NUTRIÇÃO DA BARATA EM QUE SE METAMORFOSEOU (SEGUNDO FRANZ KAFKA) O INFELIZ GREGOR SANSA, de Helio Brasil


Açúcares, provenientes do mel que escorre das línguas ferinas. Em doses generosas, para que nada se perca da maledicência. O sal é tão indispensável quanto o ar que envenena a alma. Deve ser sorvido aos poucos, saboreado nas intrigas e acompanhado dos ruídos que as chuvas produzem nas ruínas dos telhados. As melancólicas gorduras esmaecidas que escorrem dos livros jamais abertos devem ser ingeridas a cada dois pares de tristezas. A carne pendente da ferrugem dos tendais servirá a novo repasto, desde que os vermes habitantes façam um juramento – tão eterno quanto passageiro – de dispensarem os sinistros temperos do amor. Legumes e verduras serão vistos com reservas. Nutrirão desde que as lesmas coladas em suas folhas, hastes e talos adquiram o ocre das verdades irrefutáveis. Os vinhos, só serão sorvidos após triturados em pequenos coágulos indecifráveis, coados e prontos para agradar aos cães famintos. O pão sempre será o pão desfeito. Desfeito do trigo que não foi ceifado. Ceifado, morto e sepultado. Sepultado e posto junto ao leito em que jamais arquejou um ser amado.

          Helio Brasil - outubro 2004

QUANDO A NOITE VEM, de Ana Lia Vianna Ambrosio



Quando a noite vem — mais uma jornada que se foi, levando um pouco de mim e a eterna incerteza do amanhã. Respiro fundo, recuperando energia, brisa, ânimo, para um novo tempo. Namoro as primeiras estrelas a despontarem no mesmo céu de antes, tão exigente e mau, frente aos meus tímidos passos. Quando a tarde cai.

Quando vem a noite — relaxo ao som natural das enluaradas canções e causos, que espelham o itinerante caminho reinventado a cada momento. Retorno, alívio, à morada ilusória dos sonhos recuperados após imensas travessias: doloroso não possuir abrigo, acalanto, nem amigos. Quando cai a tarde.

Triste é viver na solidão...

Quando a noite vem — meus olhos palpitam incessantes, enternecem rasgos de generosidade bem como os de egoísmo. Salvos pelo valente príncipe que habita corações e cativeiros: vizinhos no paraíso? Nas verdes matas, nas profundezas dos arquipélagos, nas colisões do dia-a-dia. Quando a tarde cai.

Quando vem a noite — de mansinho recolho imponderáveis rastros espalhados por onde andei. Fagulhas perpetuam andanças e andanças: mergulhadas nos poemas a ti dedicados, repletos de rimas, mel, métricas. Certeiro o pêndulo, oscilando sob o marulho das tristes ondas, mas curioso no olhar. Meu. Quando cai a tarde.

Triste é viver na solidão...

E se a noite não vier? Falhar ao fim do derradeiro ato? Esperança, onde andarás? Nas asas de um fiel pássaro de fogo? Adormeço qual um anjo, aguardando... Quando a noite vem.

Ana Lia Vianna Ambrosio, durante anos minha colega na Oficina Literária do Professor Ivan Proença, foi uma das melhores escritoras brasileiras de prosa poética dos últimos tempos. Texto inédito, gentilmente cedido pela autora, que faleceu alguns anos atrás. Outra crônica sua pode ser lida no meu blog Literatura & Rio de Janeiro.

DELÍRIOS NA SELVA, de Nelson Motta


O mais bonito dos surrealistas, nos anos 20, era que eles não queriam apenas mudar a arte, mas a vida. Salvador Dali, Buñuel, Breton, Man Ray, Duchamp, a linguagem dos sonhos e dos pesadelos, imagens do inconsciente — novas visões de corpo e alma. Mudou a arte, sem dúvida, mas o ser humano...

Da mesma forma, mas sem a mesma graça, a ambição dos comunistas cubanos nos anos 60 era não só o igualitarismo e a sociedade sem classes, mas a criação do "novo homem cubano", e a nova mulher, por supuesto. Ético, patriota, disciplinado, consciente, politizado, justo, solidário, boa saúde, bons dentes, estudado, este novo ser surgiria como o fruto final da Revolução. Como diria Copélia, não a famosa sorveteria cubana mas a de "toma lá dá cá", prefiro não comentar.

No desmantelamento da União Soviética, a Rússia e outras repúblicas socialistas que aderiram ao capitalismo se tornaram, porque já eram antes, alguns dos países mais corruptos do mercado livre. Claro, eram os antigos "novos homens", formados na burocracia estatal corrupta e infiltrados em toda a sociedade, criando uma cleptocracia.

Os sonhos do Fórum Social Mundial são mais modestos, apenas a transformação do mundo. O problema é que são muitas as aproximações, e contradições, entre um novo mundo que eles creem possível e um mundo velho que já se provou impossível e desmoronou com o Muro de Berlim.

Outro problema comum a surrealistas, comunistas e foristas é a confusão entre ideais, sonhos e delírios, que sempre acabam custando caro para os que eles querem "libertar".

Do tempo dos surrealistas e da revolução cubana o mundo melhorou muito, pela ação de homens e mulheres de boa vontade, mas o ser humano, não sei não... Está para nascer sistema político ou econômico capaz de criar, além de um mundo novo, um novo homem.

Ou talvez o "novo homem" dos velhos comunas só exista mesmo na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, que investiram fundo na social democracia, criaram prosperidade e distribuíram riqueza e educação, criando condições para uma forma mais civilizada de viver. Embora chatíssima, para padrões latino-americanos.

Crônica publicada originalmente no jornal O Globo de 30/1/09. Foto: obra do pintor surrealista russo Evghenie Gordiets obtida de um PPS que circulou na Internet.