Deus escreve certo por linhas tortas.
Após demoradas tratativas, envolvendo profetas, santos e sábios, enfim consegui marcar a entrevista com o Todo-poderoso — de que maneira, não posso revelar. Combinamos no Monte Sinai, no mesmo local onde Ele entregou as tábuas da lei a Moisés. Direito a sarça ardente, coluna de nuvens, coluna de fogo e outros sinais divinos: nada extraordinários comparados aos efeitos especiais dos filmes de hoje.
Selecionar as perguntas, um desafio mesmo para jornalista experiente como eu, acostumado a entrevistar celebridades como Fidel Castro e o papa João Paulo II. A entrevista não poderia se prolongar excessivamente: a agenda divina está lotadíssima. Minha cabeça fervilhava de questões: desde o problema metafísico fundamental “por que o ser, e não simplesmente o nada?”, passando pela questão da teodicéia (a razão das doenças e catástrofes naturais), até temas melindrosos, como o porquê de Deus ministrar os milagres tão homeopaticamente (à semelhança dos bons Ministros da Fazenda, igualmente avaros em liberar os recursos). Sem falar na curiosidade natural de se o Brasil vai se classificar pra Copa do Japão — Deus não é onisciente?
Antes de mais nada, tinha de resolver o problema protocolar: como me dirigir ao Criador? O dicionário recomendava a segunda pessoa do plural, tratamento dispensado a um santo, ou à própria divindade (vide Aurélio). Mas — fique entre nós — temi enrolar-me na conjugação dos verbos (vós gostaríeis, vós amáveis...), de sorte que acabei optando pelo tratamento concedido aos Papas — por sinal, é só lembrar a entrevista com o papa João Paulo II).
Para quebrar o gelo, comecei abordando um tema light:
— Sabia que na Terra contam piadas de Vossa Santidade? Por acaso isso contraria o mandamento de não tomar vosso santo nome em vão?
— Se os fundamentalistas tivessem um pouquinho mais de senso de humor, ou se os humoristas não teimassem em ser ateus, Eu estaria bem melhor representado na Terra — filosofou Deus. — Conte uma dessas piadas!
Se Deus é onisciente, já deve conhecer todas elas, mesmo as que nunca foram contadas, pensei. Cacete, Deus deve ter lido meu pensamento, pensei logo em seguida. Rapidinho, pus-me a contar a piada do português que fez longa viagem ao ultramar. Ao retornar, um ano depois, deparou com Maria grávida. Estranhou, mas Maria, matreira, forjou uma desculpa: a gravidez resultara das cartas apaixonadas que ele remetera do ultramar. Manel acreditou na lorota. Mas no fundo d'alma, subsistiu pitada de dúvida. Passaram-se os anos. Um belo dia, Manel morreu e viu-se frente a frente com o Criador. Aí resolver aclarar aquela velha dúvida. Contou pra Deus a história da gravidez de Maria, e perguntou:
— Você que é Deus e sabe tudo: é possível engravidar assim à distância?
Deus sorriu e disse:
— Pois comigo aconteceu ainda pior. Sem que eu arredasse pé aqui do Céu, fui arrumar um filho lá na Terra. E, ainda por cima, a mãe era virgem!!!
O Sinai chegou a tremer com o estrondo da gargalhada divina. Aproveitei o bom humor do Criador pra entrar de sola nas perguntas mais delicadas:
— Vossa Santidade criou realmente o universo? Quem tem razão: os cientistas ou a Bíblia?
— Os dois. O universo físico é obra de Meu planejamento.
— Então (com todo o respeito) os vírus, o cocô, as baratas também são obra de Vosso planejamento?
— Quando você acorda de manhã cedo, planeja cada passo, cada segundo do dia? Não, planeja as linhas gerais, mas dá chance ao acaso. Assim procedi com o universo. Deixei isto claro na Bíblia, ou será que não me fiz entender?
— Como assim?
— No sétimo dia, descansei: retirei-me do universo, deixando-o entregue às leis e ao acaso.
A explicação divina tinha lá sua lógica, embora eu estranhasse que nunca ocorresse a ninguém esta interpretação. Aproveitei a solicitude divina para fazer outra pergunta controversa:
— Por que Vossa Santidade não interfere mais na História humana, não se manifesta mais às pessoas, como nos tempos bíblicos. Decepcionou-se com a humanidade?
— Pelo contrário...
— Mesmo depois de tantas chacinas, Babi Yar, Hiroshima, Serra Leoa, Vigário Geral...?
Em recente viagem à Ucrânia para cobrir o desmantelamento das ogivas nucleares, alguém me levou a Babi Yar, nos arredores de Kiev. “Lá não há lápides, uma escarpa íngreme serve de rude sepultura”, diz um poema de Yevtushenko. Lá, em um só dia, os nazistas fuzilaram cem mil civis judeus — um Maracanã. Por mais de uma semana, aquele massacre não me saiu da cabeça. “Como Deus permitiu aquilo?”, pensava.
— Se você tem uma coleção de moedas — respondeu Deus — com uma ou outra bela moeda de ouro e prata, raríssimas, em meio a várias moedas mais comuns, de níquel, cobre, alumínio, mas igualmente belas, e algumas moedas danificadas também, deixará de se orgulhar da coleção como um todo? Enquanto a humanidade produzir um Mozart, uma Madre Teresa, um Einstein, me orgulharei de minha “coleção de moedas”, apesar das moedas danificadas.
Preferiria coleção só de moedas de ouro e prata, mas... Peguei do bolso da camisa um papelzinho dobrado onde anotara a próxima pergunta.
— Por que Vossa Santidade envia sinais ambíguos à humanidade? Elege os judeus Seu povo escolhido para, depois, mediante o sacrifício de Cristo, estender a aliança a toda a humanidade, abandonando os judeus à própria sorte (e como sofreram!)? E quando a humanidade enfim se convenceu de que o Cristianismo era, por assim dizer, a religião verdadeira, vem Maomé e muda tudo de novo. Cá entre nós: os hospícios estão cheios de loucos que se dizem Seu enviado. Por que Vossa Santidade não aparece de uma vez por todas pra toda a humanidade e proclama, alto e bom som, as regras do jogo? Eu sou Deus, uno (ou trino, ou múltiplo...) criador dos céus e da terra, a religião correta é a ou b ou c, e ai dos ímpios ateus... arderão todos nas chamas do inferno!
— Regras do jogo: você está querendo que a humanidade vire um bando de formiguinhas, que há milhões de anos repetem diariamente as mesmas coisas, segundo regras praticamente imutáveis?
Deus sempre dá um jeito de escapar pela tangente, pensei lá com meus botões. Mas como diz o ditado: Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Resolvi encerrar a entrevista com chave de ouro, abordando tema que há milênios intriga o ser humano.
— Afinal, a alma é ou não imortal? Segundo os espíritas, que sentido faria Vossa Santidade criar um ser tão complexo e aprimorado (capaz de compor sonetos e desvendar a estrutura da matéria) para, decorridas algumas décadas, ele se desfazer em nada? Mas pode-se ver a coisa de outro ângulo: por que dar imortalidade a um ser tão violento, tão frágil, tão cruel (capaz de cometer o massacre de Babi Yar) como o ser humano? O que acontece conosco depois que morremos?
— Quer descobrir? — perguntou Deus, sorridente.
— Quero — respondi automaticamente, sem medir as conseqüências de minhas palavras.
Deus tem mesmo senso de humor — humor negro! Nunca mais retornei do Sinai, e meu corpo jamais foi encontrado. Pena que a humanidade não tomará conhecimento desta minha entrevista.
(Do meu livro de contos e crônicas Édipo.)
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