, para outro sítio mais
propício à expansão urbana, criando-se a cidade planejada de Belo Horizonte.
Manuel Bandeira assim explica a preservação da antiga Vila Rica em seu Guia
de Ouro Preto (publicado originalmente em 1938 e reeditado em 2015 pela
Global Editora):
Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. [...] Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração (que foi, de resto, um arraial de aventureiros, a sua idade mais bela como fenômeno de vida), e a salvo do progresso demudador, pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Preto conservou-se tal qual, em virtude mesma da sua pobreza, aquela pobreza que já por volta de 1809, segundo depoimento de Mawe, fazia trocarem-lhe por escárnio em Vila Pobre o nome de sua fundação em 1711, que era o de Vila Rica de Albuquerque. Na sua decadência econômica, que remonta à segunda metade do século XVIII, não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos, restaurar monumentos. Nas reparações dos prédios envelhecidos a economia levou sempre a alterar o menos possível. Em casas novas ninguém pensava. Elas são raríssimas na cidade, que enfeiam pelo contraste chocante com o resto da edificação.
Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. [...] Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração (que foi, de resto, um arraial de aventureiros, a sua idade mais bela como fenômeno de vida), e a salvo do progresso demudador, pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Preto conservou-se tal qual, em virtude mesma da sua pobreza, aquela pobreza que já por volta de 1809, segundo depoimento de Mawe, fazia trocarem-lhe por escárnio em Vila Pobre o nome de sua fundação em 1711, que era o de Vila Rica de Albuquerque. Na sua decadência econômica, que remonta à segunda metade do século XVIII, não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos, restaurar monumentos. Nas reparações dos prédios envelhecidos a economia levou sempre a alterar o menos possível. Em casas novas ninguém pensava. Elas são raríssimas na cidade, que enfeiam pelo contraste chocante com o resto da edificação.
... não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos |
Tendo partido da rodoviária do
Tietê às sete da noite do dia anterior, chegamos em Ouro Preto em torno das
oito da manhã. Doze horas de viagem pelo ônibus noturno e parador da linha São
Paulo-Mariana da Útil, adentrando cidade após cidade: Lavras, São João Del Rei,
Congonhas (e várias outras), na calada da noite, para deixar passageiros (já no
trajeto contrário, Mariana-São Paulo, pega-os de volta). Consegui dormir por
longos trechos, cheguei a ter um sonho de que viajava num ônibus maluco,
superlotado, onde a gente, de pé, tinha que ficar mudando de lugar, tamanho o
movimento de gente... Da Rodoviária de Ouro Preto (uma rodoviária convencional,
sem quaisquer méritos arquitetônicos numa cidade que é uma festa da
arquitetura) vencemos a pé, mochila às costas como velho mochileiro que sou, o
percurso de menos de um quilômetro – que eu estudara previamente pelo Street View
– até o três estrelas Hotel Colonial, excelente custo/benefício, no coração da
cidade.
Primeira foto, chegando em Ouro Preto, antes de rumarmos ao nosso hotel. Bom começo! |
Em sua “aventura brasileira”
junto com Pedro Nava, na Semana Santa de 1936, “em demanda de Ouro Preto”,
Afonso Arinos não partiu de uma rodoviária como fazemos hoje em dia, mas pegou
o trenzinho da bitola estreita “indeciso e laborioso” na estação de Belo
Horizonte, que tinha horário de partir mas sem hora certa de chegar, “uma
espécie de máquina de explorar o tempo”. Conta ele em seu Roteiro lírico de
Ouro Preto (reeditado em 1980 pela Editora Universidade de Brasília e
vendido na Estante Virtual): “Nunca nenhum de nós tinha ido a Ouro Preto,
mas desde os vinte anos (e já tínhamos dobrado os trinta), através de leituras
literárias, críticas, históricas, adquiríramos um conhecimento suficiente e um
amor mineiro por aquelas ladeiras, aquelas pontes, aqueles chafarizes, que só
nos faltava, agora, ver.”
Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia |
O mingau a gente come pelas bordas. Assim, em vez de atacar diretamente os cartões postais da cidade, Museu da Inconfidência, Casa dos Contos, fizemos um trajeto inicial começando pelas beiradas e penetrando no âmago de forma lenta e gradual. Assim sendo, do Hotel Colonial retornamos à praça da Rodoviária, voltando a contemplar a vista magnífica, nossa primeira visão de Ouro Preto que já nos extasiara na ida ao hotel, da amurada defronte à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia. Da Rodoviária, voltamos a adentrar esse baluarte do barroco pela Rua São Francisco de Paula, detendo-nos longamente no alto da velha escadaria defronte à Igreja de São Francisco de Paula, igreja tardia cujas obras se arrastaram pelo século XIX, que estava fechada.
De lá descemos até a Igreja de São José, que encontramos aberta.
Deslumbramo-nos com o altar-mor rococó projetado pelo Aleijadinho (embora não
executado pelo mestre). A Irmandade de São José dos Homens Pardos, congregando
trabalhadores livres, na maioria mestiços, em 1746 decidiu edificar, no local
da antiga capela de 1726, uma igreja nova cuja construção estendeu-se por uns
oitenta anos. (Salvo indicação contrária, informações sobre igrejas de Ouro
Preto e Mariana extraídas de Barroco e rococó nas igrejas de Ouro Preto e
Mariana, de Myriam A. Ribeiro de Oliveira e Adalgisa Arantes Campos,
coleção Roteiros do Patrimônio do IPHAN, cujo pdf pode ser obtido clicando aqui).
Deixei umas flores (que achei no chão do cemitério da igreja, talvez tombadas pelo vento)
no túmulo do escritor romântico ouro-pretano Bernardo Guimarães, autor célebre
de Escrava Isaura, cuja obra Histórias
e tradições da província de Minas Gerais vim lendo na viagem. O livro, na
primeira de três partes, conta uma versão para o mistério do sumiço da cabeça
de Tiradentes. Quando morreu, o inconfidente teve o corpo esquartejado e suas
partes expostas em locais ligados à sua atuação. A cabeça, fincada no alto de
um poste em praça pública na então Vila Rica, embora guardada por uma
sentinela, uma bela noite desapareceu, e o autor do furto nunca foi descoberto.
Esse mesmo tema é explorado por Alexei Bueno em seu drama O poste, que
um dia eu gostaria de ver encenado.
cemitério da igreja |
Da igreja descemos por uma ladeira tortuosa e erma (onde à noite talvez ainda vague o último dos fantasmas), até a movimentada Rua Getúlio Vargas, e pegamos a direita rumo à igreja curvilínea de Nossa Senhora do Rosário, que teríamos visitado se aberta estivesse. Dali nos enfiamos pela Rua Alvarenga, antigo caminho de entrada e saída de Vila Rica, então chamada Rua das Cabeças, nome sinistro cuja origem “vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos [...] para servir de exemplo e escarmento aos povos”, como conta Bernardo Guimarães na obra supracitada.
Cuidado ao
planejar seus roteiros em Ouro Preto pois, se os mapas são bidimensionais, com
caminhos que se afiguram planos, a realidade é acrescida de uma terceira dimensão:
na hora de pôr as pernas em movimento você descobre que o relevo da cidade é
ondulado, fortes aclives e declives. Nas subidas, haja fé e fôlego, mas em
compensação nas descidas todos os santos ajudam!
Nas subidas, haja fé e fôlego |
Avançamos, passando pela singela capelinha do Bom Jesus da Pedra Fria, velhos chafarizes coloniais, casas de antanho (como o conjunto de sete casas de paredes-meias do século XVIII construídas em adobe que serviam de pouso para os romeiros), Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, Colégio Arquidiocesano, até chegarmos à casa onde morou Bernardo Guimarães, hoje sede do FAOP, Fundação de Arte de Ouro Preto, que só vimos de fora, pois (com exceção de uma pequena biblioteca) não está aberta à visitação.
singela capelinha do Bom Jesus da Pedra Fria |
velhos chafarizes coloniais: Chafariz das Cabeças |
conjunto de sete casas de paredes-meias do século XVIII construídas em adobe que serviam de pouso para os romeiros |
casa onde morou Bernardo Guimarães |
Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, Colégio Arquidiocesano |
E após uma sesta no Hotel Colonial encaramos a íngreme subida ao Mirante do Morro de São Sebastião, com que abrimos este relato. Cães que ladram mas não mordem (como reza o ditado mas, observava meu sábio pai, “será que os cães sabem disto”?) deram um sustinho, e daqui do alto, o sol já tendo descambado atrás da linda serra, vemos as luzes se acendendo aos poucos por essa cidade que é uma joia do barroco brasileiro, e embora nas encostas dos morros construções não tão coloniais assim tenham se agregado ao conjunto urbano, daqui de cima tudo forma um todo harmônico. Ademais, todas as casas, por mais simples, ostentam portas e janelas de madeira, nada de esquadria de alumínio, deve ser postura municipal. O ar nesses altos mineiros tem um frescor de Alpes suíços. Lá de baixo sobem sons de sinos de igreja, cães ladrando, motos. Aqui em cima, ruído de um ou outro carro vencendo o aclive. Do mato, sons de insetos. Minas montanhosa, pedregosa, luminosa.
o sol já tendo descambado atrás da linda serra |
íngreme subida |
nas encostas dos morros construções não tão coloniais assim |
Terminamos nosso primeiro dia em Ouro Preto saboreando o pão com linguiça e a cerveja Ouropretana num simpático bar na esquina da Rua Cláudio Manoel com a Praça Tiradentes.
cerveja Ouropretana |
2o DIA:
MARIANA, PRIMEIRA CIDADE DE MINAS
Panorama de Mariana, Alberto Delpino, óleo sobre tela, 1931 |
“A última vez que estive em Mariana foi no ano da graça de 1968.” Estava sentado em um banco da Praça Gomes Freire quando escrevi esta frase no meu caderninho.
“A última vez que estive em Mariana foi no ano da graça de 1968”: slide que tirei lá naquela ocasião. |
Mariana, primeira vila, primeira cidade, primeiro bispado e arcebispado, primeira capital de Minas, segundo o prospecto que apanhei num centro de atenção ao turista. O nome, homenagem à rainha Maria Ana D’Áustria, esposa do rei de Portugal D. João V em 1745, quando a Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo foi elevada a cidade com o nome de Mariana. Ares de cidade do interior drummondiana. “Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar. / Devagar... as janelas olham. / Eta vida besta, meu Deus.”
as janelas olham |
No centro da praça, o coreto. Nos diversos bancos espalhados pela praça, grupo conversando animado, casal namorando, pessoas sós manuseando celulares. Michela e eu tínhamos sentado naquela praça para comer um açaí. O Leonardo, recepcionista noturno no nosso hotel que nos dias de folga trabalha como motorista de aplicativo (caso precise de seus serviços: 31 8671-9630), nos havia trazido ao centro histórico de Mariana e havíamos combinado que ligaríamos à tarde para nos pegar de volta.
A Casa da Câmara e Cadeia estava em restauração |
“O largo onde estão as igrejas do Carmo (direita) e S. Francisco (esquerda) é o mais puro, o mais comovente largo de igreja do Brasil” |
Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, de uma confraria de homens pardos, com frontispício chanfrado |
A Casa da Câmara e Cadeia estava em restauração, a Igreja de São Francisco de Assis, fechada, mas pudemos adentrar a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, com sua fachada singular que destoa do padrão, torres redondas, sobre a portada o emblema carmelita encimado por dois anjos, talha rococó. “O largo onde estão as igrejas do Carmo e S. Francisco é o mais puro, o mais comovente largo de igreja do Brasil”, escreve Afonso Arinos no livro já citado. De lá subimos pela Rua Dom Silvério, passando pela Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, de uma confraria de homens pardos, com frontispício chanfrado, até a Igreja de São Pedro dos Clérigos, a cavaleiro da cidade. Igreja com interessante planta em duas ovais entrelaçadas, desenho depois repetido na igreja de Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto. Sua construção foi uma verdadeira “obra de igreja”: começou em meados do século XVIII, sofreu várias paralisações, até que na década de 1920 foram finalmente concluídas as torres e frontão. Do mirante em frente à igreja pode-se “admirar convenientemente a cidade”, como fizera Afonso Arinos em 1936.
Do mirante em frente à igreja pode-se “admirar convenientemente a cidade” |
Igreja de São Pedro dos Clérigos, a cavaleiro da cidade |
Igreja de São Pedro dos Clérigos: nave elíptica, desprovida de ornamentação |
Descemos pela Rua Dom Viçoso, compramos um açaí, fazia calor, sentamo-nos na praça a fim de o saborearmos, gostamos tanto que Michela voltou para comprar mais um, e eu fiquei guardando o lugar sombreado. Peguei meu caderninho tencionando escrever umas mal traçadas linhas sobre essa aprazível cidadezinha pioneira na região aurífera mineira, cheguei a escrever uma frase que abre o relato deste segundo dia de viagem pelas Minas Gerais, Michela voltou mais rápido do que eu esperava, pus o caderninho de lado, devoramos nosso segundo açaí e prosseguimos o passeio.
Praça da Sé, tão diferente da praça homônima em São Paulo! |
Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção (Sé de Mariana) |
Casa setecentista |
A famosa Sé dedicada a Nossa Senhora
da Assunção estava fechada para trabalhos de restauro. Visitamos a casa de
estilo colonial, adquirida em 1975 pelo governo mineiro para transformar em
museu, onde viveu e faleceu Alphonsus de Guimarães, “um dos maiores poetas
brasileiros de qualquer época, com uma qualidade formal inalterável” (Alexei
Bueno), autor do mais pungente soneto da língua portuguesa na minha modesta
opinião (conforme exprimo no meu Manual do poeta), em memória de
Constança, prima com quem se casaria, mas que morreu precocemente aos dezessete
anos de idade, vítima
de tuberculose. Mais tarde, Alphonsus acabaria se casando com Zenaide, com quem
teria uma carreira de filhos.
HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS...Hão de chorar por ela os cinamomos,Murchando as flores ao tombar do dia.Dos laranjais hão de cair os pomos,Lembrando-se daquela que os colhia.As estrelas dirão – “Ai! nada somos,Pois ela se morreu silente e fria...”E pondo os olhos nela como pomos,Hão de chorar a irmã que lhes sorria.A lua, que lhe foi mãe carinhosa,Que a viu nascer e amar, há de envolvê-laEntre lírios e pétalas de rosa.Os meus sonhos de amor serão defuntos...E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?”
Terminada a visita à casa do poeta simbolista que, à semelhança do pintor Van Gogh, só veio a alcançar a merecida fama após a morte (“Sua vida foi modesta. [...] A semi-obscuridade, senão a obscuridade, foi-lhe o ambiente de cada dia”, escreveu Abgar Renault), voltamos à mesma praça Gomes Freire, onde já estivéramos, para chamar e aguardar nosso motorista. Abri a bolsa para pegar meu caderninho e prosseguir as anotações do dia. Tinha sumido. Revirei a bolsa de alto a baixo. Nada. Voltei à casa do poeta para ver se havia deixado lá. Neca. Voltei a Ouro Preto sem o caderninho. Sem as anotações do primeiro dia de viagem. Mas uma boa alma, daquelas que se existe o céu irão para lá, achou o caderno no banco da praça, viu que seu dono estava hospedado no Hotel Colonial de Ouro Preto e se deu ao trabalho de vir à cidade vizinha entregá-lo na recepção do hotel! Reza a lenda judaica que, enquanto existirem ao menos dez justos no mundo, Deus não o destruirá!
Conquanto próxima a Ouro Preto e com origens semelhantes no ciclo do ouro, Mariana é diferente. Mais pacata, ar de cidade de interior, enquanto em sua cidade-irmã pululam turistas e estudantes. Contrastando com o emaranhado ouro-pretano, o traçado das ruas marianenses é simétrico, planejado. E o relevo com ondulações mais suaves, aclives e declives menos acentuados.
À noite, como no primeiro dia,
tencionávamos jantar comida mineira, mas os restaurantes só a servem durante o
dia, de modo que repetimos o pão com linguiça da noite anterior (aquela
linguiça de fazenda de interior que não chega à cidade grande) e provamos os
pastéis de angu. Pensei que fossem pastéis convencionais com recheio de angu
(santa ignorância!), mas são pastéis de massa de fubá, com os recheios normais
a que estamos acostumados.
Não tivemos as antiguidades
greco-romanas. Nossa antiguidade foi a cultura indígena que, por falta de um
sistema de registro escrito, em grande parte se perdeu. No Renascimento
estávamos desbravando a terra recém-descoberta. Explodimos artística e
culturalmente no barroco e rococó. Os modernistas revelaram ao brasileiro o
esplender da arte brasileira do século XVIII. A transferência da capital mineira
para Belo Horizonte, no final do século XIX, salvou Ouro Preto do tipo de
destruição de que padeceu o Rio de Janeiro. Ouro Preto é o maior conjunto de
arquitetura colonial barroca do Brasil
(quiçá do mundo). As torres das igrejas se sobressaem, vistas dos mirantes, o
mar de telhados de telhas se espraiando entre elas, evocando o que já foi o
centro carioca, como mostram velhas gravuras. O sistema educacional brasileiro
deveria nos ensinar a nos orgulharmos (entre outras coisas) do nosso patrimônio
barroco.
Telhados e torres da Igreja de N.S. do Pilar |
Dito isto, vamos à programação do dia: esplendorosa Igreja de Nossa Senhora do Pilar (partindo da Praça Tiradentes e descendo por íngremes ladeiras, mas na volta subindo por um caminho alternativo mais suave); recém-inaugurado e magnífico Museu Boulieu de arte sacra barroca universal; almoço mineiro no mui recomendado Bené da Flauta; meio sem graça Mirante das Lajes.
MATRIZ DE NOSSA SENHORA DO PILAR (Praça Monsenhor Castilho Barbosa)
A Matriz de Nossa Senhora
do Pilar é a mais esplendorosa das igrejas ouro-pretanas, estando entre os
templos brasileiros com maior emprego de ouro na decoração. Sem adro,
comunica-se diretamente com a rua defronte, em relação à qual está ligeiramente
desalinhada. O magnífico traslado do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário
para a do Pilar em 24 de maio de 1733, designado de Triunfo Eucarístico, foi
reencenado em 2011, nas comemorações do tricentenário da fundação de Vila Rica,
com base na minuciosa descrição do português Simão Ferreira Machado em seu livro
sobre o evento (que você pode acessar aqui). Transposto o para-vento [clique nesta e em outras palavras em tom mais claro para acessar sua explicação ilustrada] inicial, o visitante surpreende-se com
a majestosa nave de forma elipsoidal, que a volumetria externa, retangular, não
deixava entrever. Entre pilastras laterais de dupla altura inserem-se seis
retábulos consagrados a Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Terço, Santo Antônio, São
Miguel e Almas, Santa Ana, Senhor dos Passos, encimados por tribunas. Sobre a
suntuosa cimalha que circunda toda a nave, painéis de formatos irregulares
contêm padrões decorativos e pinturas. “Todos os retábulos têm coroamento em dossel e são integralmente
dourados, como de praxe na primeira fase do joanino. Dois deles têm colunas torsas e não quartelões como elementos de
suporte, aspecto que indica serem mais antigos, possivelmente da igreja primitiva,
com os coroamentos refeitos para harmonização com o conjunto” (Myriam A. Ribeiro de
Oliveira e Adalgisa Arantes Campos, Barroco e Rococó nas Igrejas de Ouro
Preto e Mariana). No deslumbrante altar-mor uma profusão de elementos faz o deleite
do apreciador da arte e arquitetura sacra: o “retábulo tem o trono ladeado
por quartelões e
colunas salomônicas que dão apoio ao forte dossel, que, por sua vez, tem, ao alto, as figuras do Padre Eterno,
de Cristo e da pomba do Espírito Santo entre grupos de anjos. Nas laterais da
capela, duas grandes pinturas apresentam-se emolduradas por volutas e anjos.”
(Augusto da Silva Telles em Patrimônio Construído: As 110 mais belas
edificações do Brasil). A imagem de Nossa Senhora do Pilar é tardia, do século
XIX. A sacristia, acessada por corredores laterais à capela-mor, também abriga
alguns tesouros: quadros, pinturas de teto, arcaz de jacarandá, oratório,
tocheiro, pia batismal.
Sem adro, comunica-se diretamente com a rua defronte, em relação à qual está ligeiramente desalinhada |
o visitante surpreende-se com a majestosa nave de forma elipsoidal |
Todos os retábulos têm coroamento em dossel e são integralmente dourados |
Sacristia: pintura do teto |
MUSEU BOULIEU (Rua Padre Rolim, 412, no caminho do Centro para a Rodoviária)
Tivemos a sorte de chegar em Ouro
Preto poucos dias após a inauguração do Museu Boulieu, que abriga uma coleção
privada, doada à Arquidiocese de Mariana (com a condição de que o museu fosse instalado na vizinha Ouro Preto), de um casal, ele, Jacques, francês, ela, Maria Helena,
brasileira, que se conheceram graças ao amor que nutriam pela música e que, em
suas andanças pelo mundo, já que Jacques representava empresas de perfumes e
sedas (como contou um recepcionista na entrada do museu), dedicaram-se a
colecionar peças de arte sacra representativas da expansão do barroco pelo
mundo na esteira dos colonizadores (a diáspora do barroco). Um painel logo na
entrada da exposição conta a história da origem desse amor longevo de dimensões
cinematográficas:
Maria Helena de Toledo, nascido em Bebedouro, em São Paulo, formou-se em piano no Conservatório de Belo Horizonte. Os professores, considerando o seu talento, aconselharam-na a mudar-se para o Rio de Janeiro para continuar seus estudos.
Maria Helena aperfeiçoava os estudos de piano enquanto trabalhava na Presidência da República, no secretariado do presidente Getúlio Vargas e, em seguida, de seu sucessor eleito, Juscelino Kubitschek.
Jacques Boulieu, francês de Lyon, especialista em tecelagem e impressão de tecidos em seda, sempre gostou de música clássica. Trouxe mais de 20 quilos de discos quando, em 1951, se mudou para a Argentina e, em seguida, para o Brasil.
Após quatro anos em São Paulo, Jacques trabalhou no Rio, na Jean Manzon filmes, produtora de películas documentárias, onde fez amizade com Monique, preceptora das filhas Kubitschek.
Apaixonada por música, Monique tinha livre acesso ao camarote presidencial do Teatro Municipal. Jacques, muitas vezes, a acompanhava.
Certo dia de 1959, Monique avisou que uma amiga também estaria no camarote: “Mas você vai ver... Ela é muito simpática...”
Quando entraram no camarote, Maria Helena já estava lá. Virou-se, olhou Jacques com seus belos olhos azuis. O resultado foi fulgurante.
Um ano depois, Jacques e Maria Helena se casaram na Igreja da Glória. Juscelino foi padrinho da noiva. Já se passaram mais de 60 anos de felicidade...
O museu abriga o que talvez seja a maior coleção privada brasileira de arte sacra, com pinturas, esculturas, oratórios, do Altiplano andino, América Central, Bahia, Minas Gerais, nordeste brasileiro, Índia. Admirável que um único casal tenha conseguido juntar tamanha coleção e, não tendo filhos, resolvido compartilhá-la com o resto de nós!
BENÉ DA FLAUTA (Rua São Francisco de Assis, 32)
O casal Boulieu |
Maria Helena de Toledo, nascido em Bebedouro, em São Paulo, formou-se em piano no Conservatório de Belo Horizonte. Os professores, considerando o seu talento, aconselharam-na a mudar-se para o Rio de Janeiro para continuar seus estudos.
Maria Helena aperfeiçoava os estudos de piano enquanto trabalhava na Presidência da República, no secretariado do presidente Getúlio Vargas e, em seguida, de seu sucessor eleito, Juscelino Kubitschek.
Jacques Boulieu, francês de Lyon, especialista em tecelagem e impressão de tecidos em seda, sempre gostou de música clássica. Trouxe mais de 20 quilos de discos quando, em 1951, se mudou para a Argentina e, em seguida, para o Brasil.
Após quatro anos em São Paulo, Jacques trabalhou no Rio, na Jean Manzon filmes, produtora de películas documentárias, onde fez amizade com Monique, preceptora das filhas Kubitschek.
Apaixonada por música, Monique tinha livre acesso ao camarote presidencial do Teatro Municipal. Jacques, muitas vezes, a acompanhava.
Certo dia de 1959, Monique avisou que uma amiga também estaria no camarote: “Mas você vai ver... Ela é muito simpática...”
Quando entraram no camarote, Maria Helena já estava lá. Virou-se, olhou Jacques com seus belos olhos azuis. O resultado foi fulgurante.
Um ano depois, Jacques e Maria Helena se casaram na Igreja da Glória. Juscelino foi padrinho da noiva. Já se passaram mais de 60 anos de felicidade...
Nossa Senhora do Rosário, de la Montera, sécs. XVIII-XIX, Altiplano andino, óleo sobre tela |
Sant'Ana Mestra, séc. XVIII, Pernambuco, escultura em madeira policromada |
O museu abriga o que talvez seja a maior coleção privada brasileira de arte sacra, com pinturas, esculturas, oratórios, do Altiplano andino, América Central, Bahia, Minas Gerais, nordeste brasileiro, Índia. Admirável que um único casal tenha conseguido juntar tamanha coleção e, não tendo filhos, resolvido compartilhá-la com o resto de nós!
BENÉ DA FLAUTA (Rua São Francisco de Assis, 32)
Um dos restaurantes mais
recomendados de Ouro Preto, amplo casarão, espaçoso e arejado, ao lado da
Igreja de São Francisco de Assis, teto de madeira sem forro, paredes de pedra,
linda pintura de Ouro Preto de grande dimensão por Milton Passos na parede,
vista para a subida que vai dar na Igreja de Santa Efigênia (depois do almoço
você pode fazer a digestão subindo até lá), serve pratos fartos, para dois, por
menos de cem reais, da típica comida mineira, mas só até as cinco da tarde. De
noite, só pratos individuais de comida internacional.
MIRANTE DAS LAJES
Ao contrário do Mirante de São Sebastião, situado em subida íngreme e tranquila, de pouco trânsito (como descrevi no primeiro dia), o Mirante das Lajes situa-se em rua de trânsito pesado, desagradável de percorrer a pé. Enquanto do Mirante de São Sebastião você vê (além do centro) a parte oeste da cidade, aqui você vê (idem) o lado leste. Foi mais ou menos daqui que Pallière pintou sua famosa vista que abre esta postagem.
Feijão tropeiro: só até as 17 horas |
linda pintura de Ouro Preto de grande dimensão por Milton Passos na parede |
MIRANTE DAS LAJES
Ao contrário do Mirante de São Sebastião, situado em subida íngreme e tranquila, de pouco trânsito (como descrevi no primeiro dia), o Mirante das Lajes situa-se em rua de trânsito pesado, desagradável de percorrer a pé. Enquanto do Mirante de São Sebastião você vê (além do centro) a parte oeste da cidade, aqui você vê (idem) o lado leste. Foi mais ou menos daqui que Pallière pintou sua famosa vista que abre esta postagem.
Vista do Mirante das Lajes: Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, Museu da Inconfidência e Igreja de Nossa Senhora do Carmo |
Ao planejar a viagem, quando vi
que Congonhas distava apenas 55 quilômetros de Ouro Preto, imaginei que seria
possível ir de manhã tranquilamente de ônibus para lá e voltar à tarde. Mas não
é bem assim. Não existe uma estrada direta ligando as duas cidades. O percurso
é tortuoso. Você tem que combinar um preço com um motorista de aplicativo para
levá-lo até lá, aguardar duas horas até que você veja com calma o santuário, e
trazê-lo de volta. (Nosso motorista foi o André Luís, que recomendo: telefone
31 8837-4287) O carro percorre um trecho montanhoso das Geraes, mata abundante,
terra cor ocre, nascentes. Em alguns pontos, o motorista tibubeia, ou até erra
(por exemplo, entramos por engano no acesso coalhado de caminhões da
siderúrgica Gerdau), porque a sinalização não é cem por cento precisa ou
presente, mas sempre haverá alguém na beira da estrada para dar uma informação
com a maior boa vontade.
No percurso sinuoso de ida e volta em meio à serraria, o motorista contou (com aquela fala gostosa do mineiro, mas sem os proverbiais “trem” e “uai” e “sô”, que não ouvi em lugar algum – caíram em desuso?) causos de ricos topázios vermelhos encontrados em quintais de casas, uma moradia que desmoronou por ter sido erguida sobre uma antiga mina de ouro, prospecção clandestina de minerais, dado que a mineração é restringida devido aos danos causados ao meio ambiente – vimos no percurso uma encosta degradada pela exploração mineral.
No alto de um morro ergue-se o Santuário do Bom Jesus de Matosinho |
No alto de um morro (dentre os tantos morros que compõem o relevo ondulado dessa região brasileira tão rica em minérios) ergue-se o Santuário do Bom Jesus de Matosinho, patrimônio legado à humanidade (de fato, o santuário foi eleito patrimônio mundial pela UNESCO) pela resiliência de um artista que, à semelhança de Beethoven, enfrentou uma doença cruel que tentou tolhê-lo em sua capacidade criativa: Aleijadinho. Segundo Manuel Bandeira, “inegavelmente, o maior arquiteto e estatuário que já tivemos”, que, se houvesse vivido na Europa, “teria dado motivo a toda uma biblioteca”. Suas estátuas dos profetas, ao ar livre, na escadaria que dá acesso ao adro, sob as intempéries, bem como as esculturas em madeira que compõem os Passos da Paixão nas capelas ao longo do aclive defronte à igreja, são vitórias do espírito brasileiro e humano. Rivalizam com as esculturas de mestre Michelangelo – na Europa, onde rondam loucos e terroristas, os profetas estariam protegidos por vidro à prova de bala, caso do Moisés de Michelangelo em Florença, mas aí não exerceriam o mesmo impacto.
Augusto da Silva Telles assim descreve a fachada da igreja (clicando numa palavra em azul claro você acessa uma explicação ilustrada, uma oportunidade de ampliar sua cultura e vocabulário no campo da arquitetura sacra): “A igreja obedece ao plano setecentista de Minas Gerais, com nave única, torres sineiras salientes às ilhargas e capela-mor contornada por corredores que dão acesso à sacristia localizada nos fundos. A fachada é ladeada por dois pares de pilastras que se estendem até a cimalha e tem, ao centro, uma portada singela, formada por quartelões que suportam elementos de cimalha, acima da qual volutas envolvem uma cartela. Todo esse conjunto possui, aos lados, as janelas no nível do coro. Acima da cimalha da igreja, que percorre toda a frontaria, eleva-se um frontão barroco margeado por curvas e volutas. Lateralmente, assentam-se as sineiras esguias, encimadas por calotas com arestas salientes.” (em Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil, à venda na Amazon).
uma portada singela, formada por quartelões que suportam elementos de cimalha, acima da qual volutas envolvem uma cartela |
Na capela-mor, o retábulo é mais rígido |
Anjo tocheiro |
As paredes laterais e teto da nave são adornados com pinturas sacras de Nepomuceno Correia e Castro |
impressionantes ex-votos, alguns de mais de cem anos atrás |
Em Congonhas, uma senhorinha, Lucimar, convidou a Michela a entrar em sua própria casa para ver seus gatos – ela acolhe gatos abandonados – e a presenteou com um queijo minas artesanal – hospitalidade mineira. Na estrada, em duplicação, durante longa meia hora tivemos que aguardar a liberação do tráfego, e ninguém fica buzinando nem tenta furar fila – placidez mineira.
Telhados ouro-pretanos e torre da igreja de N.S. da Conceição |
Retornados a Ouro Preto, repetimos o feijão tropeiro no Bené da Flauta e, barrigas cheias, fizemos a digestão caminhando até a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fechada), passando pelo Chafariz de Marília no paredão do antigo solar onde residiu a musa do poeta inconfidente, daí subindo a ladeira rumo à Igreja de Santa Ifigênia (fechada), de lá descendo até a Capela de Padre Faria (fechada) ao anoitecer e, já noite caída, trilhamos o caminho de volta ao hotel, que andar é preciso, a certa altura surpreendidos pelo som de instrumentos musicais ensaiando.
Igreja de Santa Ifigênia |
Chafariz de Marília |
Ladeira acima |
Calçamento de pedras |
Capela de Padre Faria |
5o DIA: ÚLTIMO DIA EM OURO PRETO
O que é que Ouro Preto tem?[...]E ali na rua das Flores,na varandinha do bar,tem a figura risonhado grande pintor Guignardque Deus botou neste mundopara Ouro Preto pintar.Cecília Meireles no álbum de dedicatórias do pintor
MUSEU CASA GUIGNARD (Rua Conde de Bobadela, 110)
Último dia em Ouro Preto. Antes
de entregamos o quarto do hotel ao meio-dia e deixarmos a bagagem na recepção, já
que nosso ônibus de volta só partiria às sete e quinze da noite, visitamos o
museu dedicado ao pintor Guignard, o “anjo mutilado”, como o chamou o poeta
Manuel Bandeira devido ao lábio leporino acentuado. Em sua recente biografia Guignard: anjo mutilado, conta o autor Marcelo Bortoloti que “o
lábio leporino era apenas a parte aparente de uma anomalia maior. O pintor
nasceu com uma fenda no palato [...]”
O museu reúne um acervo pequeno,
já que a obra do artista está dispersa entre colecionadores privados, porém
precioso, evocando a vida e obra desse artista que morou dos onze aos 33 anos
na Europa, onde adquiriu uma sólida formação artística e casou-se com uma
estudante de música alemã, enlace que não durou sequer um ano, e quando sete
anos depois ela veio a falecer prematuramente de câncer, o artista decidiu que
viveria o resto da vida sozinho. Criador de paisagens imaginárias, pelas quais
se celebrizou, também foi exímio retratista e ilustrador de livros, entre eles
os de Lúcia Machado de Almeida dedicados às cidades históricas de Sabará,
Diamantina e Ouro Preto. Quando convidado pelo presidente Juscelino a pintar um
quadro da execução de Tiradentes, por amor a Ouro Preto situou-a nessa cidade,
e não no Rio onde de fato ocorreu.
Paisagem imaginária (detalhe) |
Apaixonado por Ouro Preto, lá passou os últimos meses da vida, depois que foi “despejado” do casarão do seu médico Santiago Americano Freire. Tendo acolhido seu paciente alcoólatra, solitário e incapaz de administrar seu talento, sofreu uma campanha da imprensa que o acusou (falsamente) de se apropriar da renda da venda dos quadros do artista, subitamente valorizados. Em Ouro Preto Guignard veio a falecer e foi enterrado. Uma curiosidade do museu são os 111 cartões que escreveu/desenhou na década de 1930 para Amalita Fontenelle, uma paixão platônica. Nunca chegou a enviá-los, e acabaram sendo adquiridos em 1987 pelo governo mineiro e incorporados ao acervo do museu.
Um dos cartões escritos para Amalita Fontenelle mas jamais enviados |
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO E MUSEU DO ORATÓRIO ANEXO
À semelhança do Museu Boulieu, o
Museu do Oratório, instalado na antiga Casa do Noviciado, anexa à Igreja de Nossa Senhora
do Carmo, resulta do que foi uma coleção particular, um acervo de oratórios e
imagens brasileiras dos séculos XVII ao XX, doados por Angela Gutierrez ao
IPHAN e gerido pelo Instituto Cultural Flávio Gutierrez. Preciosidades.
No passado, os oratórios faziam
parte da vida quotidiana das pessoas, como hoje, digamos, o celular. A fé
religiosa era mais forte do que na nossa época de descrença, e as pessoas
rezavam, faziam promessas, faziam pedidos para seus santos de devoção não só no
ambiente das igrejas, mas também em casa ou em viagem por meio dos seus
oratórios. Assim sendo, vemos no museu magníficos oratórios itinerantes ou de
algibeira, funcionando como amuletos; de convento, elaborados por freiras; de
quarto de donzela, depois levados para os lares de casadas; de esmoler, com um
recipiente para guardar as esmolas; de uso litúrgico, levados por membros da
igreja em viagens pastorais; domésticos; afro-brasileiros, confeccionados por
escravos; ermidas, pequenas capelas domésticas...
Oratório ermida, Nossa Senhora da Purificação, Minas Gerais, séc. XVIII/XIX |
Oratório de salão, Santo Antônio, Minas Gerais, século XVIII |
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, típica do rococó religioso mineiro, foi projetada por Manuel Francisco Lisboa, pai do Aleijadinho, risco depois revisado pelo filho, que também executou a portada da fachada e o lavabo da sacristia, em pedra-sabão. Única igreja de Ouro Preto com painéis de azulejos no altar-mor, importados de Lisboa.
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, típica do rococó religioso mineiro |
Painel de azulejos (detalhe) |
MUSEU DA INCONFIDÊNCIA
Depois ainda tivemos fôlego de
percorrer o Museu da Inconfidência. Afonso Arinos de Melo Franco, profundo
conhecedor de Roma, sobre a qual escreveu um livro, em seu Roteiro lírico de
Ouro Preto faz uma observação interessante: a antiga Casa da Câmara e
Cadeia, atual Museu da Inconfidência, teve como modelo um palácio (Palazzo
Sanatorio) da Praça do Capitólio (Piazza del Campidoglio) do Monte Capitolino
em Roma. Cansados, não pudemos desfrutar plenamente o museu que, no primeiro
piso, abriga uma exposição histórica, e no segundo, artística, tendo como
pontos altos a sala dedicada ao Aleijadinho e a Vista de Ouro Preto do francês
Armand Julien Pallière, que abre este diário de viagem.
Museu da Inconfidência na antiga Casa da Câmara e Cadeia |
Casa da Câmara e Cadeia em gravura de Augusto Riedel de 1868 |
Em torno das cinco e meia vimos, do adro da Igreja do Carmo, o sol se pondo atrás da serra. Pouco depois, apanhamos a mochila no hotel e rumamos a pé, já noite caída, à Rodoviária para voltarmos ao dia-a-dia paulistano. Mas as cidades históricas mineiras tocaram nossos corações e deram um combustível ao nosso por vezes esmaecido orgulho pela terra natal. “Criança! não verás nenhum país como este!”