Li na Time artigo
sobre as consequências totalmente imprevisíveis que podem resultar de um
simples ato. Foi o caso do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando pelo
estudante sérvio Gavrilo Princip, que desencadeou a Primeira Grande Guerra, que
produziu o Tratado de Versalhes, que exasperou um cabo austríaco chamado Adolf
Hitler...
Um ato meu também teve consequências imprevisíveis. Um amor de
Carnaval...
– Pai, compra uma revista.
– Filho, sossega, não vê que estou escrevendo uma história?
...amor de Carnaval, dizia, imprimiu à minha vida um rumo com
que jamais sonhara.
Meu negócio era boemia. Sabia o nome de cada garota das boates
de Copacabana. Roda de pôquer, meu fraco. Varava a noite magnetizado pela dança
das cartas: duplas que bom blefe transformava em full hands; a guerra de nervos quando o adversário sistematicamente
dobrava minha aposta, eu receoso de pagar para ver; a sorte grande, tão
improvável, do royal “street” flush,
as rodadas de fogo...
Numa dessas jogatinas, perdi o salário do mês. Só Deus sabe como
sobrevivi nos trinta dias seguintes: foi o mês mais comprido de minha vida. Na
época, trabalhava como auxiliar em escritório de contabilidade no centro da
cidade. Morava com os pais, tive de lhes pedir dinheiro emprestado, foi um
estrilo geral.
Chegou mais um Carnaval. Os bailes eram meu fraco. Sabia de cor
e salteado tudo que era marchinha: “Alalaô, ooô, ooô...” “Eu fui às touradas de
Madri, paratibum, bum, bum...” Naquele tempo, os sambas de enredo das escolas
de samba ainda não haviam se imposto como a música de carnaval predominante.
Naquele ano, Dalva de Oliveira, com sua voz poderosa, na fronteira do canto
lírico, tomara de assalto os bailes com “Quanto riso, oh, quanta alegria, mais
de mil palhaços no salão...” Eu era um deles. Munira-me de confete,
serpentinas, bisnaga de lança-perfume (não era proibido). Pegava garota para
pular, tirava uns sarros, dispensava, arrumava outra. “Vou beijar-te agora, não
me leve a mal, hoje é Carnaval...” Até que peguei Araci.
Araci era diferente: fantasiada de tirolesa, qual cândida
adolescente. Mas era moreninha de dar água na boca, pele fresca e saudável,
cabelos quase pretos e moderadamente encaracolados de baianinha. Podia ser
estudante de Direito ou empregadinha doméstica, estar disponível ou
comprometida... em baile de Carnaval ninguém é de ninguém e não se fazem
perguntas. Uma coisa sabia ao certo: era cheirosa, a danada. Cheiro de erva
aromática. Dessa não desgrudei, que não sou de jogar fora um tesouro: brincamos
até os últimos acordes da orquestra carnavalesca. Foi aí, já na rua,
acariciados pela aragem da madrugada, que joguei verde pra colher maduro.
– Você tem pra onde ir?
– Não sou daqui, estou em casa de um tio, mas ele bebe tanto que
nem sabe se estou em casa ou na rua.
– Quer vim pra minha casa?
– É muita gentileza sua, não precisa se incomodar.
Incomodar, brincadeira! O problema era que eu morava com os
pais, portugueses de Trás-os-Montes que labutavam na mercearia de sol a sol e
nem um pouco sintonizados com a revolução sexual. A salvação foi que um amigo
que morava sozinho viajara e deixara comigo a chave do quitinete para minhas
eventuais aventuras... Não por amizade desinteressada; eu era boa-pinta,
desenvolto com as mulheres e, às vezes, sobrava pra ele a amiga de alguma
paquera minha.
Fomos pro apê do Alfredo. Estava uma zorra total, cama
desarrumada, guimbas de cigarro espalhadas pelos cinzeiros. Araci fez vista
grossa:
– Você mora aqui? Bonitinho.
– Moro, mas quando for promovido quero mudar para um apartamento
maior.
Foi Carnaval com chave de ouro, um desses sucessos que fazem com
que a vida valha a pena ser vivida. No final, despedimo-nos. Amor de Carnaval
termina na quarta-feira de Cinzas, não se trocam telefone nem endereço. Cada um
pro seu lado, pra sua família, pro seu namorado, marido... sabe-se lá. Esqueci
a gata, descolei outras.
Seis meses depois, Alfredo me telefona aflito:
– Apareceu aqui uma morena que é um tesão. Grávida. Diz que
precisa falar com você de qualquer maneira. Estranhou que você não mora aqui.
– Deixa eu falar com ela.
Era Araci. Engravidara. De mim, jurava de pés juntos. Queria me
ver. Afinal, onde eu morava e por que mentira pra ela? Marcamos num restaurante
próximo.
De barriga, Araci ficara ainda mais apetitosa. Sem muita
convicção, sugeri que tirasse o filho. Araci mostrou-se cheia de dengos:
– Matar o fruto de nosso amor, querido?
Amor? questionei com meus botões. Aquilo não passara de aventura
de Carnaval.
– Olha, bem – respondi – sou muito boêmio. Gosto de varar a
noite em boate, jogo...
– Gosto de você assim mesmo. – Com estas palavras, me desarmou.
Não houve jeito. Araci me enfeitiçou. Maneirei no jogo, aluguei
pequeno apartamento no Méier. Pior foi que meus pais se opuseram, acharam que
eu deveria ser mais seletivo, casar com a filha de algum comerciante da praça,
alguém de boa família. E aquela, uma morena cujos antecedentes eram um
mistério, sabia-se lá se o pai não era bandido cumprindo pena em penitenciária
e com quantos homens já fora para a cama? Magoei-me com essa observação de
papai. Chegamos a cortar relações por algum tempo.
Aí começou vida totalmente nova para mim: comprar bercinho,
chocalho, preparar o enxoval (roupinhas rosas ou azuis? Não sabíamos se
nasceria menino ou menina), escolher o nome. Pior que fazia tudo aquilo com
prazer, parecia que Araci me hipnotizara. A turma do pôquer me telefonava, mas
em vão: meu negócio agora era outro.
Batizamo-lo de Carlos. Nome do tio que criara Araci, órfã de
pai, coitada. Ser mãe é padecer no paraíso, disse o poeta, e eu compartilhei
desse paraíso também. As noites em claro nas mesas de jogo deram lugar a noites
mal dormidas tentando decifrar o porquê daqueles choros lancinantes: embalando
o bebê, trocando fraldas, dando remédio, Araci dando de mamar. Veio o primeiro
banho, a primeira visita ao pediatra, o primeiro passeio no carrinho de bebê, a
primeira vacina (contra paralisia infantil), o batizado na Igreja, os apelidos
carinhosos (o primeiro foi “Totoso”, se não me falha a memória). Um belo dia,
vimos que Totoso já não tinha mais aquele cheirinho gostoso característico dos
bebês: tornara-se monstrinho de oito quilos, esperto, tudo querendo segurar ou
levar à boca. Um dia proferiu: “Babai”. Veio a primeira febrinha, a primeira
prainha, irrompeu o primeiro dentinho, aprendeu a engatinhar, sofreu a primeira
faringite, chegou o primeiro aniversário. Depois as gripes terríveis que
outrora matavam os anjinhos e agora só curáveis com antibióticos (embora sempre
apareça um chato de galochas sustentando que deveríamos ter levado a criança ao
homeopata), as crises de falta de ar no meio da noite, acenando com o espectro
da asma, os quase-acidentes... paraíso! Depois tudo isso passou, e os
acontecimentos se precipitaram: Carlos cresceu, adquiriu resistência às
moléstias, seguiu os bons conselhos do pai e virou torcedor do Flamengo,
aprendeu a ler e viciou-se em histórias em quadrinhos, arrumou a primeira
namorada – puxou ao pai, teve bom gosto, o danado –, viveu a fase do
deslumbramento com o mundo, quase não parava em casa, enchendo Araci e eu de
preocupação, mais adiante redescobriu as alegrias da vida em família,
bacalhoada de domingo, os dias comemorativos...
Trinta anos se passaram desde aquele baile de Carnaval. Hoje é
dia dos pais. Carlos prometeu levar Araci e eu para almoçar em restaurante de
Copacabana. Frutos-do-mar, nosso prato favorito. Quem diria: eu, ex-rei da
noite, Don Juan dos cabarés cariocas, exímio no pôquer, hoje
pacato pai de família (depois de Carlos vieram Ciro e Carla), chefe da
contabilidade na empresa onde comecei como auxiliar. Amarrado na Araci,
raramente pulando a cerca. É bem verdade que não casamos de papel passado, mas:
amasiado com fé, casado é.