PEDRO NAVA


Prédio na Rua da Glória, 190 onde morou Pedro Nava

Companheiro, na juventude, de Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus, Capanema, Milton Campos e outros, contribuiu, na Belo Horizonte dos anos vinte, para a consolidação do movimento modernista. Mas uma vez concluídos seus estudos, não se encaminhou nem para a política, nem para as artes, aparentemente abandonando ensaios de poesia marioandradina, desenhos na linha do expressionismo e investidas contra os "coronéis" do PRM. Dedicou-se à medicina e fez carreira destacada como pioneiro da reumatologia. Em 1972, surpreendeu os velhos amigos, quando publicou Baú de ossos - primeiro dos seis (editados sem interrupçção) volumes de Memórias. (Marilia Rothier Cardoso, Introdução de Pedro Nava, o alquimista da memória)

O defunto

Quando morto estiver meu corpo,
evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
nem os ramalhetes distintos,
os superfinos candelabros
e as discretas decorações.

Quero a Morte com mau gosto!

Dêem-me coroas de panos
Dêem-me as flores do roxo pano,
angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças,
como enormes salva-vidas,
com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
que a vejam bem os amigos.
Que a não esqueçam os amigos
e que ela lance nos seus espíritos
a incerteza, o pavor, o pasmo...
E a cada um leve bem nítida
a idéia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos:
Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
em que sexos se demoraram
seus sabidos quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
todos os gestos malditos:
até furtos fracassados
e interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam!
elas fugiram
da suprema purificação
dos possíveis suicídios...
— Meus amigos! olhem as mãos,
as minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo
e até mesmo do meu corpo
as partes excomungadas,
as sujas partes sem perdão
que eu esmagava nos sábados
e que aos domingos renasciam...

— Meus amigos! olhem as partes...
Fujam das partes.
Das punitivas, malditas partes...
Eu quero a morte nua e crua
terrífica e habitual,
com seu velório habitual.
— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam num lençol:
a franciscana humildade,
bem sabeis que se não casa
com meu amor pela Carne,
com meu apego do mundo.

E quero ir de casimira:
de jaquetão com debrum,
calça listrada, plastron
e os mais altos colarinhos.
Dêem-me um terno de ministro
ou roupa nova de noivo...
E assim solene e sinistro
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que sua lembrança envenene
o que restar aos meus amigos
de vida sem minha vida.

— Meus amigos! lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
deste pobre terrível morto
que vai se deitar para sempre,
calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
os penetras escorraçados,
as prostitutas recusadas
e os amantes despedidos.
Que se vai como se vão
os que saem enxotados
e tornariam sem brio
a qualquer gesto de chamada.

— Meus amigos, tenham pena,
senão do morto, ao menos
dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
sapatos pretos de verniz.
Olhai bem estes sapatos
e olhai os vossos também.

          Rio 23.VII.38

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