Resvalou entre os tumulos enquanto o esquife de Noel baixava à sepultura. Boca borrada de batom. Lágrimas fazendo escorrer o creiom no canto dos olhos. Máscara de colombina transtornada. Cambaleante, Ceci entra no táxi. Desorientada pela dor, peito afogado em recordações. Todas muito amargas! Lembra a morte da mãe, a perversidade da madrasta, a omissão do pai. Atormentada, compra uma passagem. Da janela do ônibus, vê Nova Friburgo cada vez mais distante até sumir de vista. Muri vai ficando para trás, afastando-se, afastando-se, afastando-se ... As colinas, os campos floridos aplacam os demônios e acalmam o rodamoinho em que está mergulhada.
Luzes, silhuetas dos prédios, Cidade Maravilhosa!
A acomodação na casa de parentes, o trabalho como caixa de uma loja, o dinheiro regrado, regrado. Seus dezessete anos sepultados sem alardes. A primeira vez que vai com amigas a uma casa noturna. Veste um tailleur azul inadequado. Inadequados também os gestos e as palavras. Volta ali algumas vezes, antes de ser contratada.
Troca o tailleur azul por um soirée esvoaçante. O carmim dos batons realça a forma de coração dos lábios delicados. Lápis preto de ponta bem afinada contorna os olhos e marca no rosto uma pinta preta. A grande flor nos cabelos pende para um lado. Os goles de bebida sorvidos devagar subvertem a timidez e deixam os modos cada vez mais requintados.
— Inteligente aprendiz! — comentam as mais antigas na casa.
Ceci sonha arrancar, um dia, o irmão mais novo das garras da madrasta. Não gosta de pensar nisso enquanto trabalha. Os clientes exigem alegria, nenhuma nuvem sombria deve turvar-lhe o semblante.
O salão da casa noturna está enfeitado de bandeirinhas. Alusão a uma fogueira incandescente no centro da pista de dança. Fogos de artifícios clareiam o céu da noite de ventos cortantes. Ceci ajeita o chapéu de palha assim que entra um rapaz magrinho, cigarro no canto da boca. Este será o homem que mudara o rumo da minha vida? Nunca se tem certeza. Soube mais tarde que o coração do jovem também bateu descompassado. Apresentou-se como Noel. Perguntas rotineiras e desconcertadas dos enamorados. Aos poucos a saliva foi afinando e umedecendo os lábios ressecados. A pulsação do sangue nas veias acalmando. E o apaziguamento das mãos geladas deu lugar ao embate enquanto dançavam. Corpos em chamas se tocando, experimentando-se e se conhecendo. Saíram da festa saciados pelas libações e foram acabar de matar a sede em um aposento na Lapa.
Ceci saiu da casa dos parentes, foi morar em um quartinho que dividia com Noel nas horas de folga. A moça chegava aflita do trabalho, revirando gavetas em busca da melhor camisola. Refrescava-se em banho momo e perfumava as carnes alvas. Mergulhava entre os lençóis e ouvia os passos apressados do amado no corredor. A maçaneta girava, o mundo ficava estático e silencioso. Os pingos da chuva paravam no ar antes de alcançarem o solo. As lágrimas ficavam no meio das faces. Cessavam os gritos das crianças, o barulho dos bondes. Não mais ladravam os cães. o amante se despia com sofreguidão, a volúpia não cedia lugar aos pudores. As bocas davam conta das bocas e as mãos do resto. Tremiam! No corpo de Noel, Ceci reconhecia macios e duros. A barba do rapaz avermelhava a pele sensível dos seios da moça.
Gozo, exaustão, sono profundo.
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Do nada, em madrugada chuvosa, na porta da casa noturna surgem os olhos matreiros de Mário Lago. O brilho desse olhar desperta novos devaneios no coração de Ceci: casa, criados, filhos. Marido gentil abrindo a porta do carro.
Mário a apresenta aos artistas de teatro. Moça tão linda! Precisa entender das artes. Vão a vernissages de pintores famosos. Jantam em restaurantes caros: lagostas, vinhos finos, sobremesas sofisticadas, cafezinhos, licores.
Envenenado pelo ciúme, Noel não se conforma. Gritos, impropérios, desvarios sacodem as paredes do quarto e voam pela janela assustando as pessoas na calçada. Cada vez mais, Ceci entrega-se ao álcool como se ele fosse um remédio capaz de curar as muitas feridas.
Na última noite em que Noel a visita, não há briga. Ela? Estirada na cama, entorpecida. Noel, silencioso, passa a noite sentado.
No outro dia, quando Ceci acorda, Noel já não está.
Sobre a mesa do quarto, a letra de mais um samba.