“Eu não lhe dei, Adão, nem um lugar predeterminado, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa tomá-los e possuí-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha.” Assim Deus fala na Oração Sobre a Dignidade do Homem, do pensador italiano Pico della Mirandola (1463-1494). Naquelas palavras está apresentado um dos temas centrais do humanismo renascentista: a liberdade do homem, que o torna um ser capaz de criar seu próprio projeto de vida.
Movimento literário e filosófico
originado na Itália – na segunda metade do século XIV – e depois difundido em
outros países da Europa, o humanismo constituiu um dos fatores fundamentais do
surgimento da cultura moderna. Nascido nas cidades e comunas que, na época,
lutavam por sua autonomia, o humanismo repudiou a ordem e a hierarquia cósmicas
contidas na visão de mundo medieval e resguardadas pelo Império (o Sacro
Império Romano-Germânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Dentro dessa ordem
hierárquica o homem ocupava lugar insignificante e inalterável, imerso num
mundo que era visto como ocasião para tentações e pecado. Em contraposição à
mentalidade medieval, os humanistas exaltarão a dignidade do homem, proclamando
que sua liberdade pode e deve ser exercida tanto em relação à natureza quanto à
sociedade. Como aspecto do Renascimento, o humanismo reintegra o homem na
natureza e na história, reinterpretando-o em função dessas coordenadas.
O humanismo
O termo “humanismo” é derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, correspondendo ao sentido da palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas ao homem e que o distinguiam dos animais. A autonomia do ser humano é buscada pelos humanistas da Renascença por meio de uma volta à Antiguidade, a seus modelos e a suas diretrizes pedagógicas. As chamadas “humanidades” – poética, retórica, história, ética e política – passam desse modo a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício de sua liberdade. Liberdade e capacidade humana de atuar sobre o mundo são temas fundamentais dos humanistas, aparecendo não apenas em Pico della Mirandola, como também em Gianozzo Manetti (1396-1459), em Marsilio Ficino (1433-1499), e ressurgindo nos humanistas franceses posteriores, como Charles Bouillé (1475-c. 1553). Mais tarde é que as especulações marcadas pela exaltação da capacidade humana serão contrabalançadas pela nota de ceticismo que o humanismo assumiu no pensamento de Montaigne (1533-1592), de Pierre Charron (1541-1603) e de Francisco Sánchez (1552-1581).
Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmativa do valor espiritual do homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e de seus prazeres. Opondo-se ao ascetismo medieval, humanistas italianos, como Lorenzo Valla (1407-1457), retornam às teses do epicurismo antigo de que o bem é o prazer e de que a virtude consiste num cálculo de prazeres. Em nome do hedonismo, Valla inclusive recusa a superioridade religiosa da vida monástica: os verdadeiros seguidores de Cristo seriam os que dedicam suas atividades a Deus, pertençam ou não a ordens religiosas. O combate ao ascetismo e à vida monástica é empreendido também por Gianozzo Manetti, Coluccio Salutati (1331-1406) e Poggio Bracciolini (1380-1459). A afirmação da naturalidade do homem leva ainda os humanistas a proclamar a superioridade da vida ativa sobre a contemplativa, e da filosofia moral sobre a física e a metafísica. “A filosofia moral é, por assim dizer, o nosso território”, escreve Leonardo Bruni (c. 1370-1444). A mesma idéia é defendida por Matteo Palmier (1406-1475) e por Bartolomeo de Sacchi (1421-1481). Nesse sentido é que o humanismo abriu caminho para a obra de Maquiavel (1469-1536) – em muitos aspectos considerado humanista.
O retorno à Antiguidade, que inspira o humanismo renascentista, confere-lhe agudo senso de historicidade, de que carecia a cultura medieval, construída em função do ideal de intemporalidade. A defesa da eloquência dos antigos, por exemplo, resultou para os humanistas num esforço de recuperação de linguagem genuína da época clássica e num laborioso empenho para restaurá-la de sob as deformações sofridas no decorrer da Idade Média. Os humanistas redescobrem a perspectiva histórica, fazendo no plano da temporalidade uma mudança correspondente à descoberta, ao nível do espaço, da perspectiva óptica pela pintura renascentista.
A rejeição do ascetismo e das filigranas teológicas não significou a adoção, pelos humanistas, de uma posição necessariamente antirreligiosa ou anticristã. O que fazem é rediscutir temas religiosos, como a providência de Deus e a natureza e o destino da alma, com o objetivo de defender a liberdade humana e a capacidade do homem de agir sobre o mundo e modificá-lo de acordo com suas necessidades. Por outro lado, no exame de problemas religiosos, deram preferência a dois temas que pareciam, na época, os mais importantes: a função civil da religião e a tolerância religiosa. A primeira associava-se ao naturalismo: na obra Sobre a Dignidade e a Excelência do Homem, Gianozzo Manetti defende a tese de que a Bíblia não contém apenas uma proclamação da felicidade celeste, mas encerraria também uma mensagem e um programa relativos à felicidade terrena. Por isso mesmo é que para Manetti, como para Valla e outros, a função fundamental da religião seria relativa à vida civil e à atividade política.
A tolerância religiosa constitui outro traço típico do humanismo renascentista. Nos séculos posteriores – XVI e XVII – a tolerância resultará de guerras religiosas que acabarão por determinar a coexistência pacífica de vários credos, que todavia permanecem distanciados e irredutíveis. A tolerância preconizada pelos humanistas era de outro tipo, pois sustentada pela convicção de que haveria uma unidade fundamental subjacente às diversas religiões. Isso implicava ainda a intrínseca identidade entre filosofia e religião. Perguntava Leonardo Bruni: “São Paulo ensinou algo mais do que foi pensado por Platão?”. Seguindo a linhagem da Patrística – a doutrina dos primeiros padres da Igreja –, os humanistas consideravam que o cristianismo teria levado à sua plenitude a sabedoria expressa pelos filósofos antigos: a Razão (logos) grega seria uma antecipação do Verbo (Logos) que se encarna em Cristo. O retorno às origens significava, assim, para o humanismo da Renascença, a possibilidade de conciliar diferentes concepções filosóficas (como pretende Pico della Mirandola com o platonismo e o aristotelismo) e ainda harmonizá-las com a Cabala, a magia, a Patrística e a Escolástica. Com isso, poder-se-ia retornar às fontes de diversas correntes filosóficas e recuperar a paz religiosa que fora destroçada pelas disputas teológicas. A tolerância religiosa, sustentada por argumentos que já então exprimem o despontar da mentalidade moderna, ressurge como um dos ideais do humanismo de Erasmo de Rotterdam e de Thomas More.
Numa prisão espiritual
Em agosto de 1495, um frade agostiniano, vindo de Cambrai, chegou a Paris com o objetivo de obter o título de doutor em teologia. Tinha sido contemplado com uma bolsa de estudos, mas os estipêndios, embora recebidos com regularidade, eram tão parcos que foi obrigado a alojar-se na domus pauperum do colégio Montaigu. Situado no Quartier Latin, sobre a colina de Sainte Geneviève [Santa Genoveva], o edifício era triste e sombrio, os dormitórios sujos, as paredes nuas e geladas. As refeições eram péssimas: frequentemente os ovos e a carne eram servidos quase estragados e o vinho mais parecia vinagre.
Tudo isso poderia ser visto com certa naturalidade por quem ainda tivesse uma visão medieval do mundo, centralizasse a vida em torno do espiritual e negasse o valor das coisas sensíveis. Mas o frade recém-chegado não pensava e nem sentia desse modo. Para ele o mundo material não era necessariamente residência do pecado e reino da contaminação, e cuidar do bem-estar físico não significava afastamento da bem-aventurança eterna.
Pior que o desconforto ou os jejuns, eram os sofrimentos pelos quais tinha que passar a inteligência diante do ensino escolástico, impregnado de sutilezas insípidas, de exagerado formalismo e limitado a discutir temas irrelevantes.
O colégio Montaigu era, na verdade, uma verdadeira prisão espiritual, que poderia ter sido útil para Inácio de Loyola (1491-1556), que ali suportou, durante vinte anos, uma disciplina de castigos corporais para educar a vontade. Mas era absolutamente repugnante para a natureza nervosa, independente e moderna do jovem frade Erasmo. Ele era exemplo vivo de uma nova ordem de coisas: da mentalidade renascentista, da qual veio a se tornar um dos maiores representantes.
Sua mãe chamava-se Margaretha e era filha de um médico de Zevenbergen. Seu pai, Gerardus, homem culto e relacionado com representantes do humanismo nos Países Baixos, era um padre com funções itinerantes em diversas paróquias da cidade de Gouda, próxima a Rotterdam. A ligação amorosa com Margaretha não era lícita, mas as regras da vida cristã estavam enfraquecidas, naqueles tempos, e os rigores da moral agostiniana não eram mais obedecidos com tanta severidade. Dessa ligação resultou um primeiro filho, chamado Pieter. Poucos anos depois viria à luz Erasmo, num dia e mês conhecidos com certeza (passagem de 27 para 28 de outubro), mas num ano que não se sabe ao certo qual tenha sido: os biógrafos oscilam entre 1465 e 1469. É certo, entretanto, ter o fato ocorrido em Rotterdam, para onde Margaretha fora enviada a fim de guardar a discrição necessária em tais ocasiões. Inicialmente a educação de Erasmo foi confiada a um preceptor, com o qual aprendeu as primeiras letras. Mais tarde, em 1475, o pai providenciou seu ingresso na escola dos Irmãos da Vida em Comum, em Deventer. Era um estabelecimento famoso do norte do continente, no qual se respirava a atmosfera humanística que imperava na Renascença.
Em Deventer Erasmo encontrou um dos melhores ambientes intelectuais da época, recebendo influência de humanistas como Johannes Sintheim e Alexander Hegius (1433-1498), e viveu feliz com a mãe e o irmão. Contudo, esses anos de bem-estar estavam fadados a terminar relativamente cedo: Margaretha faleceu e ele foi obrigado a voltar para Gouda. Logo depois, o pai também morreu, vitimado por uma das pestes que, naquele tempo, assolavam a Europa periodicamente. Pieter e Erasmo foram então enviados pelos tutores a Hertogenbosch, onde encontraram uma disciplina de claustro extremamente desagradável. Não podiam, no entanto, desobedecer aos tutores e concluíram os estudos, esperando ansiosamente o momento de se tornarem livres. A solução era entrar para alguma ordem religiosa. E, de fato, Pieter ingressou no mosteiro de Sion, perto de Delft, enquanto Erasmo tornava-se noviço agostiniano em Steyn [ou Stein]. Cinco anos depois (1492) era ordenado sacerdote e concluía um longo período dedicado ao estudo dos autores clássicos, gregos e latinos, solidificando sua formação humanística. Por outro lado, os rigores da vida monástica acenderam em Erasmo a paixão pela liberdade pessoal e a irritação com tudo aquilo que pudesse restringi-la Formaram-se assim os traços essenciais de um complexo caráter integralmente moderno, que colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do humano em todas as suas formas.
Ordenado padre pelo bispo de Utrecht, Erasmo de Rotterdam pôs toda a inteligência a serviço de seus ideais e providenciou, através de negociações secretas muito hábeis – não querendo opor-se abertamente aos superiores – sua nomeação como secretário do bispo de Cambrai. Assim poderia libertar-se dos horizontes limitados do mosteiro de Steyn e tomar contato com o mundo, pois o bispo precisava dele para acompanhá-lo até Roma. A viagem, no entanto, não chegou a ocorrer, tendo sido adiada várias vezes, o que permitiu ao moço, ansioso por liberdade, gozar uns tempos de vida sem problemas. Não era obrigado a dizer missa, podia divertir-se à vontade, conhecer pessoas inteligentes, aprofundar-se nos autores clássicos e, principalmente, dedicar-se à redação do diálogo Antibárbaros.
A boa vida, contudo, deveria acabar. Afinal o bispo não precisava mais de secretário e o alegre frade deveria voltar para o convento e dedicar-se aos mesmos afazeres dos colegas de batina. Mas Erasmo tinha tomado gosto pela liberdade e outra vez teve que usar de habilidade para mudar a ordem normal das coisas. E o fez tão bem que convenceu o bispo a envia-lo à capital francesa para obter o título de doutor em teologia. A vida em Paris tinha enormes vantagens, pois a universidade era um verdadeiro centro internacional de cultura e Erasmo poderia desfazer-se do provincianismo do país de nascença.
E realmente isso aconteceu, apesar de confinado a maior parte do tempo naquela prisão do corpo e da alma que era o colégio Montaigu. Nos momentos em que podia ver-se livre, procurava o contato com outras instituições e outras pessoas. Foi assim que conheceu Robert Gaguin (1425-1502) e Faustus Andrelinus (1462-1518), mestres incontestáveis do humanismo na França. No próprio colégio podia aprofundar o conhecimento dos primeiros padres da igreja e aperfeiçoar o latim a ponto de passar a rivalizar com os maiores epistológrafos antigos e modernos.
No entanto, isso tudo não o isentava dos aspectos negativos da vida em Montaigu, e as torturas físicas acabaram por deixá-lo enfermo. Tal fato permitiu-lhe, mais uma vez, pôr a sagacidade prática em funcionamento e safar-se para a terra natal, sob pretexto de necessitar de cuidados médicos especiais.
Humor e Teologia
Como era de se esperar, a cura foi muito rápida e logo depois Erasmo aproveitou para libertar-se definitivamente do colégio “vinagre”, como ele mesmo o chamou. Entretanto, ao voltar a Paris, no outono de 1496, tinha que providenciar a subsistência. A solução era dar aulas particulares para não recorrer à Ordem e assim manter sua independência. Antes já tinha tratado de criar clientela e agora tinha alunos muito ricos, especialmente entre a aristocracia inglesa. Não só pagavam muito bem, como possibilitavam-lhe outros privilégios, essenciais para quem queria manter-se livre e dedicar-se à criação de obras de pensamento e arte. Dessa época datam os primeiros esboços dos Colóquios e De como Escrever Cartas, além de pequeno volume de poemas.
Os Colóquios (modificados em várias edições até a definitiva, em 1533) foram concebidos para funcionar junto aos alunos como manual de conversação. Em forma de diálogo extremamente vivo, Erasmo ridiculariza costumes sociais e da Igreja, além de personalidades da época escondidas sob pseudônimos, mas facilmente identificáveis pelo público mais ilustrado da época. Em O Casamento e A Jovem Arrependida satiriza os defensores da vida conventual como ideal de espiritualidade; na Confissão do Soldado e O Soldado e os Cartuxos qualifica sarcasticamente como loucos os jovens atraídos pela carreira das armas.
Ele mesmo, no entanto, nada tinha de louco e sabia muito bem como fazer para dar solução aos problemas de sobrevivência e resguardar sua independência pessoal. Em 1499, acompanhado de lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, chega à Inglaterra, consegue hospedagem no Saint Mary’s College de Oxford e toma contato com uma universidade muito mais aberta a novas ideias do que a de Paris. Em Oxford, estudantes e professores faziam juntos as refeições, em meio a animados debates; eram banquetes com companhia culta, boa comida, não muito vinho e nobre palestra. Erasmo sentiu-se em seu elemento, não só por causa desses costumes cotidianos, mas porque encontrou pessoas que partilhavam de seus interesses intelectuais. Eram muitos os que, em Oxford, pensavam como ele: o arcebispo William Warham (1450-1532), John Fisher (1469-1535), os mestres universitários William Grocyn (1446-1519), Thomas Linacre (1460-1524), e Hugh Latimer (1485(?)-1555), e sobretudo John Colet (1467-1519) e o futuro chanceler de Henrique VIII, Thomas More. Juntos, conceberam o projeto de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos e propunham-se a iniciar, assim, uma revolução na hermenêutica e exegese dos livros sagrados. As consequências foram as mais profundas e as novas traduções a partir dos textos originais revelaram um cristianismo muito diverso daquele que perdurara durante os séculos da Idade Média.
Logo ao chegar à Inglaterra, em 1499, Erasmo não estava ainda dotado de todos os instrumentos necessários para esse trabalho, pois faltava-lhe o domínio do grego. Mas dedicou-se a aprendê-lo com os colegas ingleses e continuou os estudos durante alguns anos, até tornar-se apto a fazer a tradução, com comentários críticos, do Novo Testamento, publicado em 1516, e que veio a constituir um marco dentro da história da hermenêutica bíblica.
Antes, em 1500, Erasmo tentara deixar a Inglaterra, mas um incidente na hora da partida obrigou-o a redigir e publicar outra obra que marcaria época: as autoridades portuárias inglesas não lhe permitiram carregar as economias em ouro e prata, acumuladas custosamente. Mais uma vez viu-se forçado a recomeçar do zero a luta pelo pão de cada dia. Não teve dúvidas sobre como fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma antologia de citações latinas e provérbios, colocando nas mãos do grande público um imenso acervo de cultura, até então privilégio de poucos. O livrinho teve sucesso imediato e foi o primeiro exemplar de literatura de divulgação. Chamava-se Adágios e trouxe celebridade para o autor. À cata de patrocínio e ao mesmo tempo cioso de sua independência pessoal, viaja pelos Países Baixos e pela França, sem fixar-se em lugar algum. Acima de tudo procura não se comprometer com nenhuma instituição ou pessoa. Almeja apenas ao pouco que lhe permitia satisfazer as necessidades básicas, permanecendo livre para o trabalho intelectual.
O Elogio da Loucura
Continuando suas viagens, concretiza o velho sonho de estagiar na Itália, centro do humanismo e de toda a renovação intelectual renascentista que se estende pela Europa. Não só as bibliotecas italianas, onde poderia encontrar preciosos manuscritos, mas a tipografia de Aldo Manunzio (1450-1515) excitam-no enormemente, e passa horas e horas a trabalhar com belíssimos caracteres tipográficos, sobretudo os mais miúdos. A imprensa é para ele mais do que uma simples técnica: é o instrumento maravilhoso que abrirá todas as portas da cultura, inaugurando uma nova era.
Em 1509 a Coroa Inglesa passa à cabeça de Henrique VIII (1491-1547), que Erasmo conhecera desde menino e com o qual chegara a corresponder-se em latim. O monarca estava sempre imerso na leitura dos Adágios, segundo informação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os amigos insistem para que Erasmo volte à Inglaterra, pois poderia conseguir do novo soberano uma pensão permanente. Em 1509 deixa definitivamente a Itália e hospeda-se em Londres, na casa de Thomas More, onde encontra o ambiente ideal para o estudo e as longas conversas eruditas. A saúde frágil, porém, perturba-lhe a tranquilidade, e crises de cálculo renal obrigam-no a longas horas de repouso. Erasmo reage ao mal por meio do recurso que lhe servia até como remédio: escrever. Nasce assim uma obra-prima da literatura de todos os tempos e de todas as línguas: O Elogio da Loucura.
Apenas sete dias bastaram para escrever a obra, graças à absoluta liberdade de concepção e total ausência de compromissos. Não se tratava de trabalho feito sob encomenda ou programado para obtenção urgente de dinheiro para subsistência. Era uma brincadeira para passar o tempo, mas quem assim brincava tinha atrás de si toda uma vida dedicada à melhor literatura clássica e mais as experiências de um homem voltado inteiramente para as coisas do espírito.
Erasmo tinha sofrido todas as agruras da pobreza e da bastardia e tinha convivido com príncipes e poderosos. Tinha passado pelos rigores da vida monacal e vira bispos comprazerem-se no luxo e na libertinagem. Fora testemunha do furor criminoso dos príncipes da Itália em guerra e vira a miséria aflitiva do povo. Tudo isso soava-lhe profundamente estúpido e ao mesmo tempo a própria estultícia parecia ser o motor dessas ações absurdas. Passou-lhe então pela cabeça, pouco antes de chegar à Inglaterra, atravessando os Alpes, a ideia de colocar isso tudo no papel. As crises de cálculo renal, na casa do amigo More, forneceram-lhe as circunstâncias propícias para fazer a Loucura subir ao púlpito, sempre acompanhada pela Lisonja e pelo Amor-Próprio, e elogiar a si mesma.
O resultado foi a crítica impiedosa dos juristas minuciosos, dos filósofos escolásticos, dos nobres arrogantes, dos bispos luxuriosos, dos negociantes sórdidos e estúpidos, dos militares que julgavam ser suficiente atirar uma moeda numa bandeja para adquirir a indulgência que os deixaria puros e limpos como quando nasceram.
Todo o Elogio da Loucura é uma mascarada, mantida viva pela ambiguidade estrutural que anima a crítica aos costumes e aos poderosos, e pela inspiração vibrante vestida de admirável roupagem estilística. A opinião pessoal do autor permanece inacessível e, se alguém se atrevesse a discutir com ele por causa do sarcasmo e das críticas que distribui generosamente, poderia responder, tranquilo, que não foi ele quem disse isso, mas Dona Estultícia. E quem deve tomar a sério a loucura?
O próprio livro nada tinha de louco e, muito embora tudo parecesse brincadeira para homenagear o anfitrião Thomas More (em grego, loucura é moria), a pequena sátira obteve imediatamente enorme sucesso e desempenhou papel fundamental na eclosão da Reforma protestante. A maior parte daquilo que os reformadores objetavam à Igreja encontrava-se criticado por Erasmo. O Elogio da Loucura, sob a aparência de festivo fogo de artifício, foi uma das obras que mais abalaram seu tempo, funcionando como verdadeiro panfleto revolucionário. Constituindo a mais ousada e a mais artística obra de sua época, era consumida amplamente por aqueles que voltavam de Roma irritados com os desregramentos de papas e cardeais, a viver a vida suntuosa de príncipes, em contradição com os preceitos do cristianismo original. Os revoltados reclamavam uma reforma geral da Igreja e alimentavam-se ideologicamente das críticas do brilhante humanista Erasmo de Rotterdam.
Liberdade ou servidão?
As críticas aos costumes e às instituições, escritas em 1509, vinham-se juntar a uma nova concepção da vida cristã, tal como Erasmo tinha exposto no Manual do Cristão Militante (1501). Nessa obra sonhava com um ideal religioso ao alcance de todos, uma religião interiorizada e humanizada, sem os excessos místicos de boa parte da Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico. Aliam-se também a seu trabalho como filólogo, preocupado com revisar os erros da vulgata e dedicado a uma nova tradução, para o latim, de todo o Novo Testamento. Isso sem contar as inúmeras edições críticas, que preparou, das obras dos primeiros padres da Igreja, especialmente as de São Jerônimo.
Há muito, portanto, Erasmo estava procedendo a uma eficaz reforma da doutrina cristã, ao atacar o pensamento medieval em suas bases. Não possuía, contudo, aquele grão de loucura que ele mesmo achava necessário para fazer o mundo caminhar mais depressa. Não era um revolucionário que pegasse em armas para atacar violentamente o adversário e tentar derrotá-lo em pouco tempo. Não era um condutor de massas, muito embora sua pena tivesse a força de muitos exércitos. Preferia atacar o mal de maneira sutil, pela ironia e pela vivacidade de espírito, dirigidas aos mais inteligentes. Solapava as bases do pensamento da época sem fazer nenhum estardalhaço. Era muito diferente daquele outro frade agostiniano, Martinho Lutero (1483-1546), que estava prestes a irromper como um furacão para mudar toda a ordem econômica, política e religiosa da Europa.
Em abril de 1511, Erasmo deixou a casa de Thomas More, sem ter conseguido obter a esperada pensão de Henrique VIII, cujo amor ao humanismo já tinha sido substituído pelo amor às intrigas da corte e à glória nos campos da batalha. Viaja então até Paris, a fim de publicar Elogio, e retorna à Inglaterra, onde passa a ensinar grego e teologia na universidade de Cambridge. Em 1512 o arcebispo de Canterbury consegue-lhe um reitorado em Kent, com pensão anual de 20 libras, pagáveis inclusive no exterior, mesmo que deixasse de exercer as funções. Dois anos depois Erasmo transfere-se para Basileia, na Suíça, tendo, pouco antes, redigido uma sátira contra o papa Júlio II (1443-1513).
Em Basileia liga-se ao editor Frobenius (1460-1517) e trabalha junto com os operários da tipografia, cuidando do texto grego e latino, além de apreciações críticas, do Novo Testamento e das Cartas de São Jerônimo. Liga-se também ao pintor Holbein (1497-1543) que o retrata várias vezes, e desenha ilustrações para o Elogio da Loucura.
Em meio aos trabalhos eruditos, Erasmo entra em contato, pela primeira vez, com Lutero, através de uma carta de Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. O diplomata, entre outros assuntos, fala-lhe do jovem frade, que sente por ele a mais alta estima, mas não concorda com sua concepção sobre o pecado original. Não adota a opinião de Aristóteles, segundo o qual é justo aquele que procede com justiça. Para Lutero, só se é justo quando se está em estado de justiça. Em outros termos, Lutero acha que primeiro é preciso que o indivíduo seja transformado interiormente; justificado por Deus (Se apropriando, assim, da justiça divina por imputação); as obras viriam depois.
Nessa pequena discordância filosófica estavam contidas todas as diferenças entre os dois reformadores. Erasmo era um humanista no mais completo sentido, que acreditava integralmente nas possibilidades de a razão humana distinguir claramente entre o bem e o mal, e colocava no livre-arbítrio de cada um a fonte de todo autêntico pensamento religioso e da opção moral. Lutero esposava o agostinismo mais extremado, segundo o qual o homem é um miserável ser, condenado ao pecado e à degradação, da qual só pode ser salvo pela graça divina; o homem não pode por si só atingir a beatitude eterna mediante aquilo que faça; é preciso antes entregar-se a Deus pela fé e esperar pacientemente pela misericórdia divina. Erasmo procura a reforma pelo esclarecimento racional, Lutero afirma, antes de tudo, o poder da fé.
A fé remove montanhas, a razão não; pelo menos é no que acreditavam as massas camponesas da época, crença que interessava aos príncipes alemães, preocupados em libertar-se do jugo econômico do Vaticano. Assim, a Reforma seguiu o caminho de Lutero e incendiou o continente, a partir das famosas 95 teses redigidas e afixadas na porta da igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.
Entre dois fogos
A história posterior a essa data é marcada pelos insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores, no sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas, pois afinal todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre humanista seria uma arma decisiva na luta, com toda sua cultura e erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro lado ocorre o mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as teses de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de cardeal. Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com nenhum dos lados. A Igreja lhe parece podre e a exigir profundas modificações, mas os reformadores eram, a seu ver, bárbaros e fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar absoluta independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que poderia parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada convicção de que os dois lados estavam errados e o verdadeiro caminho deveria ser criado pelo homem enquanto ser inteligente e livre.
As paixões a seu redor o aborreciam, mas apesar disso continuava a executar seu trabalho intelectual. Em 1517 vem à luz a Questão da Paz, onde advoga o ideal de uma Europa unida e sem fronteiras nacionais. O próprio Erasmo não queria ser holandês, francês, inglês, italiano ou suíço, como realmente não foi, mas tão-somente um cidadão do mundo, e isso ele o foi com coerência e lucidez. Em 1522 publica uma nova edição ampliada dos Colóquios, na qual apresenta uma sociedade justa e racional, verdadeiramente cristã e amiga da paz, que julga possível existir no futuro. Em 1524 é a vez do pequeno tratado Sobre o Livre Arbítrio, contestado dois anos depois pelo Servo Arbítrio, de Lutero. Como se tudo isso não bastasse, continua a trabalhar nas edições críticas dos textos originais dos primeiros padres da Igreja.
Em 1529 Basileia deixa de ser um refúgio tranquilo, e os conflitos religiosos eclodem. Em fevereiro o culto católico é oficialmente abolido, os mosteiros são expropriados, cerram-se as portas da universidade. Erasmo é obrigado a partir. Refugia-se na cidade de Friburgo e continua a escrever: A Amável Concórdia da Igreja, uma nova tradução do Ecclesiastes e quatro volumes sobre a arte da pregação, dedicados ao bispo Fisher, que logo depois seria condenado à morte por não aceitar a autoridade de Henrique VIII em matéria religiosa.
A saúde, entretanto, está abalada. O reumatismo e as dores de estômago são insuportáveis. Mas o remédio contra os males do corpo e do espírito continua à mão: escrever. E viajar também. Projeta voltar à terra natal, para onde é chamado insistentemente pelo bispo de Brabante. Vai antes, contudo, para Basileia, onde deveria esperar o degelo da primavera. Alguns fiéis o retêm por mais algum tempo e cuidam dele carinhosamente. Visita a tipografia de Frobenius para supervisionar a edição do Ecclesiastes e escreve ainda um Comentário ao Salmo XIV, que há muito prometera a um amigo humilde chamado Eschenfelder. Foi o último trabalho.
Em junho de 1536 Erasmo está tão fraco que já não consegue ler, e um mês depois, exatamente no dia 12 de julho, pronuncia as últimas palavras de sua vida, Lieve God (em holandês: Bom Deus) e exala o último suspiro. Deixava como herança a ideia de que a razão deve combater todos os fanatismos e que acima de todos os valores deve estar o homem, sobretudo enquanto ser de inteligência livre.