TRÊS CABECINHAS, conto de SCHOLEM ALEIHEM

 


 O escritor judeu Scholem Rabinovitch, mais conhecido pelo nom de plume Scholem Aleichem, nasceu na Ucrânia e se tornou um escritor popular entre as comunidades judaicas da Europa Oriental falantes do dialeto ídiche, antes de emigrar para os Estados Unidos, destino de milhões de judeus daquela região fugindo da pobreza, preconceito e perseguição. Ele é um dos três grandes escritores clássicos da língua iídiche, junto com Peretz  e Mêndele.

 Seu projeto era escrever para o grande público de judeus simples, na maioria pobres, habitantes do stetl (vilarejo) do leste europeu no final do século XIX e início do século XX. Para isso, valeu-se da realidade quotidiana do stetl, de seus tipos característicos – o rabino, o chantre, o marido suando para prover o pão de cada dia, as crianças irrequietas presas àquele mundinho limitado, a mulher nervosa com a sobrecarga das tarefas domésticas, o caixeiro viajante, Tevye, o leiteiro (ou Teive, ou ainda Tobias, personagem celebrizado no já citado O Violinista no Telhado), o ingênuo e trapalhão Menahem-Mendl (ou Menahem-Mêndel) de Yehupetz, que tenta enriquecer metendo-se em todo tipo de negócio, mas sem êxito, etc.

 Um falante do português poderá começar a se familiarizar com a literatura de Scholem Aleichem através do livro A Paz Seja Convosco, coletânea de contos muito bem traduzidos que integra a Coleção Judaica, o primeiro grande projeto editorial da Editora Perspectiva, organizada por J. Guinsburg e publicada originalmente em 1966. Embora esgotado no site da editora, o livro está à venda na Estante Virtual. Outras obras do autor traduzidas para o vernáculo: são Stempenyu: um romance judaico e Tévye, o leiteiro. Da coletânea de Guinsburg selecionei o conto Três Cabecinhas abaixo. Leia mais sobre Scholem Aleihem no meu artigo UM EXPOENTE DA LITERATURA ÍDICHE: SCHOLEM RABINOVITCH, MAIS CONHECIDOCOMO SHOLEM ALEICHEM.


Se a pena do escritor fosse um pincel de pintor, ou pelo menos um aparelho fotográfico, eu lhes ofereceria, amigos, como presente de Schavuot, um quadro, um grupo raro: três tenras, bonitas e encantadoras cabecinhas de três pobres, descalças e esfarrapadas crianças judias. As três cabecinhas são morenas, de cabelinhos crespos e olhinhos graúdos, ardentes, luminosos, que fitam a gente cheios de espanto, como que perguntando ao mundo: "Por quê?" E fica-se olhando para elas, tomado de admiração, e a gente sente-se culpada perante elas, como se houvesse cometido um pecado, como se tivesse realmente culpa de tê-las criado – criado mais três seres supérfluos neste mundo! 

As três lindas cabecinhas pertencem a Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, dois irmãos e uma irmāzinha menor. Abramtchik e Moiseitchik, foi o pai, Peissi, o cartoneiro, quem lhes esticou assim o nome à moda russa. E se não tivesse vergonha da mulher, e não fosse tamanho pobretão, modificaria também o seu próprio nome, e de Peissi, o encadernador, viraria "Petia, perepliotchik". Mas, como sente certo receio de sua mulher, Pessi, e como, de vós não seja dito!, é um grande pobretão, ficou por ora com o velho nome de Peissi, o encadernador, até que um dia cheguem os bons tempos, aqueles tempos felizes quando tudo há de mudar, como diz August Bebel, Karl Marx, e como diz toda a gente boa e inteligente. Então... oh! então tudo será diferente... Mas, enquanto não chegam tais tempos felizes, é preciso permanecer de pé desde o amanhecer até bem tarde da noite, cortando papelão e colando caixas, invólucros... E o cartoneiro Peissi passa de pé o dia inteiro, corta papelão, cola caixas e cantarola neste ínterim velhas e novas cançonetas judias e não-judias, na maioria triste-alegres, com refrões triste-alegres.

Se ao menos você parasse de cantar essas cantigas de goi– ralha a mulher. – Onde se viu uma pessoa apaixonar-se desse jeito pelos goimDesde que viemos para a cidade grande, virou goi de uma vez!  

Os três Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke nasceram e cresceram no mesmo canto, entre a parede e o fogão. Os três veem todos os dias à sua frente sempre o mesmo: o pai alegre, que corta papelão, cola caixas e trauteia cantigas; e a mãe sempre preocupada, acabada, que cozinha, assa, varre, limpa e nunca consegue dar conta do serviço. E ambos vivem eternamente atarefados, a mãe com o fogão, o pai com as caixas de papelão. Para que tanta caixa? Quem é que precisa de tantas caixas? Será que o mundo inteiro está cheio de caixas? Assim pensam as três lindas cabecinhas e não enxergam a hora em que o pai apronte muitas, muitas caixas. Então êle as levará na cabeça e nos braços para o mercado, umas mil caixas, e voltará para casa sem as caixas, mas com dinheiro para a mãe, e com pãezinhos, rosquinhas e doces para as crianças... Ah! que pai bom é o deles, um homem de ouro! A mãe também é boa, mas é brava: apanha-se dela uma palmada, um safanão, um puxão de orelha. Ela não gosta de desordem em casa. Não quer que as crianças brinquem de "papai-mamãe", que Abramtchik recorte as aparas de papelão, que Moiseitchik furte cola do pai, que Dvoirke faça bolinhos de lama... A mãe deseja que as crianças fiquem quietas, estáticas. A mãe não sabe, segundo parece, que as cabecinhas infantis trabalham o tempo todo, que as almas juvenis forcejam, forcejam, forcejam... Para onde? Para fora! Para a luz! Para a janela! Para a janela!

Ao todo uma só janela. Um pedacinho de janela. E as três cabecinhas lutam por essa única janelinha. E o que se vê atrás dela? Um muro. Um muro alto, largo, cinzento, úmido. Sempre, eternamente úmido. Até mesmo no verão! Será que o sol aparece aqui? É claro que o sol aparece às vezes por aqui. Quer dizer, não é bem o sol mesmo, mas um reflexo do sol. E então é uma festa. As três lindas cabecinhas apoiam-se no pedaço de janela, olham para cima, o mais que podem, e veem uma longa faixa, estreita e azul, como uma comprida fita azul.

– Oh! estão vendo, crianças? Isto é céu.

Assim diz Abramtchik. Abramtchik sabe. Abramtchik frequenta a escola. Já conhece o alfabeto. O heder, na verdade, não fica muito longe, a casa adiante, isto é, a porta pegada. Ah! que histórias maravilhosas Abramtchik traz da escola! Abramtchik jura que viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma chaminé, altíssima, com fumaça subindo da chaminé... Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma máquina que funciona sem mãos. Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, um carro que corre sozinho, sem cavalos. E muitos outros milagres Abramtchik conta da escola. E ele jura, como sua mãe costuma jurar: "Que assim possa ver tudo o que é bom!"... Moiseitchik e Dvoirke o escutam, suspiram e o invejam, porque ele sabe tudo, tudo!

Por exemplo, Abramtchik sabe que uma árvore cresce. É verdade que ele, como todos os outros, nunca viu uma árvore crescendo. Na sua rua não existem árvores. Não existem. Mas ele sabe (ouviu na escola) que na árvore crescem frutas, e é por isso que se recita, sobre uma fruta, a oração de graças ao "Criador das árvores de frutas". Abramtchik sabe (que é que ele não sabe!) que a batata, ou, por exemplo, os pepinos, ou a cebola ou o alho crescem na terra, e é por isso que ao comê-los a gente recita uma oração de graças ao "Criador dos frutos da terra". Abramtchik sabe tudo! Só não sabe onde e como tudo isso cresce, porque ele, como os outros, nunca viu uma árvore viva, porque na sua rua não há campo, nem jardim, nem árvores, nem sequer uma graminha  não há nada! Nada! Na sua rua existem muros enormes, paredes cinzentas, altas chaminés, das quais não para de subir fumaça, e uma porção de janelinhas em cada uma das enormes paredes, milhares, milhares de janelinhas, e máquinas que funcionam sem mãos, e carros que andam sem cavalos e nada mais! Nada!

Mesmo um passarinho é raro ver aqui. Às vezes um pardal transviado aparece por ali, cinzento como o muro cinzento, dá uma bicada ou duas nas pedras cinzentas e levanta voo... Quanto a aves maiores, veem às vezes, no sábado, um quarto de galinha, com uma perninha pálida e esticada... Quantas pernas tem uma ave? Quatro, naturalmente! Como um cavalo! Assim sentencia Abramtchik, o mais velho, e Abramtchik sabe de tudo!... De vez em quando, a mãe traz da feira uma cabecinha de galinha, de olhos arregalados, revestidos de uma película esbranquiçada. "Está morta" diz o mais velho. Abramtchik, e as três cabecinhas se fitam com seus grandes olhos negros e suspiram. Nascidos e criados na cidade grande, no grande muro, no grande aperto, pobreza e miséria, as três cabecinhas jamais tiveram oportunidade de ver à sua frente vivo, nem um pássaro, nem um bicho, nem um animal doméstico, além do gato. Um gato eles têm, um gato de verdade vivo, um gato cinzento como o grande muro cinzento e úmido. Esse gato é a sua maior alegria. Com esse gato brincam horas a fio, amarram-lhe um lenço na cabeça, chamam-no de "comadre", e riem às gargalhadas, riem sem parar! Mas, se a mãe os apanha, cada um leva o seu quinhão um recebe uma palmada, outro um safanão, o terceiro um puxão de orelha. As crianças se refugiam no seu cantinho, atrás do fogão. O mais velho, Abramtchik, conta alguma coisa, e os menores, Moiseitchik e Dvoirke, escutam. Fitam o irmão mais velho com grandes olhos e escutam. Abramtchik diz que a mamãe tem razão; Abramtchik diz que não se deve brincar com um gato, porque o gato é um animal impuro e um demônio. Tudo Abramtchik sabe, tudo! Será que existe alguma coisa no mundo que Abramtchik não saiba?

Abramtchik sabe tudo. Abramtchik sabe que existe uma terra, uma terra muito, muito distante, que se chama América. Lá, naquela América, eles têm muitos parentes e conhecidos. Lá, naquela América, os judeus, benza-os Deus, têm uma vida alegre e boa. Para lá, para aquela América, eles irão, se Deus quiser, no ano que vem, assim que receberem de lá as passagens marítimas. Sem passagem não se pode ir para a América, porque há um mar e, no mar, ventos tempestuosos e ondas que é um pavor... Tudo o Abramtchik sabe!

Tudo! Até mesmo o que acontece no outro mundo. Éle sabe, por exemplo, que no outro mundo existe o Paraíso... para judeus, naturalmente. E no Paraíso crescem árvores, muitas, com os frutos mais lindos. Lá correm rios de azeite. Brilhantes e diamantes rolam pelas ruas. É só abaixar-se e pegá-los e entupir os bolsos. E judeus virtuosos passam lá dia e noite, estudando e deliciando-se com a Presença Divina.

Assim lhes fala Abramtchik. E os olhinhos de Moiseitchik e Dvoirke fulguram, e êles invejam o irmão mais velho, que sabe tudo. Tudo êle sabe! Até o que acontece no céu. Abramtchik jura que duas vezes por ano: na noite de Hoschana Rabá e na noite de Pentecostes, o céu se parte. É verdade que ele mesmo nunca viu o céu se partindo, porque lá onde moram não há céu. Mas os seus companheiros de escola viram. Eles juram que viram com os próprios olhos, possam assim ver tudo o que é bom. E não iriam jurar por uma mentira. Não se pode jurar por uma mentira. É pena que na sua rua não exista céu. Existe apenas uma estreita faixa azul, como uma longa fita azul. O que se pode ver num pedacinho de céu tão pequeno, além de duas ou três estrelinhas e um pálido clarão da lua?... E para convencer o irmãozinho menor, Moiseitchik, e a irmãzinha Dvoirke, de que o céu de fato se parte, Abramtchik corre para a mãe e começa a puxá-la pela saia: 

– Mamãe, não é verdade que hoje, véspera de Schavuot, o céu vai partir-se?

– Sua cabeça é que eu vou partir!

Mal sucedido junto à mãe, Abramtchik espera pela volta do pai. O pai foi ao mercado, com todo um tesouro de caixas.

– Como é, crianças, vamos ver quem adivinha o que o pai vai nos trazer do mercado hoje?  pergunta Abramtchik, e as crianças tentam, adivinhar o que o pai vai lhes trazer de presente. Contam pelos dedos tudo o que um olho humano é capaz de distinguir e o que o coração humano pode almejar: pãezinhos doces, e rosquinhas, e confeitos mas ninguém conseguiu acertar. E vocês, leitores, receio que tampouco o conseguirão. O cartoneiro Peissi desta vez não trouxe do mercado nem pãezinhos, nem rosquinhas, nem mesmo doces. Ele trouxe capim, sim, um feixe de capim, um capim estranho, comprido, verde, cheiroso.

E as três lindas cabecinhas, Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, rodearam o pai.

– Papai, o que é isso, isso aqui?

– Isso é verdura.

– O que quer dizer isso, verdura?

– Verdura para a festa. Na festa de Pentecostes os judeus precisam ter verdura em casa!

– E onde é que se arranja isso, pai?

– Onde se arranja? Hum... no mercado... compra-se no mercado...

Assim responde o pai, espalhando o capim verde e cheiroso pelo aposento recém-varrido. Ele está todo contente com êsse verdor e com o cheiro gostoso, e diz para a mamãe, alegremen-te, como é seu costume!

– Pessi, boas festas para você!

– Parabéns! Como se me faltasse lixo! Esses bastardozinhos seus vão ter o que sujar!  responde a mãe, em tom aborrecido, como sempre, e, como sempre, mimoseia as crianças.. safanão para um, puxão de orelha para outro, palmada para a terceira. Que mãe esquisita, a deles! Nunca está satisfeita, sempre carrancuda, sempre preocupada, exatamente o oposto do pai!

E as três lindas cabecinhas olham para a mãe, olham para o pai, olham uma para a outra. E quando pai e mãe viram as costas, todas as três no chão, esfregam o rosto no capim cheiroso, beijam o capim cheiroso que se chama "verdura", e que os judeus precisam ter para a festa, e que se compra no mercado...

Tudo se pode conseguir no mercado, até verdura. E tudo o pai lhes compra. De tudo os judeus precisam e tudo os judeus têm. Até verdura! Até verdura!...

O MALHO E A CARGA TRIBUTÁRIA

Nada mais atual que esta charge de O MALHO de 21 de abril de 1906 criticando a carga tributária descomunal.


LEGENDA (observe a palavra FISCO no cão):

Zé Povo: Raios! urubus! cães! tudo, tudo em cima de mim, que nem me deixam tomar fôlego! Com raios de diabos, que se o mártir Tiradentes adivinhasse, não se teria deixado enforcar por uma república que dá comigo em pantanas! Arre, que é demais!
O burro (comovido): Consola-te comigo, Zé! Também eu arrebento ao peso desta carga, desde que me conheço. Foi, é e será sempre assim! Que se lhe há de fazer? A nossa sorte é esta...

DO AULETE:
Dar (com algo) em pantana(s)
1 Lus. Fig. Perder, dissipar (algo): Achavam que logo daria com a herança em pantana.

HAICAIS & "QUASE HAICAIS de JAMIL DAMOUS

JAMIL DAMOUS foi meu colega de oficina literária na virada do século XX para o XXI. Poeta inspirado, como revelam estes haicais & quase haicais. Tínhamos divergências políticas, algo tristemente comum neste mundo polarizado. Com tristeza recebi a notícia de seu falecimento em 2016.


BAGAGEM
Uma folha seca
guardada na mala.
Clandestino, o outono
de Nova York
viaja para o Brasil.

VERBOS
(as quatro conjugações)
luar
prazer
porvir
amor

CANÇÃO PRA SIDA
Já temos um passado,
meu amor.

ERRO DE REVISÃO
A vida, sempre deslocada.
Como o acento na palavra ávida.

ACHO QUE A CHUVA
O dia deu em chuvoso:
acordei fernando pessoas
& caetano veloso

FOTOGRAFIA
A morte em nós ainda não nascera.
Éramos eternos ali em frente ao mar.

ANTROPOCENTRISMO
Cada homem é o centro do mundo.
Para isso é que a Terra é redonda.

NOSTALGIA
No passado,
até o futuro
era melhor.

A NOITE AMOROSA
O dia já nasceu.
Mas ainda estamos noturnos,
você e eu.

NAQUELES TEMPOS DO HOLOCAUSTO, de CYRO DE MATTOS

 


Havia sido aprovado no concurso do Conservatório Nacional de Música. Sonhara muito tempo com isso. Desejara começar a exercer a carreira de violinista na Alemanha, onde certamente desenvolveria seus pendores musicais com o instrumento que mais apreciava, melhor dizendo amava. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel.

Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, crente na perfeição da vida quando o assunto era música. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas. No aeroporto viu o aviso na parede proibindo que judeus saíssem da Alemanha.

No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM RATO SUJO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo que se manifestava na vida com inteligência e trabalho.

Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia brasileira em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Não admito tamanha covardia! Vou denunciar o caso ao Consulado do Brasil!” O grupo largou a moça contrariado, revoltado com aquele brasileiro inconveniente, um intruso na defesa de uma judia, uma criatura inferior na escala biológica das raças.

Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil.

O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do sentimento do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.

Ficou sem querer acreditar quando ocorreu a Noite do Cristal, lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que fosse encontrado pela frente e que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.

Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria descontrolada assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.

As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em seu mito ariano com as botas de ferro de soldados impassíveis?

Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas.

No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria querida e saudosa.

ATRITOS E SOLIDÕES DE SONIA COUTINHO, por CYRO DE MATTOS


 

Quando tinha 74 anos de idade, a escritora baiana (de Itabuna) Sonia Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu apartamento, no Rio de Janeiro. No velório comentou-se que a escritora havia comunicado à filha pouco antes um mal-estar.

     Nunca nos acostumamos com o quadro inexorável da morte. É sempre dolorido. Em alguns casos, quando se vive muito, preenche-se a vida com ganhos, formando-se em torno disso uma biografia bem-sucedida no plano familiar, econômico e profissional. Ocorre na ausência irreversível do ente querido o consolo entre os parentes, amigos e conhecidos. O trauma é atenuado com o fato de que não se podia querer mais do morto. As dificuldades da vida foram para ele s de triunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e lembranças.

Com Sonia Coutinho, a traiçoeira invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que os fatos acontecessem no lado azul da canção. Mas não é o momento agora para se falar das amarguras que perseguiram essa consagrada escritora baiana. Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso, isso alcança todos nós, em nossa condição de solitários no mundo, com Sonia Coutinho, autora de uma obra consistente na moderna literatura brasileira, ausente dos elementos românticos retirados da vida ou projetados pelo imaginário, foi para lá de lastimável.

Ela nasceu em Itabuna, em 1939, filha do promotor Natan Coutinho, homem culto, poeta parnasiano, inteligência brilhante, que também foi deputado estadual na Bahia. Com a família, ainda menina, mudou-se para Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Ao fazer sua estreia com os contos do pequeno livro Do Herói Inútil, em 1966, pelas Edições Macunaíma, Salvador, já prenunciava uma ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição contraditória da alma humana. Nos anos 60 foi morar no Rio de Janeiro, onde atuou na imprensa e teve coluna de livros no “Domingo Ilustrado” e editou por uma temporada a página de livros do jornal “O Globo”. Já no Rio, em 1971, publicou Nascimento de uma mulher, de contos, Editora da Civilização Brasileira. Seguiram-se Uma certa felicidade, Ed. Francisco Alves, 1976, contos; O jogo de Ifá, contos, Ed. Ática, São Paulo, 1980, romance; O último verão de Copacabana, José Olympio Editora, Rio, contos, 1985; Atire em Sofia, romance, Ed. Rocco, Rio, 1989; O caso Alice, Ed. Rocco, Rio, romance, 1991; Os seios de Pandora, romance, Ed. Rocco, Rio, 1998, Prêmio Jabuti 1999; em 1994, lançou pela Ed. Sete Letras, Rio, o volume de ensaios: Rainhas do crime: ótica feminina no romance policial; mil olhos de uma rosa, contos, Ed. Sete Letras, Rio, 2001, e Ovelha negra e amiga loura, contos, Ed. Sete Letras, Rio.

     Conquistou prêmios literários de prestígio, como o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (SP), duas vezes, com romance e livro de contos, o da Revista Status, para literatura erótica, e o da Fundação Biblioteca Nacional. Seus contos participam de antologias importantes no Brasil e exterior, tendo sido traduzidos para o francês, holandês, polonês, russo, inglês e alemão. Por outro lado, traduziu cerca de cinquenta autores americanos e ingleses, como Doris Lessing, Edgard Allan Poe, Carlson McCullers, Joyce Carol Oates, Eudora Welty, Graham Greene e Cristopher Isherwood.

       Estudou História da Arte em Madrid, licenciou-se em Inglês pela Universidade de Santa Úrsula e obteve o grau de mestre em Teoria da Comunicação Literária pela Escola de Comunicação da UFRJ. Em 1983, participou, nos Estados Unidos, em Iowa, do International Writting Program

Sua ficção une arte e documento para situar o real como vínculo de gravidade nas limitações da condição humana. Desenganos, desencontros, problemas existenciais e psicológicos de natureza aguda, que acontecem na cidade grande, informam o pós-herói moderno em crise, para o qual a autora logra questionar através de cortes e monólogos interiores, usados em narrativas curtas ou longas, de visões oblíquas na apreensão do fluxo da vida.

Alguns escritores de sua geração diziam que tinha temperamento difícil no trato com as pessoas e os companheiros de letras na Bahia. Não era bem assim. Cultivava o pensamento livre e se mostrava contrária à atitude postiça da família convencional em sua maneira de conceber as pessoas no mundo. Sempre quis ser uma escritora com circulação nacional. Em Salvador foi casada com o poeta Florisvaldo Mattos. Quando foi morar no Rio, viveu na metrópole carioca aventura amorosa com os escritores Marcos Santarrita e Hélio Pólvora.

A solidão e sua vocação legítima para escrever o bom texto deram-lhe o convívio íntimo e pessoal para erguer uma inquietante e vertiginosa leitura da vida. Um ritual doloroso de intensa celebração dos escombros e ruínas humanas perante a indiferença da existência. Seu grande ponto de gravidade para construir uma obra literária de dimensão maior, dotada de uma estrutura criativa coesa, encontrou eco numa dura solidão de vida, da qual nunca se afastou. Era uma criatura incompreendida por alguns companheiros de geração, mas autêntica na sua maneira particular de sentir os seres humanos em trânsito no mundo.

Nos doze contos que enfeixou em Ovelha negra e amiga loura (2006), essa ficcionista baiana de Itabuna se inventa com o duro realismo de personagens afastadas do lado bom da vida. Como acontece em outros livros seus, aqui encontramos criaturas infelizes, tristes, quase sempre ligadas às questões familiares, que ferem, fraturam, corroem e aniquilam. Atritos e conflitos tecem delírios e divagações, propõem o desespero, circulam no espaço crítico de pungente e dolorosa solidão.

       Vários de seus personagens quase sempre vivem em apartamento pequeno, na Zona Sul do Rio, com vista para a paisagem linda, céu luminoso e pedaços do azul do mar, entre os edifícios. Uma delas, no conto Às vezes venta, de madrugada”, uma mulher descasada, de poucos amigos, a família morando em outra cidade, carrega forte trauma sexual infantil, que lhe causa incurável frigidez. Tem como momento mais difícil, no seu pequeno apartamento com muitas portas de vidro, abrir os olhos na madrugada escura, como se acordasse de um pesadelo.

      Susto, escuridão e uivo do vento atravessam a sua condição de criatura sofrida, esquecida na ilha de sua solidão, embora quando jovem e bonita vivesse com intensidade, o que causava inveja às amigas. Na recuperação dolorosa da cirurgia feita para se curar da desventura, nos conflitos que se atritam na madrugada, espera que tudo se acalme quando a claridade de fora chegar. De repente toma consciência de que para a solução do seu transe, em proposta contínua ao seu envelhecimento, não é mais a sua condição de esperar. Pela primeira vez, pensa que o pior não é a ideia de morrer, o pior é a ideia de viver. Não dando mais para suportar o relacionamento a que se submete no ninho da solidão, ela se antecipará ao que se define como horrível, na hora mais crítica, onde o vento provoca e fere com tremor, já perto de clarear o dia.

       A solidão que as personagens comportam nesse pequeno grande livro de contos, grandioso nos sentidos que dá à vida, depara-se o leitor com o esmagamento ditado pela certeza de que para certas vidas problemáticas não há saída. Há sempre o clímax da tormenta que não cessa, o medo da morte nos sonhos, a escuta da passagem dolorida do tempo. Mesmo que morem no Rio, os sentidos do personagem não se desapegam de Solinas, cidade do interior sertanejo recriada pelo imaginário da ficcionista, quando então se vivia numa vida convencional, sem a problemática existencial que aparece em certo estado crítico da vida para tangenciar os limites de tudo. Aqui, nesse doloroso livro de desintegração familiar, estão presentes as marcas da solidão com a inibição do afeto. A criatura com a sua infelicidade é alcançada por uma música na marcha fatal do destino, com isso trazendo como experiência de vida essa melodia que pode levar à loucura, ao conhecimento de uma perplexidade permanente, de natureza estranha e difícil de ser suportada.

       São poucas as alegrias. Nada exerce a atração, como o grande orgasmo, o amor profundo e da família. O pensamento fragmentado acende centelhas que incendeiam de cada lembrança, do momento agudo vivido por uma dessas tristes criaturas odiada pela mãe, que jogou a filha contra ela. Além disso, a amiga de juventude torna-se a aliada necessária da mãe para reforçar a guerra da inimizade. No conto “Ovelha negra e amiga Loura”, a frustração do personagem consiste em perceber que a amiga deixada em Solinas, como a imagem da amizade verdadeira na juventude, falseara. Estava fadada a uma aliança com essas matriarcas convencionais de província.

       Sempre essencial no que diz e precisa na linguagem, a ficcionista Sonia Coutinho executa com mão firme seu discurso resistente ao esmagamento moral, físico e psicológico, sabe com segurança usar os meios estruturais da ficção para armar a história curta ou o romance com uma técnica moderna. Desenvolve com originalidade o assunto inserido no espaço curto inerente ao conto, juntando os fragmentos de uma situação incômoda, que de repente surge como uma coisa profunda na escrita rápida, dotada de meios concisos, decorrente de uma necessidade aguda de comunicação. Nota-se na ficcionista baiana um momento singular da atual ficção brasileira.

        No excepcional conto “D de descoberta, fazendo uso da máquina fotográfica, a contista expõe em cada lance o drama de Clara, que força a sua natureza nas vezes que transa com o marido, mas nada sente. Numa excitação repentina chega ao orgasmo, apertando as coxas, quando vê duas meninas em trajes de ginástica, num gesto imprevisível, aproximando-se bruscamente os sexos na piscina.

       Na construção de uma dialética da solidão, formada pela experiência que cada personagem transpira no seu desentendimento com a vida, ao deixar o amor, a família, o prazer, para optar como sobrevivente da solidão, o que lhe basta, pode-se entrever instantes coincidentes em A ovelha negra e a amiga Loura como vivências da autora, agora reinventados no plano superior da arte literária, do pensamento lógico articulado com coragem, do pensamento mágico urdido com sabedoria e beleza, longe de usar na ideia e na forma os suspiros recorrentes de uma prosa de ficção melíflua na qual os meios sentimentais tendem para o pieguismo de certos ficcionistas de hoje. Como diz a personagem do conto “O fim de ano da mulher sozinha”, criatura que não levou adiante situações domésticas insuportáveis, vem-lhe a certeza, nessa escuta de infortúnios, “de que sua solidão foi conquistada a duras penas, sua solidão é seu prêmio”.

Como ícone da moderna literatura brasileira no século XX, há anos Sonia Coutinho é reconhecida nos meios literários avançados e na melhor crítica como moderna ficcionista de nível superior, ao lado de Clarice Lispector, Lígia Fagundes Telles, João Gilberto Nol e Sérgio Sant’Anna, entre outros nomes de elevado conceito em nossas letras.


Referência

COUTINHO, Sonia. Ovelha negra e amiga Loura, contos, Editora Sete Letras, Rio de Janeiro, 2006.