Entrevista concedida por Cyro de Mattos à repórter Elis Freire, do Caderno 2 do jornal A Tarde
Repórter de A Tarde - Qual a sua trajetória de pesquisa e
leitura das obras de Kafka?
Cyro
de Mattos - Já vai longe o tempo em que eu era um jovem leitor voraz de autores
universais. Entre os intelectuais de
Salvador de Bahia, se ouvia falar de Kafka, mas poucos tinham lido algo
produzido pelo escritor judeu nascido em Praga. Como os de minha geração,
tentava ler o mundo através das notícias trazidas pelos livros. As obras de
Kafka não chegavam às livrarias baianas e brasileiras. Um dia procurei o
livreiro Dermeval, dono da Livraria Civilização, amigo de Jorge Amado, e fui falar
com ele do meu desejo de possuir as Obras Completas de Kafka. Estava ávido para conhecer o genial fundador
do realismo do absurdo, de quem até então só tinha conhecimento vago através da
novela A Metamorfose.
Quem primeiro falou-me da grandeza literária do
escritor judeu foi Carlos Falk, o guru de minha geração, que era chamada
Geração Revista da Bahia, em razão de um grupo de intelectuais jovens que vinha
marcando presença nas páginas da revista homônima com os seus primeiros
escritos. Tempos depois, as Obras Completas de Kafka, das Edições EMECÊ,
de Buenos Aires, finalmente passavam a ter um lugar de destaque na pequena
biblioteca do moço universitário.
Aos
poucos comecei a entrar em contato com o criador da ficção do ilógico, um ficcionista
revolucionário na ideia e na forma. Os intelectuais de sua época em Praga
achavam que Kafka era aquele jovem estranho, de voz rouca e fraca. Um autor que
gostava de escrever histórias sobre insetos. Tive dificuldade no início para entender
Kafka. Procurei estudar sobre sua obra para perceber a grandeza de sua revolução
na literatura ocidental. Sem pressa fui absorvendo as suas construções do
absurdo, penetrando na atmosfera sombria em que vivia o personagem soterrado
pelas mãos do destino, sem poder fugir da solidão, que o acompanhava sempre. O livro Cronistas do Absurdo, de Leo
Gilson Ribeiro, foi um excelente guia para que pudesse conhecer os meandros de
uma ficção complicada, difícil de ser absorvida.
Fui separando, fazendo
releituras, sem pressa, para melhor conhecer aqueles textos de ficção
diferente, de essência alegórica, com uma linguagem descritiva aparentemente
realista, e, ao mesmo tempo, com um discurso simbólico, que exige um leitor
crítico para a sua compreensão. Passei a
saber de sua maneira de auscultar a solidão, a opressão impassível, cruel e
impiedosa, seguidas vezes, quase sem fim na existência. Acostumado com o seu
discurso ímpar, tornei-me admirador de um gênio na arte da escrita, de fecundo
imaginário calcado nas zonas do sonho. Assim fui me tornando íntimo da grandeza
de um autor dono de um legado avançado, sábio inventor na forma intrincada de
expor o drama do que não tem sentido.
Repórter - No seu livro Kafka, Faulkner,
Borges e outras solidões imaginadas, você reflete, dentre outras coisas, sobre
a construção simbólica dos personagens destes três autores. Qual a contribuição
de Kafka você enxerga em relação a isso?
CM - O
personagem em Kafka sempre se mostra como um autômato, um ser inferior
prisioneiro dentro de um sistema mecanizado. O ser-estar desse personagem não
corresponde a uma sequência lógica expressa através de panoramas humanos lineares.
Do ponto de vista da lógica comum, o assunto desenvolvido torna-se cada vez
mais absurdo e inexplicável. Do ponto de vista da razão mágica é impressionante
a ruptura que o autor empreende no ideário sentimental do romantismo e na
fotografia da vida captada pelo discurso naturalista.
Repórter
- Para relembrar o trabalho do autor checo que completou 100 anos de morte este
ano, qual obra você destacaria e por quê?
CM - A
Metamorfose, O Processo e todos os seus contos. Porque, como em geral, nesse processo de
imaginar o mundo com a sua incoerência tudo ressoa de maneira instigante no
plano do absurdo. É uma forma nova de narrar a vida com suas imperfeições,
impossibilidades. E, nessa nova construção de produzir o real pior do que é, o
resultado onírico prevalece como efeito. Nessa tessitura romanesca de narrar o
absurdo do viver não são adotados recursos da estrutura presa à forma romântica
ou realista do dizer as questões do mundo. É alegórica sua perspectiva na
compreensão dissimulada das fraquezas humanas. É transcendental a palavra
simbólica empregada para organizar sensações e percepções, no intuito de
conferir outras dimensões da vida e assim através de uma linguagem avançada chegar
perto de Deus.
Repórter - Como você enxerga a contribuição de Kafka para
as artes e a cultura internacionalmente?
CM – Soberba.
Como em Pessoa, que aboliu o eu lírico em tom confessional, pelo
reflexivo, em Kafka encontramos o domínio mais alto do saber literário criativo
localizado num plano mais abstrato, atemporal, em que a ideia predomina como
síntese do conteúdo e da forma. A ficção de Kafka não é a da condição humana
proveniente da revolta humanista, da inquietação espiritual, da problemática
existencialista no interior do indivíduo, da impregnação surrealista e erótica,
da linguagem experimentalista como na técnica fragmentária de Joyce, que põe em
questão as convenções tradicionais da narrativa e que na ruptura radical e
caudalosa da estrutura linguística adere aos mitos da vida. Nem tampouco é a do
psicologismo de Proust em busca do tempo perdido. É mais do que isso. É a ficção do romance e
da história breve que funde a narrativa da realidade num plano todo irreal.
Suas visões e concatenações da inteligência desenvolvidas com uma linguagem mítica
rotulam uma realidade subterrânea, que dá significação ao absurdo da existência
como ainda não havia acontecido, e com a qual a crítica especializada não
estava preparada para recebê-la no plano adiantado da escritura.
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