2024: CENTENÁRIO DA MORTE DE FRANZ KAFKA, AUTOR ESSENCIAL DO SÉCULO XX

Entrevista concedida por Cyro de Mattos à repórter Elis Freire, do Caderno 2 do jornal A Tarde


 

Repórter de A Tarde - Qual a sua trajetória de pesquisa e leitura das obras de Kafka?

Cyro de Mattos - Já vai longe o tempo em que eu era um jovem leitor voraz de autores universais.  Entre os intelectuais de Salvador de Bahia, se ouvia falar de Kafka, mas poucos tinham lido algo produzido pelo escritor judeu nascido em Praga. Como os de minha geração, tentava ler o mundo através das notícias trazidas pelos livros. As obras de Kafka não chegavam às livrarias baianas e brasileiras. Um dia procurei o livreiro Dermeval, dono da Livraria Civilização, amigo de Jorge Amado, e fui falar com ele do meu desejo de possuir as Obras Completas de Kafka.  Estava ávido para conhecer o genial fundador do realismo do absurdo, de quem até então só tinha conhecimento vago através da novela A Metamorfose.

Quem primeiro falou-me da grandeza literária do escritor judeu foi Carlos Falk, o guru de minha geração, que era chamada Geração Revista da Bahia, em razão de um grupo de intelectuais jovens que vinha marcando presença nas páginas da revista homônima com os seus primeiros escritos. Tempos depois, as Obras Completas de Kafka, das Edições EMECÊ, de Buenos Aires, finalmente passavam a ter um lugar de destaque na pequena biblioteca do moço universitário.  

     Aos poucos comecei a entrar em contato com o criador da ficção do ilógico, um ficcionista revolucionário na ideia e na forma. Os intelectuais de sua época em Praga achavam que Kafka era aquele jovem estranho, de voz rouca e fraca. Um autor que gostava de escrever histórias sobre insetos. Tive dificuldade no início para entender Kafka. Procurei estudar sobre sua obra para perceber a grandeza de sua revolução na literatura ocidental. Sem pressa fui absorvendo as suas construções do absurdo, penetrando na atmosfera sombria em que vivia o personagem soterrado pelas mãos do destino, sem poder fugir da solidão, que o acompanhava sempre.  O livro Cronistas do Absurdo, de Leo Gilson Ribeiro, foi um excelente guia para que pudesse conhecer os meandros de uma ficção complicada, difícil de ser absorvida.  

Fui separando, fazendo releituras, sem pressa, para melhor conhecer aqueles textos de ficção diferente, de essência alegórica, com uma linguagem descritiva aparentemente realista, e, ao mesmo tempo, com um discurso simbólico, que exige um leitor crítico para a sua compreensão.  Passei a saber de sua maneira de auscultar a solidão, a opressão impassível, cruel e impiedosa, seguidas vezes, quase sem fim na existência. Acostumado com o seu discurso ímpar, tornei-me admirador de um gênio na arte da escrita, de fecundo imaginário calcado nas zonas do sonho. Assim fui me tornando íntimo da grandeza de um autor dono de um legado avançado, sábio inventor na forma intrincada de expor o drama do que não tem sentido.   

 

Repórter - No seu livro Kafka, Faulkner, Borges e outras solidões imaginadas, você reflete, dentre outras coisas, sobre a construção simbólica dos personagens destes três autores. Qual a contribuição de Kafka você enxerga em relação a isso?

 

CM - O personagem em Kafka sempre se mostra como um autômato, um ser inferior prisioneiro dentro de um sistema mecanizado. O ser-estar desse personagem não corresponde a uma sequência lógica expressa através de panoramas humanos lineares. Do ponto de vista da lógica comum, o assunto desenvolvido torna-se cada vez mais absurdo e inexplicável. Do ponto de vista da razão mágica é impressionante a ruptura que o autor empreende no ideário sentimental do romantismo e na fotografia da vida captada pelo discurso naturalista.   

 

Repórter - Para relembrar o trabalho do autor checo que completou 100 anos de morte este ano, qual obra você destacaria e por quê?

 

CMA Metamorfose, O Processo e todos os seus contos.  Porque, como em geral, nesse processo de imaginar o mundo com a sua incoerência tudo ressoa de maneira instigante no plano do absurdo. É uma forma nova de narrar a vida com suas imperfeições, impossibilidades. E, nessa nova construção de produzir o real pior do que é, o resultado onírico prevalece como efeito. Nessa tessitura romanesca de narrar o absurdo do viver não são adotados recursos da estrutura presa à forma romântica ou realista do dizer as questões do mundo. É alegórica sua perspectiva na compreensão dissimulada das fraquezas humanas. É transcendental a palavra simbólica empregada para organizar sensações e percepções, no intuito de conferir outras dimensões da vida e assim através de uma linguagem avançada chegar perto de Deus.

 

Repórter - Como você enxerga a contribuição de Kafka para as artes e a cultura internacionalmente?

 

CM – Soberba.  Como em Pessoa, que aboliu o eu lírico em tom confessional, pelo reflexivo, em Kafka encontramos o domínio mais alto do saber literário criativo localizado num plano mais abstrato, atemporal, em que a ideia predomina como síntese do conteúdo e da forma. A ficção de Kafka não é a da condição humana proveniente da revolta humanista, da inquietação espiritual, da problemática existencialista no interior do indivíduo, da impregnação surrealista e erótica, da linguagem experimentalista como na técnica fragmentária de Joyce, que põe em questão as convenções tradicionais da narrativa e que na ruptura radical e caudalosa da estrutura linguística adere aos mitos da vida. Nem tampouco é a do psicologismo de Proust em busca do tempo perdido.  É mais do que isso. É a ficção do romance e da história breve que funde a narrativa da realidade num plano todo irreal. Suas visões e concatenações da inteligência desenvolvidas com uma linguagem mítica rotulam uma realidade subterrânea, que dá significação ao absurdo da existência como ainda não havia acontecido, e com a qual a crítica especializada não estava preparada para recebê-la no plano adiantado da escritura.  

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