O MERCADOR DE VENEZA (SHAKESPEARE) E O ANTISSEMITISMO
O, that estates, degrees and offices
Were not deriv'd corruptly, and that clear honor
Were purchased by the merit of the wearer!
How many then should cover that stand bare!
How many be commanded that command!
Shakespeare, The Merchant of Venice
Em português, na tradução de Carlos Alberto Nunes:
Se os estados, ofícios, posições não fossem dados por maneira corrupta, e as honrarias só fossem conquistadas pelo mérito, quantas pessoas que andam descobertas, a cabeça cobririam! Quanta gente que hoje é mandada, assumiria o mando.
Os nazistas
adoravam O Mercador de Veneza: entre 1933 e 1939, a peça foi montada
mais de cinquenta vezes na Alemanha nazista. Péssimo sinal. Meu pai adorava O
Mercador de Veneza, gostava de mencionar sua história. Ótimo sinal.
Shylock interpretado por Henry Urwick em pintura de Walter Chamberlain da coleção da Royal Shakespeare Company
Antonio, o mercador de Veneza, é o protagonista da peça, mas quem se sobressai é seu antagonista, o judeu Shylock. Ele reflete o estereótipo negativo que a Europa, após séculos de pregação antijudaica por parte da Igreja, formou do judeu. Estereótipo que também vemos no personagem judeu Fagin, do romance Oliver Twist de Dickens, e no usurário e banqueiro Gobseck, “filho de uma judia e de um holandês”, do romance homônimo de Honoré de Balzac.
Ator Ron Moody como Fagin
O próprio Shakespeare nunca deve ter visto um judeu na sua frente, já que estes foram expulsos da Inglaterra por decreto real do rei Eduardo I em 1290 e só foram readmitidos no país por Cromwell mais de 350 anos depois, em 1657. Assim como foram expulsos da Espanha em 1492 e de Portugal em 1496. Com a expulsão os reis tentavam forçar sua conversão ao catolicismo, mas muitos judeus preferiam procurar refúgio num país islâmico a abjurar sua fé. Sim, o mundo dá voltas. Naquela época, os judeus eram muito melhor acolhidos entre os muçulmanos, que segundo a tradição descendem do mesmo patriarca dos judeus: Abraão.
Gobseck no filme russo homônimo de Preben J. Rist de 1924
Qual a grande
culpa dos judeus para serem tão execrados no mundo cristão, sofrendo uma
perseguição sistemática que culminou com a tentativa de extirpá-los da face da
terra durante o odioso regime nazista que envergonha a raça humana? Era a culpa
coletiva, transmitida de pai para filho, pela morte de Jesus Cristo. Essa culpa
coletiva, com base em Mateus 27:25 – “O seu sangue caia sobre nós e sobre
nossos filhos” – foi doutrina oficial da Igreja até meados do século XX. Eu
mesmo cheguei a ouvir na escola, quando algum colega ficava sabendo que eu era
judeu, o comentário de que “o judeu matou Cristo”. Assim, durante quase dois milênios,
a história dos judeus é uma saga de errância, coagidos de tempo em tempo e de local para
local a emigrar em consequência das restrições, expulsões, pogrons (ataques
violentos), tudo isso culminando no trágico e absurdo Holocausto da era nazista.
O judeu errante em representação nazista
Na peça de Shakespeare essa doutrina da transmissão da culpa de uma geração para a outra se reflete quando o bufão Lancelote Gobo diz que “the sins of the father are to be laid upon the children = os pecados do pai devem recair sobre os filhos” (Ato III, Cena V). Ele está se dirigindo à filha do judeu, que reconhece a culpabilidade ao responder que “I shall be saved by my husband; he hath made me a Christian = Serei salva por meu marido; ele me tornou cristã.”
Qual é a história de O Mercador de Veneza? Vou tentar contar de forma resumida e sem revelar o final. Mas antes, uma reminiscência. No meu tempo de adolescente, quando passava um filme baseado numa obra clássica, digamos, de Shakespeare, antes da gente ir ver o filme, meu pai, que conhecia toda a literatura inglesa, alemã, francesa, punha-se a contar a história. Quando chegava perto do final, a gente pedia, “não conta o final pra não tirar a surpresa”, e ele respondia, “mas este é um clássico, todo mundo sabe o final”, e a gente replicava, “mas nós não sabemos”, mas meu pai, empolgado, continuava contando, e eu e meu irmão mais velho tapávamos os ouvidos ou começávamos a fazer ruído para não ouvir. Pois eu não vou repetir a mania do meu pai, não vou contar o final.
Lynn Collins como Pórcia na versão cinematográfica de Radford
Quem dá título
à história é Antônio, um mercador rico. Seu amigo Bassânio pretende viajar a
Belmonte para conquistar a mão da formosa e rica herdeira Pórcia. Só que Pórcia não
pode escolher livremente seu marido, ela tem que acatar a ordem deixada por seu
pai, antes de morrer, de se casar com quem conseguisse, dentre três escrínios
ou cofres (depende da tradução, em inglês são three caskets), um de
ouro, outro de prata, o terceiro de chumbo, escolher aquele que contém seu
retrato. O cofre de ouro traz a inscrição “Quem me escolher ganha o que muitos
querem”, o de prata, “Quem me escolher, ganha o que bem merece”, e o de chumbo,
“Quem me escolher, arrisca e dá o que tem”. Até agora todos os pretendentes que
tentaram a sorte erraram de cofre, e nenhum
deles agradou à donzela. Pois bem, Bassânio precisa de dinheiro para fazer a
viagem até Belmonte e impressionar a deslumbrante moça, mas Antônio está sem
disponibilidade de caixa, toda sua grana está aplicada em mercadorias que
comprou em diferentes partes do mundo e que estão a caminho de Veneza. Naquele
tempo, Veneza, uma república, era uma potência comercial. Então Antônio vai
pedir dinheiro emprestado ao judeu. Este de início reclama que Antônio sempre o
tratou mal, sempre o desprezou por ser judeu, mas acaba concordando em conceder
o empréstimo dos 3 mil ducados. E tem mais: não vai nem cobrar juros. Mas tem
um senão: se no dia do vencimento Antônio não devolver o dinheiro, como
penalidade terá que fornecer ao judeu uma libra de sua própria carne, retirada
da parte do corpo que o judeu escolher. Ele acha que não corre nenhum risco, que seus navios com as
mercadorias chegarão incólumes, e o empréstimo será reembolsado. Só que o
destino prega uma peça no mercador: os navios com as mercadorias naufragam, e o
judeu exige o cumprimento do contrato. E o resto você vai ter que ler a peça
para saber.
A história central, do empréstimo, não é original de Shakespeare. Baseia-se em “Il Gianetto”, da coletânea de cinquenta histórias, Il Pecorone (O Simplório), de Giovanni Fiorentino, no estilo do Decameron de Boccacio, que Shakespeare teve a oportunidade de ler na tradução de William Painter. Mas o bardo pega uma simples história e transforma num texto de grande poeticidade e impacto, assim como, digamos, um compositor pega um tema singelo do folclore e transforma num movimento de uma sinfonia.
Veneza por Canaletto
Veneza na época contava com uma considerável colônia judaica. O termo gueto (ghetto em italiano) teve lá sua origem, designando o bairro onde os judeus tinham que se confinar nas horas noturnas.
Se você for
ler a peça no original inglês, estará lendo um texto escrito mais de 400 anos
atrás. Ou seja, escrito num inglês bem diferente do atual. O Mercador de
Veneza foi escrito menos de trinta anos depois de Camões escrever Os
Lusíadas. Você sabe que ler Os Lusíadas não é para qualquer um.
Aliás, só conheço uma pessoa que leu na íntegra, o Alexei Bueno. Eu mesmo nunca li. O brasileiro
quando tem que ler Machado de Assis na escola, um autor que morreu pouco mais
de cem anos atrás, já reclama, já acha o texto arcaico. Então como é que os
ingleses (e norte-americanos) leem com tanta facilidade as peças do
Shakespeare? Ou se não leem, assistem no cinema, pois não são poucas as filmagens, com
grande sucesso de público, de peças shakespeareanas. Talvez o sistema escolar
inglês e norte-americano familiarize os estudantes com a linguagem de Shakespeare.
Não sei, estou chutando. O que sei é que eu, tradutor aposentado, que no
decorrer de 35 anos traduzi 193 livros do idioma de Shakespeare para o idioma
de Camões, não tenho a mesma facilidade em ler um texto do bardo que tenho em
ler uma reportagem na BBC.
Primeiro, Shakespeare não escreve em prosa, escreve
(na maior parte do tempo, com algumas exceções) em versos quase sempre sem
rima, mas seguindo uma métrica rigorosa. Ele usa o chamado pentâmetro jâmbico,
que é um verso decassilábico, composto de cinco pares de sílabas, uma átona e a
outra tônica. Por exemplo:
How sweet/ the moon/light sleeps/ upon/ this bank!
Here will/ we sit/ and let/ the sounds/ of music
Creep in/ our ears:/ soft still/ness and/ the night
Become/ the
tou/ches of/ sweet har/mony.
Como fazer
para destrinchar o texto de Shakespeare? Eis a questão. O texto contém provérbios antigos,
palavras propositadamente erradas (ditas por personagens cômicos), palavras que
na época de Shakespeare tinham um sentido diferente do atual, formas de grafar arcaicas, frases que para
se encaixar na métrica ficam difíceis +de entender, etc. Eu pessoalmente, na
leitura de O Mercador de Veneza, lancei mão de cinco ferramentas
disponíveis na Internet:
1) O texto
original clássico acompanhado de uma tradução para o inglês contemporâneo -
https://www.sparknotes.com/nofear/shakespeare/merchant/
2) O texto
original clássico acompanhado de notas explicativas -
https://shakespeare-navigators.com/merchant/MerchantText11.html
3) Um
dicionário Webster de 1828, que ainda registra significados que hoje são
considerados arcaísmos - http://webstersdictionary1828.com/
4) A tradução
de Carlos Alberto Nunes, a mais fiel ao texto original, reproduzindo inclusive
a métrica, cujo pdf pode ser baixado do site Shakespeare Brasileiro -
https://shakespearebrasileiro.org/pecas/
5) A tradução
de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, em prosa, abandonando a
métrica, num bonita edição de capa dura da editora Abril de uma coleção que era
vendida em bancas de jornal.
E você conta
com uma ferramenta adicional com a qual eu não contei: meu próprio dicionário
eletrônico inglês-português para tradutores, que eu fui construindo no decorrer
de três décadas trabalhando como tradutor. Nele cadastrei não só a terminologia
dos livros que traduzi, mas também dos livros que li. O download é gratuito. O link: https://sites.google.com/site/livrosdeivokorytowski/ivo-korytowski-s-english-portuguese-translator-s-dictionary
Primeira edição da obra
Finalmente, a pergunta que não quer calar: O Mercador de Veneza é uma peça antissemita? Embora o título da primeira edição da obra em 1600 – The most excellent Historie of the Merchant of Venice. With the extreme cruelty of Shylock the Jew towards the said Merchant, in cutting a just pound of his flesh, and the obtaining of Portia by the choice of three chests; em português, A magnífica história do mercador de Veneza. Com a extrema crueldade de Shylock, o judeu, para com o dito mercador, em cortar uma libra exata de sua carne, e a conquista de Pórcia pela escolha entre três arcas–acuse o judeu de crueldade, se você lê a peça vê que ela mostra os dois lados da moeda. O judeu como um personagem mesquinho, alvo de chacotas, por um lado, mas também como uma vítima da sociedade. Ele é chamado de faithless Jew, judeu incrédulo, villain Jew, judeu vilão, the dog Jew, judeu cachorro, etc. Shylock deixa claro que, se quer vingança contra Antonio, é porque aprendeu a se vingar com os cristãos (The villany you teach me, I will execute = Hei de pôr em prática a maldade que me ensinastes). Afinal, Antonio “me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos.” Sua própria filha, Jéssica, tem vergonha do pai e foge de casa, levando uma arca de joias, inclusive o anel que Shylock guardava como lembrança da falecida esposa, para se casar com um cristão. A defesa de Shylock, em que diz que (parafraseando Tom Jobim) “no peito de um judeu também bate um coração” é um dos trechos mais belos da obra, senão vejamos:
Al Pacino como Shylock
I am a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge? If we are like you in the rest, we will resemble you in that.
Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquece e refresca os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar nos? Sim em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito.
Quando o duque pede a Shylock que tenha misericórdia de Antonio, o judeu denuncia a hipocrisia dos cristãos e diz que, se estes abrirem mão dos seus escravos e os libertarem, ele, Shylock, abrirá mão da multa devida por Antônio. (Ato IV, Cena I: You have among you many a purchased slave, Which like your asses and your dogs and mules, You use in abject and in slavish parts, Because you bought them = Possuís muitos escravos, que como asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços empregais vis e abjetos, sob a escusa de os haverdes comprado.) O judeu tem tanto ressentimento dos cristãos que preferiria que sua filha casasse com alguém da raça do bandido Barrabás a casar-se com um cristão: I have a daughter; Would any of the stock of Barrabas / Had been her husband rather than a Christian! = Tenho uma filha; mas preferiria que ela casasse com um dos descendentes de Barrabás, a vê-la desposada com um desses cristãos.
Caricatura de um judeu de Praga, gravura em cobre de Elias Bäck do início do século XVII
As montagens da peça pelos nazistas claro que procuravam desumanizar o judeu, apresentá-lo como um ser desprezível, o bode expiatório para todos os males. Já a versão cinematográfica de Michael Radford de 2004 mostra Shylock, em magnífica interpretação de Al Pacino, como vítima de uma sociedade intolerante. Os autores de grandes clássicos têm essa característica, suas obras não são preto no branco, são matizadas, permitem infinitas leituras, tanto é que vivem sendo reencenadas, refilmadas, reinterpretadas, relidas.
Caymmi disse que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”. Na peça Lorenzo diz algo parecido: “The man that hath no music in himself, Nor is not moved with concord of sweet sounds, Is fit for treasons, stratagems, and spoils; The motions of his spirit are dull as night, And his affections dark as Erebus = O homem que música em si mesmo não traz, nem se comove ante a harmonia de agradável toada, é inclinado a traições, tão-só, e a roubos, e a todo estratagema, de sentidos obtusos como a noite e sentimentos tão escuros quanto o Érebo.” (Ato V, Cena I)
Shakespeare na National Portrait Gallery, Londres
O Mercador de
Veneza está classificada entre as comédias de Shakespeare, junto com A
Tempestade e Sonho de Uma Noite de Verão, mas na verdade é uma
mescla de tragédia e comédia, uma tragicomédia. O núcleo da história, o embate
entre o usurário judeu e o mercador cristão, é trágico, mas em torno desse
núcleo orbitam três histórias de amor com finais felizes, como é próprio das
comédias clássicas: de Bassânio por Pórcia, de Graciano por Nerissa e de
Lorenzo (Lourenço) por Jéssica. Além disso, a peça tem um personagem
eminentemente bufão, Lancelote Gobo; os pretendentes à mão de Pórcia, antes da
chegada de Bassânio em Belmonte, são ridículos; e os anéis de que Bassânio e
Graciano juraram jamais se desfazer dão margem a uma série de brincadeiras
maldosas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário