Quando
tinha 74 anos de idade, a escritora baiana (de Itabuna) Sonia
Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu apartamento, no Rio
de Janeiro. No velório comentou-se que a escritora havia
comunicado à filha pouco antes um mal-estar.
Nunca nos acostumamos com o quadro inexorável da morte. É sempre
dolorido. Em alguns casos, quando se vive muito, preenche-se a vida
com ganhos, formando-se em torno disso uma biografia bem-sucedida no
plano familiar, econômico e profissional. Ocorre na ausência
irreversível do ente querido o consolo entre os parentes, amigos e
conhecidos. O trauma é atenuado com o fato de que não se podia
querer mais do morto. As dificuldades da vida foram para ele s de
triunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e
lembranças.
Com Sonia Coutinho, a
traiçoeira invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que
os fatos acontecessem no lado azul da canção. Mas não é o momento
agora para se falar das amarguras que perseguiram essa consagrada
escritora baiana. Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso,
isso alcança todos nós, em nossa condição de solitários no
mundo, com Sonia Coutinho, autora de uma obra consistente na moderna
literatura brasileira, ausente dos elementos românticos retirados da
vida ou projetados pelo imaginário, foi para lá de lastimável.
Ela nasceu em Itabuna, em
1939, filha do promotor Natan Coutinho, homem culto, poeta
parnasiano, inteligência brilhante, que também foi deputado
estadual na Bahia. Com a família, ainda menina, mudou-se para
Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela Universidade
Federal da Bahia. Ao fazer sua estreia com os contos do pequeno
livro Do
Herói Inútil,
em 1966, pelas Edições Macunaíma, Salvador, já prenunciava uma
ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição
contraditória da alma humana. Nos anos 60 foi morar no Rio de
Janeiro, onde atuou na imprensa e teve coluna de livros no “Domingo
Ilustrado” e editou por uma temporada a página de livros do jornal
“O Globo”. Já no Rio, em 1971, publicou Nascimento
de uma mulher,
de contos, Editora da Civilização Brasileira. Seguiram-se Uma
certa felicidade, Ed.
Francisco Alves, 1976, contos; O
jogo de Ifá,
contos, Ed. Ática, São Paulo, 1980, romance; O
último verão de Copacabana,
José Olympio Editora, Rio, contos, 1985; Atire
em Sofia,
romance, Ed. Rocco, Rio, 1989; O
caso Alice,
Ed. Rocco, Rio, romance, 1991; Os
seios de Pandora,
romance, Ed. Rocco, Rio, 1998, Prêmio Jabuti 1999; em 1994, lançou
pela Ed. Sete Letras, Rio, o volume de ensaios: Rainhas
do crime: ótica feminina no romance policial;
mil olhos de
uma rosa,
contos, Ed. Sete Letras, Rio, 2001, e Ovelha
negra e amiga loura,
contos, Ed. Sete Letras, Rio.
Conquistou prêmios
literários de prestígio, como o Jabuti da Câmara Brasileira do
Livro (SP), duas vezes, com romance e livro de contos, o da Revista
Status, para literatura erótica, e o da Fundação Biblioteca
Nacional. Seus contos participam de antologias importantes no Brasil
e exterior, tendo sido traduzidos para o francês, holandês,
polonês, russo, inglês e alemão. Por outro lado, traduziu cerca de
cinquenta autores americanos e ingleses, como Doris Lessing, Edgard
Allan Poe, Carlson McCullers, Joyce Carol Oates, Eudora Welty, Graham
Greene e Cristopher Isherwood.
Estudou História
da Arte em Madrid, licenciou-se em Inglês pela Universidade de Santa
Úrsula e obteve o grau de mestre em Teoria da Comunicação
Literária pela Escola de Comunicação da UFRJ. Em 1983, participou,
nos Estados Unidos, em Iowa, do International Writting Program
Sua ficção une arte e
documento para situar o real como vínculo de gravidade nas
limitações da condição humana. Desenganos, desencontros,
problemas existenciais e psicológicos de natureza aguda, que
acontecem na cidade grande, informam o pós-herói moderno em crise,
para o qual a autora logra questionar através de cortes e
monólogos interiores, usados em narrativas curtas ou longas, de
visões oblíquas na apreensão do fluxo da vida.
Alguns escritores de sua
geração diziam que tinha temperamento difícil no trato com as
pessoas e os companheiros de letras na Bahia. Não era bem assim.
Cultivava o pensamento livre e se mostrava contrária à atitude
postiça da família convencional em sua maneira de conceber as
pessoas no mundo. Sempre quis ser uma escritora com circulação
nacional. Em Salvador foi casada com o poeta Florisvaldo Mattos.
Quando foi morar no Rio, viveu na metrópole carioca aventura
amorosa com os escritores Marcos Santarrita e Hélio Pólvora.
A solidão e sua vocação
legítima para escrever o bom texto deram-lhe o convívio íntimo e
pessoal para erguer uma inquietante e vertiginosa leitura da vida.
Um ritual doloroso de intensa celebração dos escombros e ruínas
humanas perante a indiferença da existência. Seu grande ponto de
gravidade para construir uma obra literária de dimensão maior,
dotada de uma estrutura criativa coesa, encontrou eco numa dura
solidão de vida, da qual nunca se afastou. Era uma criatura
incompreendida por alguns companheiros de geração, mas autêntica
na sua maneira particular de sentir os seres humanos em trânsito no
mundo.
Nos doze contos que enfeixou
em Ovelha
negra e amiga loura
(2006), essa ficcionista baiana de Itabuna se inventa com o duro
realismo de personagens afastadas do lado bom da vida. Como acontece
em outros livros seus, aqui encontramos criaturas infelizes, tristes,
quase sempre ligadas às questões familiares, que ferem, fraturam,
corroem e aniquilam. Atritos e conflitos tecem delírios e
divagações, propõem o desespero, circulam no espaço crítico de
pungente e dolorosa solidão.
Vários de seus
personagens quase sempre vivem em apartamento pequeno, na Zona Sul do
Rio, com vista para a paisagem linda, céu luminoso e pedaços do
azul do mar, entre os edifícios. Uma delas, no conto “Às
vezes venta, de madrugada”, uma mulher descasada, de poucos amigos,
a família morando em outra cidade, carrega forte trauma sexual
infantil, que lhe causa incurável frigidez. Tem como momento mais
difícil, no seu pequeno apartamento com muitas portas de vidro,
abrir os olhos na madrugada escura, como se acordasse de um pesadelo.
Susto, escuridão e
uivo do vento atravessam a sua condição de criatura sofrida,
esquecida na ilha de sua solidão, embora quando jovem e bonita
vivesse com intensidade, o que causava inveja às amigas. Na
recuperação dolorosa da cirurgia feita para se curar da desventura,
nos conflitos que se atritam na madrugada, espera que tudo se acalme
quando a claridade de fora chegar. De repente toma consciência de
que para a solução do seu transe, em proposta contínua ao seu
envelhecimento, não é mais a sua condição de esperar. Pela
primeira vez, pensa que o pior não é a ideia de morrer, o pior é a
ideia de viver. Não dando mais para suportar o relacionamento a que
se submete no ninho da solidão, ela se antecipará ao que se define
como horrível, na hora mais crítica, onde o vento provoca e fere
com tremor, já perto de clarear o dia.
A solidão que as
personagens comportam nesse pequeno grande livro de contos, grandioso
nos sentidos que dá à vida, depara-se o leitor com o esmagamento
ditado pela certeza de que para certas vidas problemáticas não há
saída. Há sempre o clímax da tormenta que não cessa, o medo da
morte nos sonhos, a escuta da passagem dolorida do tempo. Mesmo que
morem no Rio, os sentidos do personagem não se desapegam de Solinas,
cidade do interior sertanejo recriada pelo imaginário da
ficcionista, quando então se vivia numa vida convencional, sem a
problemática existencial que aparece em certo estado crítico da
vida para tangenciar os limites de tudo. Aqui, nesse doloroso livro
de desintegração familiar, estão presentes as marcas da solidão
com a inibição do afeto. A criatura com a sua infelicidade é
alcançada por uma música na marcha fatal do destino, com isso
trazendo como experiência de vida essa melodia que pode levar à
loucura, ao conhecimento de uma perplexidade permanente, de natureza
estranha e difícil de ser suportada.
São poucas as
alegrias. Nada exerce a atração, como o grande orgasmo, o amor
profundo e da família. O pensamento fragmentado acende centelhas que
incendeiam de cada lembrança, do momento agudo vivido por uma dessas
tristes criaturas odiada pela mãe, que jogou a filha contra ela.
Além disso, a amiga de juventude torna-se a aliada necessária da
mãe para reforçar a guerra da inimizade. No conto “Ovelha negra e
amiga Loura”, a frustração do personagem consiste em perceber que
a amiga deixada em Solinas, como a imagem da amizade verdadeira na
juventude, falseara. Estava fadada a uma aliança com essas
matriarcas convencionais de província.
Sempre essencial no
que diz e precisa na linguagem, a ficcionista Sonia Coutinho executa
com mão firme seu discurso resistente ao esmagamento moral, físico
e psicológico, sabe com segurança usar os meios estruturais da
ficção para armar a história curta ou o romance com uma técnica
moderna. Desenvolve com originalidade o assunto inserido no espaço
curto inerente ao conto, juntando os fragmentos de uma situação
incômoda, que de repente surge como uma coisa profunda na escrita
rápida, dotada de meios concisos, decorrente de uma necessidade
aguda de comunicação. Nota-se na ficcionista baiana um momento
singular da atual ficção brasileira.
No excepcional conto “D
de descoberta”,
fazendo uso da máquina fotográfica, a contista expõe em cada lance
o drama de Clara, que força a sua natureza nas vezes que transa com
o marido, mas nada sente. Numa excitação repentina chega ao
orgasmo, apertando as coxas, quando vê duas meninas em trajes de
ginástica, num gesto imprevisível, aproximando-se bruscamente os
sexos na piscina.
Na construção de uma
dialética da solidão, formada pela experiência que cada
personagem transpira no seu desentendimento com a vida, ao deixar o
amor, a família, o prazer, para optar como sobrevivente da solidão,
o que lhe basta, pode-se entrever instantes coincidentes em A
ovelha negra e a amiga Loura
como vivências da autora, agora reinventados no plano superior da
arte literária, do pensamento lógico articulado com coragem, do
pensamento mágico urdido com sabedoria e beleza, longe de usar na
ideia e na forma os suspiros recorrentes de uma prosa de ficção
melíflua na qual os meios sentimentais tendem para o pieguismo de
certos ficcionistas de hoje. Como diz a personagem do conto “O fim
de ano da mulher sozinha”, criatura que não levou adiante
situações domésticas insuportáveis, vem-lhe a certeza, nessa
escuta de infortúnios, “de que sua solidão foi conquistada a
duras penas, sua solidão é seu prêmio”.
Como ícone da moderna
literatura brasileira no século XX, há anos Sonia Coutinho é
reconhecida nos meios literários avançados e na melhor crítica
como moderna ficcionista de nível superior, ao lado de Clarice
Lispector, Lígia Fagundes Telles, João Gilberto Nol e Sérgio
Sant’Anna, entre outros nomes de elevado conceito em nossas letras.
Referência
COUTINHO, Sonia. Ovelha
negra e amiga Loura,
contos, Editora Sete Letras, Rio de Janeiro, 2006.