Pesadelo. Isso. Só pode ser. Estou no meio de um pesadelo daqueles. Daqueles em que tentamos correr e o corpo pesa toneladas; em que tentamos gritar e a voz não sai; em que tentamos fugir e não conseguimos. Mas como pode ser pesadelo se não me lembro de ter ido dormir? Estava naquela festa e, até agora, bebera apenas duas doses de uísque – não dava para ficar bêbado. Será que colocaram alguma coisa na minha bebida? Caí no boa-noite-cinderela? Não, o Jorge, cara legal, não ia deixar fazerem baixaria em festa na casa dele. Pelo contrário. Tanta gente bonita circulando, por que ele permitiria que prejudicassem um amigo?
Olho para os lados e só vejo louras. Não estou na Suécia nem na Finlândia, e estou cercados de mulheres com longos cabelos louros e lisos, jogados, estudada displicência, de um lado para outro.
Estranho país este nosso onde a insatisfação com o próprio corpo e a preocupação com a aparência atingiram níveis epidêmicos. É só abrir qualquer revista de fofoca que as notícias saltam: fulaninha puxou aqui, sicraninha colocou mais alguns mililitros ali, beltraninha tirou de lá. Nas páginas das festividades sociais, então, nem se fala: há mais louras por metro quadrado do que nos países nórdicos.
Digressões estéticas à parte, voltemos à festa.
Aproveitei que, ao meu lado, havia uma dessas louras – várias vezes quase embebera os cabelos em minha terceira e última dose de uísque programada para aquela noite –, para tentar entender este incontido desejo de ser diferente do que se é. Comecei com alguns comentários banais, como o tempo, a crise política, a seleção musical da festa. Recebi respostas monossilábicas. Lembrei-me então de famoso apresentador de TV. Uma vez, talvez tenha sido sua melhor tirada, disse que elas agitam a cabeleira para ver se a inteligência pega no tranco.
Salvo melhor avaliação, pude concluir que a tintura, além de desaparecer com a cor natural dos cabelos, desaparece também com as idéias. Conclusão precipitada número um.
Meia hora depois, a segunda tentativa. Aproximei-me do grupo no qual estava uma loura que, havia mais de cinco minutos, não jogava as madeixas para os lados. Pelo menos, não corro o risco de comer salgadinho com cabelo cheio de tinta. Cheguei a tempo de ouvir o final da conversa. Era algo sobre a última edição de famosa revista semanal. Perguntei se surgira mais alguma denúncia contra o governo. Olharam-me como se fosse de outro planeta. A conversa continuou. Passei horas me produzindo, vesti a menor microssaia com o decote mais profundo que encontrei, cruzei e descruzei as pernas, mostrei a calcinha e não saí em nenhuma foto. Só publicaram aquela vagabunda da Gisleine que dá pra jogador de futebol pra aparecer em todas as revistas.
Conclusão precipitada número dois: a louridão está diretamente ligada à vontade de aparecer na imprensa.
Afastei-me cinco passos e cheguei a outro grupo. O centro das atenções era, claro, uma loura escultural que, voz de taquara rachada, contava os últimos passos dados em sua carreira de modelo e manequim. Na véspera, fotografara para importante revista de moda do interior de São Paulo. Trabalho pequeno para todo o talento que tinha, mas que lhe garantiu alguns trocados e convites para participar do circuito de rodeios. Sonhava em entrar para o próximo Big Brother, mas não sabia dizer se conseguiria ficar tanto tempo longe da mãe. Se estudava? Sim, ia começar um curso de atriz na próxima semana e tinha vontade de fazer Faculdade de Jornalismo. Para arrematar, ainda disse que negociava, com um canal a cabo, um programa infantil.
Quase me engasguei com o salgadinho que comia ao lembrar-me do quanto tinha sofrido para ser jornalista com algum prestígio. O que me levou à conclusão precipitada número três: ser loura ajuda a abrir algumas das portas mais fechadas deste país.
Já pensava em ir-me embora quando parei no quarto grupo de louras oxigenadas da noite. Todas muito assustadas comentavam a tentativa de assalto que uma delas tinha sofrido. Foi horrível. Meu carro foi cercado por homens armados – não, querida, não foi o tipo de homem armado que você está pensando, sua tarada – e três deles entraram. Mandaram que tocasse para a Barra. Ainda bem que conheço a Barra muito bem e passei perto da delegacia. Quando a polícia viu aquele carrão importado, dirigido por uma loura natural como eu, acompanhada de três homens feios, sujos e nenhum deles louro, desconfiou de que alguma coisa estava errada e mandou parar. Foi tanto tiro que pensei que ia morrer. Ainda bem que a polícia não mata louras, só pretos, pardos e morenos.
Ser loura é salvo-conduto em um país que mata pobres, feios e sujos desde que não sejam louros – a conclusão precipitada número quatro a que cheguei.
Resolvi partir.
Na calçada, enquanto esperava o táxi que chamara, vi uma bela morena chegando para a festa. Simpática, sorriu-me, dentes muito alvos, lábios carnudos pintados levemente de vermelho. Quando já me aproximava, o carro chegou e ela sumiu na portaria do prédio.
Conclusão realista número cinco: perdi muito tempo com as falsas louras. Deveria ter esperado pela morena.
Roberto Petti Pinheiro é autor de Varanda de histórias (Oficina do Livro, 2005)