BLOG CULTURAL DO TRADUTOR, ESCRITOR, FILÓSOFO E FOTÓGRAFO IVO KORYTOWSKI. SEJA BEM-VINDO E VOLTE SEMPRE!
Marcadores
- Amsterdam
- Angola
- arquitetura
- Arsène Lupin
- Balzac
- Brasil
- contos
- crítica literária
- crônicas
- Deus
- Drummond
- ensaios fotográficos
- frases bem boladas
- futebol
- gatos
- Israel e antissemitismo
- Londres
- Machado de Assis
- maconha
- meu glossário
- meus contos
- meus livros
- minha palestra
- minhas crônicas
- minhas poesias
- minhas traduções
- Monteiro Lobato
- O Anel do Nibelungo
- Paris
- Passaporte para o Paraíso
- Pedro Nava
- poemas & textos mórbidos
- poesia
- poesia traduzida
- Poetas de A a Z
- política brasileira
- resumos de livros
- São Paulo
- Textos e poemas natalinos
- viagens
Morro do Pinto
MONTEIRO LOBATO: O TEMPO E AS INJUSTIÇAS, de HÉLIO BRASIL
MONTEIRO LOBATO FOI RACISTA?
Existe o outro lado da moeda, passagens em que fala depreciativamente dos negros, mas são poucas, numa correspondência que durou quarenta anos. “A minha ideia do porão falhou, porque uma criada ocupa a repartição próxima, e como é preta põe lá um bodum pior que o barulho da sala.” (carta a Godofredo Rangel de 30/7/1910) “A Capital [...] publicou umas tantas infâmias sobre o nosso grande morto [poeta Ricardo Gonçalves], escritas em língua de negra suja” (29/10/1916) “O negrinho aluno está uma pura maravilha; conheço uns tantos desses pretos de pastinha, brancos por dentro, pretos só por fora.” (6/2/1915) Parece absurdo mas na época, assim como alguém pão-duro era chamado de “judeu” (os dicionários consignam este uso, por exemplo, o Houaiss: “pessoa usurária, avarenta”), usava-se a expressão “preto de alma branca” para um negro com características consideradas mais típicas da população branca.
É bem verdade que, em carta de 3/2/1908, quando Lobato tinha 25 anos, existe um trecho na primeira edição fortemente racista, tanto é que foi eliminado das edições subsequentes:
Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas — todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amualatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. [...]
Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!...
Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe”
Por outro lado, Lobato sente uma
afinidade pelo povo. Luta em vão contra a burocracia e a ditadura Vargas para
trazer o ferro e petróleo ao país, modernizando-o. No pós-Segunda Guerra
Mundial, simpatiza com o socialismo soviético, como revela ao repórter Tulman Neto do Diário de São Paulo em entrevista publicada em Prefácios e entrevistas: “O quase certo [...] é a passagem da Ordem Social Capitalista para a Ordem Socialista, mais ou menos como na Rússia.” Em carta de 15 de julho de 1915
para Godofredo Rangel, escreve: “A burguesia não tem alma. Educação e riqueza
são máscaras de desindividualização. Que delícia nadar nas ondas da plebe, como
num mar!... Como Gorki nadava...” Em carta de 7/12/1916, escreve: “O caboclo
parece-me hoje açúcar refinado perto do açúcar preto que são os urupês
citadinos de gravata. Que pulhas!” Carta de 17/4/1917: “A nossa imbecilização é
das mais curiosas: vem de cima para baixo, e decresce quando chega ao povo.
Quanto mais conheço os paredros [=manda-chuvas], mais admiro o equilíbrio, a sensatez, a
sanidade mental destes meus bons caboclos da roça.”
Se fosse verdadeiramente racista,
Lobato não elogiaria nestes termos o mulato Lima Barreto, na época vítima de
preconceito: “Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo
Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este
sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e
coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de
escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua
corda-d’água.” (Carta de 1o de outubro de 1916 a Godofredo
Rangel) Aliás, Monteiro Lobato, à frente da Editora Revista do Brasil, publicou
uma obra de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, um total
fracasso de vendas, que Lobato atribuiu ao título, pouco convidativo.
O primeiro livro que Lobato publicou,
baseado em série de reportagens para O Estado de São Paulo, intitulado O Saci-Pererê:
resultado de um inquérito
(1918), é sobre a lenda do
saci, que depois deu origem a um de seus livros da série infanto-juvenil.
Um escritor racista estrearia em livro com uma lenda da cultura negra?
Por todos esses motivos eu acho um exagero a gente querer tachar o Lobato de racista por ter criado a tia Nastácia da maneira como criou. A própria caracterização dela é ambígua. No livro Histórias de Tia Nastácia ela é a figura principal e, bem no início, observa Pedrinho que “Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.” E pouco depois Pedrinho diz: “As negras velhas são sempre muito sabidas.” Isso é ser racista? É bem verdade que a certa altura do livro (na história “O Macaco, a Onça e o Veado”), quando Nastácia observa que “A sina dos carneiros é a panela”, Emília reage com estas palavras: “Bem se vê que é preta e beiçuda.” Mas Emília é uma boneca insensível, desbocada, que não respeita ninguém. No início de Viagem ao Céu, quando Emília diz que “negra velha não tem direito de repousar”, Pedrinho chama sua atenção: “Malvada! Quem neste sítio tem mais direito de descansar do que ela, que é justamente quem trabalha mais? Então negra velha não é gente?”. E o narrador, Lobato, usa com frequência a designação “a boa negra”. Com seus dotes culinários conquista não só os humanos, mas também São Jorge, o Minotauro e o anjinho da Viagem ao Céu: “Quando eu havia de pensar que até os santos e os anjos haviam de comer os meus bolos fritos?“
Uma ideia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente preto! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio dos raios N, inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes deem pela coisa. (carta de 8 de julho de 1926)
Um romance racista, sim, escrito para uma sociedade então notoriamente racista, imaginando o que aconteceria se a população negra dos Estados Unidos superasse numericamente a população branca. É como se tentássemos imaginar hoje como seria Israel se a população árabe ultrapassasse a judaica. Um exercício de futurologia. Desiludido por não encontrar editor em terras de Tio Sam, Lobato desabafa para Rangel: “Meu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa esse povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” Segundo Edgard Cavalheiro, biógrafo de Lobato, o fracasso deveu-se ao fato de o romance tocar em tema tabu, “falar de corda em casa de enforcado” (Monteiro Lobato, vida e obra, p. 341).
O presidente negro constitui hoje a principal peça de acusação na tentativa de incriminar Lobato como tendo sido racista. Até certo ponto Lobato foi racista, sim. Muita gente boa na época foi racista. Euclides da Cunha foi. A expressão “raça superior” figura quatro vezes em Os Sertões, por exemplo: “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.” (Cap. II, O VAQUEIRO). A intelectualidade era racista como hoje é socialista, e olhem quantas barbáries se cometeram em nome do socialismo!
Querer boicotar Lobato devido ao seu racismo é injustiça cometida contra um homem tão patriota
que, na luta para modernizar o país e implantar as indústrias do petróleo e do
ferro, tirando assim o Jeca Tatu da miséria, entrou em choque com a ditadura
Vargas e foi parar na prisão. Francamente, Monteiro Lobato tem tantas
qualidades e tão poucos defeitos, mas nós, brasileiros, sofremos de “complexo
de vira-lata” e, agraciados
com um escritor de literatura infanto-juvenil da sua magnitude – escritor este
que, se tivesse escrito em inglês, francês ou alemão hoje seria
internacionalmente conhecido, seu Sítio do Picapau Amarelo transformado em
desenhos animados e musicais – em vez de o valorizarmos e de nos orgulharmos
dele, procuramos seus defeitos.
E, last but not least, para dar uma ideia da criatividade de Lobato, transcrevo um diálogo da Emília e Dona Aranha, costureira, em Reinações de Narizinho:
PARA LER OUTRAS POSTAGENS SOBRE LOBATO, CLIQUE NO LABEL "Monteiro Lobato" ABAIXO