Marta era carioca pacata, meiga e sincera, que sonhava em conhecer senhor trabalhador, situação financeira definida, carinhoso, de bem com a vida... em suma, a alma gêmea. Morava em casinha de alvenaria com a avó que a criara. Jamais conhecera o pai. E a mãe, que trocava de homem como se troca de camisa, a visitava cada vez menos. Esforçada, ganhava a vida como explicadora de aritmética, português e outras matérias para as crianças da vizinhança – vizinhança meio barra-pesada, bairro popular afavelado, que esse é o quinhão da população humilde das urbes de nosso país.
Posto simpática, sorriso fácil, felizmente não era dotada de beleza de capa de revista, senão correria o risco de cair no gosto do chefe do tráfico local. Ai de quem lhe negasse os favores sexuais! Moça da vizinhança tivera a família chacinada, inclusive a filha pré-adolescente, porque se recusara a ficar com o traficante-mor, sujeito de alta periculosidade. Tivesse sido massacre em escola norte-americana, sairia no JB, Globo, daria no Jornal Nacional, os brasileiros nos comoveríamos, nos preocuparíamos com o "surto absurdo de violência neste final de século" e coisa e tal... mas porque acontecera aqui (ou se acontecesse em Serra Leoa) envolvendo a população mais humilde, ninguém ligava... nem esquerdas, nem direitas, nem parlamentares, nem igreja, nem pastores, nem sindicatos, nem OAB, nem ABI, nem ONGs, nem comissões de direitos humanos... banalizara-se o mal. Um monte de gente se vangloriava de ter resistido contra a ditadura militar, mas cruzava os braços diante da ditadura do banditismo. Onde estariam nossos heróis de outrora? Ninguém esboçava a menor reação. Tais pensamentos cruzavam o cérebro de Marta, moça esclarecida, que, com grande sacrifício, completara o segundo grau e que procurava se instruir lendo jornais, revistas, romances, qualquer texto impresso que lhe caísse às mãos.
Às vezes, quedava-se perplexa diante de tanta maldade no mundo, violência, desamor. Existiria inferno pior do que este? Crianças abandonadas, doentes nos hospitais, loucos em manicômios, assassinos e ladrões espalhando a dor. Como Deus podia omitir-se diante de tanto sofrimento?
Um dia, vizinha convidou-a para corrente da libertação na Igreja da Vida Eterna, uma dessas igrejas evangélicas que pululam país afora. Marta aceitou o convite, meio por curiosidade, meio por não ter o que fazer naquela tarde de domingo, e se impressionou: em vez da lengalenga da missa católica, que freqüentava vez ou outra (e do padre insosso), pastor bem-apessoado, óculos de lentes grossas, terno, gravata, conclamando – voz atroadora de comandante militar em meio à escaramuça – incisivo os fiéis a se revoltarem, a darem um basta à servidão e miséria, a tomarem atitude contra o mal, a buscarem em Deus a solução para os males. Uma revelação como a de Paulo na Estrada de Damasco: Deus não podia ser acusado pelos problemas criados por nós mesmos. O pecado entrara no mundo por causa da desobediência do homem, e o diabo, o inimigo número um, tirava vantagem disso. Xô, Satanás! O pastor proferiu diatribe contra a idolatria, feitiçaria, macumba, folia, luxúria, toda sorte de vícios...
Marta tornou-se frequentadora assídua do templo, participando das correntes, dos encontros de louvor e adoração a Deus. Meses depois, a igreja alugou um ônibus para vigília em famoso estádio. Evento impressionante: estádio lotado, arredores tomados por dezenas de ônibus de várias localidades, altar erguido em pleno campo, enorme cruz de madeira, tapete vermelho ao redor... O líder daquela denominação, bispo de fama nacional, quiçá internacional, perorou sobre o mal que campeava na sociedade e pregou a revolta santa. Aleluia, irmãos!
No ônibus rumo ao encontro, Marta conheceu Paulo, obreiro da igreja havia mais de um ano, temente a Deus, emprego de carteira assinada, moreno-escuro, voz terna que transmitia segurança, braço peludo (detalhe aparentemente irrelevante mas que, de alguma forma, excitava as mulheres), o homem dos sonhos de Marta. Paulo vivera passado negro antes de conhecer a igreja: envolvera-se com drogas e bebidas, frequentava bailes funk, metia-se em brigas contra galeras rivais. Mas Jesus o libertara daquela vida desregrada. Livrou-se dos demônios que o induziam ao vício. Graças a Deus! A avó de Marta tornou-se fã incondicional de Paulo (que a agradava com bombons, elogios rasgados à neta), e quantas pessoas houvesse na família também se tornariam: Paulo infundia confiança, exalava simpatia e água de colônia.
Namoraram meio ano, noivaram, contraíram matrimônio no templo, trocaram votos de viverem como eternos namorados; mas não tiveram filhos: não que impedissem, Deus não quis. Melhoraram de vida, Paulo mexeu os pauzinhos e conseguiu colocação para Marta no magistério municipal. Pouco a pouco, ergueram casinha maior, mais confortável em subúrbio pacato; TV, vídeo, geladeira, microondas e outras comodidades da vida moderna compraram pelo crediário. E aqui terminaria a história com final feliz se o diabo não resolvesse interferir. O diabo não gosta de finais felizes.
Paulo era esforçado, vivia fazendo hora extra. Trabalhava no gabinete de vereador da bancada evangélica como misto de segurança e faz-tudo: versátil, consertava automóveis, manjava de eletricidade, pau para toda obra. Infelizmente, tinha de acompanhar o vereador por suas perambulações, ausentava-se amiúde do lar, Marta compreendia, ossos do ofício.
O vereador elegeu-se deputado estadual, e as incumbências de Paulo aumentaram, bem como o ordenado. Paulo não deixava que nada – a não ser sua presença assídua – faltasse no lar. Até um Fusca deu de presente a Marta para ela não precisar penar horas a fio na condução a caminho da escola onde lecionava. Ministrou-lhe as primeiras lições de direção, matriculou-a na auto-escola de um membro da Igreja e, depois, mexeu os pauzinhos lá no Detran para que ela fosse aprovada no exame. Passaram-se décadas, que a vida é assim: quando jovens, o futuro se nos descortina infinito, mas depois cai o véu, o tempo se precipita e, no final, é como se toda a vida tivesse durado um átimo. O deputado estadual elegeu-se deputado federal, Paulo cada vez mais ausente, vivia mais em Brasília do que no Rio de Janeiro.
Até que, um dia, Paulo sumiu de vez. Marta apavorou-se, convicta de que o marido jamais a abandonaria. Passou a noite em claro, ligando pra pronto-socorro, polícia, em vão. No dia seguinte, vizinho compungido veio dar-lhe os pêsames:
– Ué, Paulo morreu? – perguntou Marta incrédula.
– Você não sabia?
– Não. – A crise de choro emudeceu-a.
– Está no jornal. Anúncio fúnebre, quer ver?
Estava lá, Marta viu com os olhos que a terra há de comer. Amigos e familiares comunicavam o falecimento e convidavam para o sepultamento. Que familiares? Paulo sempre afirmara que perdera os pais cedo e era filho único. O féretro sairia da capela 5 do cemitério São João Batista. Tratar-se-ia de homônimo? Só podia – Deus, todo-poderoso, fazei com que seja um homônimo. Para descobrir, só indo lá. Foi. Susto. Era Paulo, mortinho da silva. Como de costume, pessoas choravam. Depois de, a duras penas, conseguir controlar o pranto, Marta dirigiu-se a um deles:
– É seu parente?
– Meu pai. – Marta levou um susto.
– E a mãe, onde está?
– Naquele canto, bebendo o cafezinho.
Posto simpática, sorriso fácil, felizmente não era dotada de beleza de capa de revista, senão correria o risco de cair no gosto do chefe do tráfico local. Ai de quem lhe negasse os favores sexuais! Moça da vizinhança tivera a família chacinada, inclusive a filha pré-adolescente, porque se recusara a ficar com o traficante-mor, sujeito de alta periculosidade. Tivesse sido massacre em escola norte-americana, sairia no JB, Globo, daria no Jornal Nacional, os brasileiros nos comoveríamos, nos preocuparíamos com o "surto absurdo de violência neste final de século" e coisa e tal... mas porque acontecera aqui (ou se acontecesse em Serra Leoa) envolvendo a população mais humilde, ninguém ligava... nem esquerdas, nem direitas, nem parlamentares, nem igreja, nem pastores, nem sindicatos, nem OAB, nem ABI, nem ONGs, nem comissões de direitos humanos... banalizara-se o mal. Um monte de gente se vangloriava de ter resistido contra a ditadura militar, mas cruzava os braços diante da ditadura do banditismo. Onde estariam nossos heróis de outrora? Ninguém esboçava a menor reação. Tais pensamentos cruzavam o cérebro de Marta, moça esclarecida, que, com grande sacrifício, completara o segundo grau e que procurava se instruir lendo jornais, revistas, romances, qualquer texto impresso que lhe caísse às mãos.
Às vezes, quedava-se perplexa diante de tanta maldade no mundo, violência, desamor. Existiria inferno pior do que este? Crianças abandonadas, doentes nos hospitais, loucos em manicômios, assassinos e ladrões espalhando a dor. Como Deus podia omitir-se diante de tanto sofrimento?
Um dia, vizinha convidou-a para corrente da libertação na Igreja da Vida Eterna, uma dessas igrejas evangélicas que pululam país afora. Marta aceitou o convite, meio por curiosidade, meio por não ter o que fazer naquela tarde de domingo, e se impressionou: em vez da lengalenga da missa católica, que freqüentava vez ou outra (e do padre insosso), pastor bem-apessoado, óculos de lentes grossas, terno, gravata, conclamando – voz atroadora de comandante militar em meio à escaramuça – incisivo os fiéis a se revoltarem, a darem um basta à servidão e miséria, a tomarem atitude contra o mal, a buscarem em Deus a solução para os males. Uma revelação como a de Paulo na Estrada de Damasco: Deus não podia ser acusado pelos problemas criados por nós mesmos. O pecado entrara no mundo por causa da desobediência do homem, e o diabo, o inimigo número um, tirava vantagem disso. Xô, Satanás! O pastor proferiu diatribe contra a idolatria, feitiçaria, macumba, folia, luxúria, toda sorte de vícios...
Marta tornou-se frequentadora assídua do templo, participando das correntes, dos encontros de louvor e adoração a Deus. Meses depois, a igreja alugou um ônibus para vigília em famoso estádio. Evento impressionante: estádio lotado, arredores tomados por dezenas de ônibus de várias localidades, altar erguido em pleno campo, enorme cruz de madeira, tapete vermelho ao redor... O líder daquela denominação, bispo de fama nacional, quiçá internacional, perorou sobre o mal que campeava na sociedade e pregou a revolta santa. Aleluia, irmãos!
No ônibus rumo ao encontro, Marta conheceu Paulo, obreiro da igreja havia mais de um ano, temente a Deus, emprego de carteira assinada, moreno-escuro, voz terna que transmitia segurança, braço peludo (detalhe aparentemente irrelevante mas que, de alguma forma, excitava as mulheres), o homem dos sonhos de Marta. Paulo vivera passado negro antes de conhecer a igreja: envolvera-se com drogas e bebidas, frequentava bailes funk, metia-se em brigas contra galeras rivais. Mas Jesus o libertara daquela vida desregrada. Livrou-se dos demônios que o induziam ao vício. Graças a Deus! A avó de Marta tornou-se fã incondicional de Paulo (que a agradava com bombons, elogios rasgados à neta), e quantas pessoas houvesse na família também se tornariam: Paulo infundia confiança, exalava simpatia e água de colônia.
Namoraram meio ano, noivaram, contraíram matrimônio no templo, trocaram votos de viverem como eternos namorados; mas não tiveram filhos: não que impedissem, Deus não quis. Melhoraram de vida, Paulo mexeu os pauzinhos e conseguiu colocação para Marta no magistério municipal. Pouco a pouco, ergueram casinha maior, mais confortável em subúrbio pacato; TV, vídeo, geladeira, microondas e outras comodidades da vida moderna compraram pelo crediário. E aqui terminaria a história com final feliz se o diabo não resolvesse interferir. O diabo não gosta de finais felizes.
Paulo era esforçado, vivia fazendo hora extra. Trabalhava no gabinete de vereador da bancada evangélica como misto de segurança e faz-tudo: versátil, consertava automóveis, manjava de eletricidade, pau para toda obra. Infelizmente, tinha de acompanhar o vereador por suas perambulações, ausentava-se amiúde do lar, Marta compreendia, ossos do ofício.
O vereador elegeu-se deputado estadual, e as incumbências de Paulo aumentaram, bem como o ordenado. Paulo não deixava que nada – a não ser sua presença assídua – faltasse no lar. Até um Fusca deu de presente a Marta para ela não precisar penar horas a fio na condução a caminho da escola onde lecionava. Ministrou-lhe as primeiras lições de direção, matriculou-a na auto-escola de um membro da Igreja e, depois, mexeu os pauzinhos lá no Detran para que ela fosse aprovada no exame. Passaram-se décadas, que a vida é assim: quando jovens, o futuro se nos descortina infinito, mas depois cai o véu, o tempo se precipita e, no final, é como se toda a vida tivesse durado um átimo. O deputado estadual elegeu-se deputado federal, Paulo cada vez mais ausente, vivia mais em Brasília do que no Rio de Janeiro.
Até que, um dia, Paulo sumiu de vez. Marta apavorou-se, convicta de que o marido jamais a abandonaria. Passou a noite em claro, ligando pra pronto-socorro, polícia, em vão. No dia seguinte, vizinho compungido veio dar-lhe os pêsames:
– Ué, Paulo morreu? – perguntou Marta incrédula.
– Você não sabia?
– Não. – A crise de choro emudeceu-a.
– Está no jornal. Anúncio fúnebre, quer ver?
Estava lá, Marta viu com os olhos que a terra há de comer. Amigos e familiares comunicavam o falecimento e convidavam para o sepultamento. Que familiares? Paulo sempre afirmara que perdera os pais cedo e era filho único. O féretro sairia da capela 5 do cemitério São João Batista. Tratar-se-ia de homônimo? Só podia – Deus, todo-poderoso, fazei com que seja um homônimo. Para descobrir, só indo lá. Foi. Susto. Era Paulo, mortinho da silva. Como de costume, pessoas choravam. Depois de, a duras penas, conseguir controlar o pranto, Marta dirigiu-se a um deles:
– É seu parente?
– Meu pai. – Marta levou um susto.
– E a mãe, onde está?
– Naquele canto, bebendo o cafezinho.
Pois é, o diabo não gosta de história com final feliz!
(conto escrito em junho de 1999 e inédito em livro)
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3 comentários:
Texto de qualidade, segundo o autor informa, escrito em 1999. Nele o escritor se apresenta, já, com as qualidades que acabariam se confirmando enquanto dicionarista, bloguista, jornalista, criador e divulgador de Cultura (com C maiúsculo). Nesse conto, especificamente, vê-se que o autor tem o que dizer e o diz de forma clara, com precisão de detalhes que esclarecem quanto à "cor local", com "tons de cinza", porém, sem meias palavras. Ao desenhar as personagens e a cor local, é sobremaneira claro. Sem meias palavras e sem esquivas, dá o tom de um enredo cujo desfecho nos enredo que nos remete a Machado de Assis. Até na "expressão clássica", o autor se mostra machadiano (por que não?), e nos dá de presente um retrato vivo dos tempos atuais. Ivo Koritovsky demonstra ser "um homem de seu tempo" e passa longe de "invencionices" dito avançadas. Da leitura, é possível concluir que Arte e Vida se misturam. Competência para "trabalhar essa mistura" também é Arte.
Texto de qualidade, segundo o autor informa, escrito em 1999. Nele o escritor se apresenta, já, com as qualidades que acabariam se confirmando enquanto dicionarista, bloguista, jornalista, criador e divulgador de Cultura (com C maiúsculo). Nesse conto, especificamente, vê-se que o autor tem o que dizer e o diz de forma clara, com precisão de detalhes que esclarecem quanto à "cor local", com "tons de cinza", porém, sem meias palavras. Ao desenhar as personagens e o ambiente, é sobremaneira claro. Escreve sem meias palavras e sem esquivas, dá o tom de um enredo cujo desfecho nos remete a Machado de Assis.Até na "expressão clássica", o autor se mostra machadiano (por que não?), e nos dá de presente um retrato vivo dos tempos atuais. Com esse conto, Ivo Koritovsky demonstra ser "um homem de seu tempo", passando longe longe de "invencionices" dito avançadas. Da leitura é possível concluir que Arte e Vida se misturam. Competência para "trabalhar essa mistura" também é Arte. Parabéns!
Amigo, desconsidere o primeiro. Não entendo muito dessas "modernidades e, como escrevi direto - como sempre - acabei postando sem ter feito uma única revisão.
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