O LIVRO DOS FRAGMENTOS, de ANTONIO CARLOS VILLAÇA – UMA RESENHA

 


Ingressar num convento constitui uma escolha de vida radical, que requer uma vocação fora do comum: você abre mão de casar, procriar, ter dinheiro, ter sua casa, seu carro, sua profissão; faz votos, de silêncio, de pobreza, de obediência, e vai em busca do mais esquivo, mais fugidio dos seres: Deus. Entra no mosteiro para nunca mais sair de lá. É raro, improvável a gente deparar com alguém que foi para o mosteiro, virou monge, e aí deu o estalo, não era bem isto que eu queria, e saiu. Até porque deixar um mosteiro imagino que seja complicado, como sair da máfia, do tráfico, eles tentam dissuadir você de sair, imagino. Mas Antonio Carlos Villaça sentiu o chamado da vocação, ingressou no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, não se adaptou lá dentro, foi embora e nos revelou o dia-a-dia, o ramerrão da vida monástica ao dar a lume, em 1970, seu livro que se inscreve entre as obras-primas da literatura memorialística brasileira, O nariz do morto, ombreando com outros grandes autores de memórias como Gilberto Amado, Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Nava.

Entre este ponto alto de sua produção literária e sua derradeira obra, O livro dos fragmentos, publicado postumamente pela Civilização Brasileira graças ao empenho do crítico literário André Seffrin (já que, no final da vida, Villaça, abandonado num asilo de velhos no Caju, sofria de depressão e perdera toda iniciativa), medeiam 35 anos. Digamos que é seu testamento intelectual. É como se dissessevejam, vocês, quem fui, grande ensaísta, pensador católico de renome, conferencista pelos quatro cantos do país... fui a tudo que é palestra, li livros e mais livros, em francês, em português, fui aos enterros das pessoas eminentes, ouvi os discursos dos grandes oradores, privei das mesas mais refinadas, entrevistei o grande MaritainDediquei a vida à reflexão, à leitura, contemplação, convivência, à busca de um sentido para a vida... Em suma, nas suas próprias palavras: “Sou um giróvago. Um itinerante. Um peregrino. Sempre en route. Sempre à procura de novos caminhos, no vasto mundo.”

É como se dissesse estas coisas. Ele que, na reta final da jornada da vida, sofreu dois rudes golpes. Viu o dinheiro do prêmio Machado de Assis ganho em 2003, única quantia polpuda que chegou a obter na sua vida materialmente tão franciscana, bloqueado por uma ação trabalhista movida por um enfermeiro, e viu-se despejado de seu “mirante” na sede do Pen Clube  no nono andar de um prédio da Praia do Flamengo, onde passava o dia na biblioteca recebendo pessoas (tinha sempre alguém o visitando)  e degredado para os confins do asilo lá no Caju, onde quase ninguém mais o visitou. E onde ele definhou.

O livro dos fragmentos é exatamente o que promete o título (não há propaganda enganosa): sucessão de fragmentos de reminiscências, quase um fluxo de consciência joyceano jorrando de sua prodigiosa memória. Reminiscências, na maior parte, da cena intelectual, já que Villaça teve este condão de conviver com a intelectualidade, e os intelectuais gostavam de interagir com ele. Pelo livro vão desfilando escritores, políticos, diplomatas, religiosos, uma procissão. Villaça conheceu todo mundo. Seu aniversário, em restaurantes, atraía uma “multidão”.

Vemos passar pelas páginas (entre muitos, muitos outros): Jaime Ovalle, “boêmio de Deus” (Villaça prima pelas caracterizações sintéticas, precisas), Abade Tomás Keller, “o abade desequilibrado”, André Seffrin, “tão sério, tão estudioso. Tão elite e tão povo, ao mesmo tempo”, Waldir Ribeiro do Val, “que buscou sempre a poesia e a encontrou”, Augusto Frederico Schmidt, “íntimo de ministros, de magnatas, de presidente. E desejoso de ser apenas um mendigo”, José Lins do Rego, que “tinha paixão pelo Flamengo”, Cyro dos Anjos, “o melhor anfitrião do mundo”, Marco Lucchesi, “um humanista, um erudito, um sábio renascentista”, o talentoso Edmílson Caminha, etc. etc. etc.

Villaça é um exímio cultor do estilo modernista da frase curta, sem esparramação, como bem observa Seffrin no texto das orelhas (“linguagem solta, leve, à vontade, quase telegráfica”). Escreve com lirismo, com sentimento, com coração, num (segundo Edgard Leite) estilo muito particular de frases curtas que era muito bonito de se ler, muito difícil de ser imitado, porque tinha uma métrica, uma melodia, um movimento muito próprio. A certa altura, atinge o paradoxo: O erótico é profundamente místico. Nada mais religioso do que um prostíbulo. O prostíbulo me lembra um convento. Encerro esta apreciação de O livro dos fragmentos com um belo trecho onde Villaça descreve o mar (porque eu também gosto de sentir a presença marinha, o contato da água salgada):

Mar desconhecido, mar sempre desconhecido.

É sempre novo, o mar. O mar é estranho. O mar é desafiador. Abyssus abyssum invocat. O abismo atrai o abismo. Mar abissal. Mar sempre novo. mar que me assusta. E ali está ele, o mar. Pertinho de mim. O mar poderoso, o mar violento, o mar insaciável. O mar que se move sempre. Vai e vem, enigmático.

Vi o Mediterrâneo. Vi o Atlântico. Vi o Pacífico. Vi o mar. E agora o revejo, o mar, o mar desconhecido, o mar da Praia de Leste, sempre novo. [...]

Vejo o mar. Em silêncio. Da minha varanda, da minha poltrona, vejo o mar tão perto. Ele me fala, noite e dia. À noite, ouço a voz do mar, o ruído surdo e envolvente do mar, o rugido do mar. O mar nos fala. O mar nos chama. [...] (pp. 117-118)

Texto de Ivo Korytowski

Um comentário:

Anônimo disse...

O mar de Praia de Leste refere-se a um seminário ocorrido no litoral do Paraná promovido pelo extinto Banco do Estado do Paraná. Foi uma honra ter conhecido o Sr. Villaça, assim como a atriz Nathalia Timberg