QUANDO E POR QUE A MACONHA FOI PROIBIDA NO BRASIL?

PESQUISA E ARTIGO DE IVO KORYTOWSKI
Revista da Semana, 14/12/1935

O Artigo 2o do Decreto-Lei No 891 de 25 de novembro de 1938 proibiu “o plantio, a cultura, a colheita e a exploração” no território nacional das “plantas de que se possam extrair as substâncias entorpecentes”, entre elas o “cânhamo ‘Cannibis sativa’ e sua variedade ‘indica’ (Moraceae) (Cânhamo da Índia, Maconha, Meconha, Diamba, Liamba e outras denominações vulgares)”.

Quer dizer que antes de 1938 a maconha estava totalmente liberada? Não exatamente. Vejamos o histórico da proibição gradual das drogas no Brasil.

Até a virada do século XIX para o XX drogas como ópio, cocaína e maconha costumavam ser vendidas livremente no Brasil ou no mundo, com poucas exceções. Uma delas foi um postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro de 4 de outubro de 1830 proibindo a venda e o uso de Pango [maconha], bem como a conservação dele em casas públicas; os contraventores serão multados, a saber:  o vendedor em 20$000 e os escravos e mais pessoas que dela usarem em 3 dias de cadeia.Aparentemente esta proibição não pegou, já que o Diário do Rio de Janeiro publicou na página 4 da edição de 21 de março de 1849 o anúncio de um leilão de copos lapidados e moldados, garrafas para vinho, espelhos grandes e pequenos etc. com a seguinte observação final: Na mesma ocasião será vendido [sic] uma porção de fumo pango americano, etc.

Dois personagens famosos, um real e o outro fictício, fizeram uso da cocaína: Sigmund Freud (durante um período de sua vida, com fins experimentais) e Sherlock Holmes! Em A alma encantadora das ruas, Paulo Barreto (vulgo João do Rio) descreve uma visita a uma casa de ópio frequentada pelos “chins” (chineses) no Beco dos Ferreiros, bairro da Misericórdia, centro do Rio.

“A população desse beco mora em magotes em cada quarto e pendura a roupa lavada em bambus nas janelas, de modo que a gente tem a perene impressão de chitas festivas a flamular no alto. Há portas de hospedarias sempre fechadas, linhas de fachadas tombando, e a miséria besunta de sujo e de gordura as antigas pinturas. Um cheiro nauseabundo paira nessa ruela desconhecida.”
“O no 19 do Beco dos Ferreiros é a visão oriental das lôbregas bodegas de Xangai.”
“A custo, os nossos olhos acostumam-se à escuridão, acompanham a candelária de luzes até ao fim, até uma alta parede encardida, e descobrem em cada mesa um cachimbo grande e um corpo amarelo, nu da cintura para cima, corpo que se levanta assustado, contorcionando os braços moles. Há chins magros, chins gordos, de cabelo branco, de caras despeladas, chins trigueiros, com a pele cor de manga, chins cor de oca, chins com a amarelidão da cera nos círios.”

Assim era o submundo do ópio no Rio de Janeiro antes da proibição. Também o escritor Benjamim Costallat, em Mistérios do Rio, dedica um capítulo, “Os Fumantes da Morte”, a essa droga.

Se o ópio era a droga do submundo chinês, a cocaína era droga glamourosa, sofisticada. Escreve Costallat no capítulo “No Bairro da Cocaína” dessa mesma obra: Nos clubs, nas alcovas da horizontais [meretrizes], nos cafés noturnos, nas pensões chics, toda a Lapa e toda a Glória tomam cocaína em suas noites lúbricas e inquietas.” Finalmente a maconha, conhecida então como diamba, era a droga dos índios, negros e sertanejos, ou seja, dos excluídos. Em O Paiz de 27 de abril de 1929 lemos:

[...] no Brasil se encontram, por exemplo, as [espécies] conhecidas por “diamba” e “maconha”, usadas outrora pelos índios autóctones e pelos negros importados [escravos], os quais, todos, se prevaleciam dos efeitos aparentemente maravilhosos dessas plantas para consolidar o prestígio das “pajelanças” e “mandingas”Em diversos pontos do sertão brasileiro vingou o hábito de tais narcóticos, assimilado definitivamente pelas populações mestiças, que muita vez lhes sacrificam a geral predileção pelas bebias à base de álcool. E não será difícil a quem penetre o nosso interior verificar em homens rudes, mas desfibrados, caquéticos, semi-idiotas, com qualquer coisa de espectral, a inconfundível sintomatologia dos toxicômanos. Mas até há bem pouco esse veículo de um dos maiores flagelos modernos ainda não tinha invadido os meios urbanos [...]
No quarto volume de suas memórias, Beira-Mar, Pedro Nava conta como era fácil comprar cocaína em Belo Horizonte em 1921: "Nesses tempos, anteriores à fiscalização dos tóxicos, era fácil e ostensivo. Os moços nem desceram [do carro]. Gritaram para os caixeiros. Vamos, depressa, uma garrafa de éter, um pacote de algodão e dois bonecos de cocaína. E chisparam por baixo dos fícus, demandando a estrada subúrbio com seu luar de prata e a nevasca das prises [=dose de cocaína] geladas. Tempo aquele..." (pág. 8 da edição da Nova Fronteira)

A Cruzada do século XX contra as drogas tem sua origem na Convenção Internacional sobre o Ópio, organizada pela Liga das Nações, em Haia, no ano de 1912. A Convenção fez menção também à morfina e cocaína. Na revisão da Convenção, em 1925, da qual participou o Brasil, a resina do cânhamo e os preparados que têm essa resina como base, como o haxixe e diamba (maconha), foram incluídos.

A primeira lei brasileira visando o controle de entorpecentes é o Decreto 4294 de 6 de julho de 1921, que “estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados; cria um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substancias venenosas; estabelece as formas de processo e julgamento e manda abrir os créditos necessários.” Se por um lado o decreto procura restringir o abuso do álcool, não faz qualquer referência à maconha. O Art. 1o  proíbe vender ou ministrar substâncias venenosas, entre elas entorpecentes como o ópio e derivados e cocaína e derivados, “sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”. Ou seja, o usuário não é criminalizado e a proibição não é absoluta.

Em 1928 chegou a ser enviado ao Congresso um projeto de lei de iniciativa de Clementino Fraga endurecendo o controle aos entorpecentes, mas encalhou no Senado, em discussões intermináveis, e acabou não sendo promulgado, como podemos ler em edições antigas de jornais da época.

O passo seguinte na proibição das “drogas” é o Decreto 20.930 de 11 de janeiro de 1932 que “fiscaliza o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes, regula a sua entrada no país de acordo com a solicitação do Comitê Central Permanente do Ópio da Liga das Nações, e estabelece penas”. Esse decreto passa a incluir a "canabis indica" (planta da maconha) na lista de substâncias tóxicas e proíbe “fabricar, importar, exportar, reexportar, vender, trocar, ceder, expor ou ter para um desses fins” substâncias tóxicas entorpecentes sem “licença especial da autoridade sanitária competente, em conformidade com os dispositivos deste decreto” (pena: 1 a 5 anos de prisão). De novo, o usuário não é criminalizado e a proibição não é absoluta.

O terceiro passo na proibição é o Decreto-Lei 891 de 25 de novembro de 1938, “Lei de Fiscalização de Entorpecentes”, que proíbe o “plantio, a cultura, a colheita e a exploração” em território nacional da "Cannibis sativa" e sua variedade "indica", exceto "para fins terapêuticos", "desde que haja parecer favorável da Comissão Nacional de Fiscalização do Entorpecentes". A proibição ainda não é absoluta e o usuário continua não sendo criminalizado, mas a proibição do plantio é um divisor de águas na legislação antimaconha.

Em 1940 o novo Código Penal, em vigor até hoje, criminaliza o tráfico de drogas no artigo 281, famoso pela citação em canção de Bezerra da Silva. Em 4 de novembro de 1964, quando o regime militar ainda engatilhava, o artigo passa a criminalizar também a posse: “Plantar, importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo, substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de dois a dez mil cruzeiros.

Com o elevado preço social da guerra contra o tráfico, sem vitória à vista, e o incrível poder financeiro do tráfico que chega a dominar territórios, neles impondo sua “ditadura”, talvez esteja na hora de superarmos velhos preconceitos e seguirmos o exemplo da Holanda, Uruguai e alguns estados norte-americanos, liberando a maconha, com restrições e controles, como ocorre com o tabaco. O poder de fogo do tráfico certamente se reduziria.


Anúncio de fuga de escravo "fumador de pango" no Diário do Rio de Janeiro de 2 de agosto de 1833.


Matéria em O Globo de 23 de agosto de 1930 sobre a chegada ao mercado carioca de uma erva de origem africana, chamada diamba (também conhecida como “maconha”), vendida nos herbanários e que chegou aos presídios, “que leva ao sonho, à loucura e à morte”. 

Matéria em O Globo de 14 de outubro de 1930 mencionando o estudo pioneiro do Dr. Rodrigues Doria sobre o problema social do vício de fumar 'maconha' ou 'diamba'.


Matéria publicada em O Globo de 7 de dezembro de 1956

PS. QUEM GLAMOURIZOU A MACONHA, FAZENDO COM QUE DEIXASSE DE SER "DROGA DE POBRE", FOI O MOVIMENTO HIPPIE, DO QUAL EU, O EDITOR DO BLOG, PARTICIPEI NOS ANOS 1970. VEJA MEU VÍDEO SOBRE O LIVRO HIPPIE DE PAULO COELHO.

MASSADA, UMA CANUDOS PARA OS JUDEUS, de EDMÍLSON CAMINHA


A camioneta cruza o deserto da Judeia a pequena distância do Mar Morto, aproxima-se do oásis de Ein Gedi e, 18 quilômetros à frente, chega a um enorme platô com 400 metros de altitude, onde se ergueu, antes de Cristo, a célebre fortificação militar de Massada (nome que significa exatamente fortaleza, em hebraico). Nela, Herodes, o Grande, que reinou no começo da era cristã, mandou construir um palácio, para o que reforçou e ampliou o forte. Em 66 d.C., um comando judeu assaltou e conquistou a cidadela, início de uma das páginas que engrandecem a história desse povo. Para que se guarde sempre o que houve ali, a Unesco declarou Massada, em 2001, patrimônio cultural da humanidade.

Atualmente, sobe-se ao topo de funicular, o que faço com a lembrança do que sobre o episódio conta Érico Veríssimo no seu Israel em abril. No ano 70, retomada Jerusalém pelos romanos, o governador Flavius Silva ordena que se dê combate aos 967 judeus – homens, mulheres e crianças – reunidos em Massada sob o comando de Eliezer Ben Jair. Com estoques de água e comida para uma longa sobrevivência na solidão das alturas, os judeus resistem por dois anos ao cerco de dez mil soldados, até que têm de escolher entre a derrota e a dignidade, a rendição e a honra, como narra o escritor gaúcho e também se pode ver em Massada, filme de Boris Sagal, com Peter O’Toole no papel do general romano. Conscientes de que já não há o que fazer, decidem os judeus não dar aos inimigos o gosto da vitória, e cumprem o pacto que lhes propõe o comandante, como diz Érico: “Cada um deles liquidou com as próprias mãos sua mulher e seus filhos. Depois amontoaram as coisas que possuíam e atearam-lhes fogo. Dez deles foram sorteados para executar os demais companheiros. Cada homem deitou-se ao lado do cadáver da esposa e dos filhos, abraçou-se com eles e ofereceu a garganta aos executores. Os dez sobreviventes então liquidaram-se entre si: o nono matou o décimo, o oitavo matou o nono e assim por diante, até que restou um único homem no topo de Massada. E essa personagem de tragédia grega se pôs a vaguear por entre os corpos, para verificar se em algum deles restava ainda algum vestígio de vida, caso em que ela lhe daria o golpe de misericórdia. Terminada a horrenda missão, o sobrevivente incendiou o palácio da fortaleza e por fim suicidou-se, tombando ao lado dos membros de sua família.” 

Em outra versão conta-se que, transpostos os muros, encontraram os romanos duas mulheres e cinco crianças, como, em 1897, os cinco sobreviventes de Canudos, “na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”, cena grandiosa com que Euclides arremata a epopeia de Os sertões. Para Érico Veríssimo, a nova geração de judeus, já nascida em território israelense, vê Massada como exemplo a seguir: “Os jovens sabras, que desde o estabelecimento do Estado de Israel se têm revelado tão bons soldados, aprendendo a usar o fuzil, a metralhadora e o canhão para se defenderem de seus inimigos, não compreendem que os judeus da Europa se tenham deixado humilhar, torturar e matar nos campos de concentração de Hitler, sem o menor gesto de revolta, numa passividade de cordeiros. Os sobreviventes desses massacres tentam explicar que qualquer resistência teria sido não só impossível como também inútil. Replicam os sabras: ‘Morrer por morrer, é sempre melhor morrer lutando e matando do que chorando e rezando.’ Estas palavras até certo ponto caracterizam o espírito do judeu novo de Israel.”

Como Canudos, Massada não se rendeu, com o que Eliezer Ben Jair deu ao exército invasor a mais amarga das lições, a mais decepcionante das vitórias. Assim também Antônio Conselheiro, pertencentes, os dois, à grande espécie de homens para quem é a morte, muitas vezes, o mais digno, o mais elevado, o mais belo e o mais glorioso triunfo.

Capítulo do excelente livro de crônicas de viagem Com a mala na cabeça. Para mais informações clique aqui.