OK, antes que me acusem de denegrir a imagem de nossa Cidade Maravilhosa, reconheço: meu irmão sofreu assalto a mão armada em pleno metrô de Nova York; eu mesmo tive a bolsa, passaporte e tudo, roubada dentro de trem parado em estação a caminho de Cuzco; e conheço quem foi roubado por ciganos em Roma. Mas bandidos empunhando armas pesadas, privativas do exército, fuzis AR-15, granadas em tempos de paz? Se isso acontecesse em outro país (em Berna, imaginemos!), no dia seguinte, o Ministro do Interior teria de explicar à população como tais armas vieram parar ilegalmente no país — se já não tivesse sido demitido pelo Presidente.
Em crônica anterior (Tiroteios cariocas), mencionei episódio de bala perdida no tempo de Machado de Assis. Atropelamentos também já achei em sua obra. Mas assaltos, nunca. Pelo contrário, no conto Um erradio, Elisário caminha, após o teatro, altas horas da noite, a pé do centro da cidade até São Cristóvão. “Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos (atual rua da Constituição). Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o campo da Aclamação (atual Praça da República), enfiou pela Rua de São Pedro (atual Avenida Presidente Vargas) e meteu-se pelo Aterrado acima... Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo.” Hoje, quem se atreveria a fazer esse percurso a essas desoras?
Anos atrás, ainda adolescente, eu voltava de noitada não lembro mais onde, sonolento, no banco de trás de ônibus quase vazio. Naquele tempo, eu ainda fumava. Rapaz (meio maltrapilho) sentou-se ao meu lado e puxou conversa:
— Me arranja um cigarro?
Foi a chance de praticar a boa ação do dia. E, serviço completo, empunhei o isqueiro e acendi o cigarro do companheiro de viagem.
— Cara, estou duro — confessou o rapaz maltrapilho. — Tem dez cruzeiros pra me arrumar?
De tão cansado, tão sonolento, eu mal conseguia raciocinar (se conseguisse, decerto pensaria: “cara de pau, vá trabalhar, vagabundo, se quiser ganhar dinheiro!”) Quase maquinalmente, abri a carteira e retirei nota de dez, daquelas com a efígie do Getúlio Vargas (quem ainda se lembra?). Como o ônibus custava doze, perguntei:
— Você tem mais dois pra inteirar a passagem?
De repente, o meliante confessa a má intenção.
— Cara, fica na tua. Estou armado, sentei aqui pra te assaltar. Mas você não é rico, não está com muita grana...
Eu disfarçava o tremor (após noitada de birita com cigarros, a gente treme à toa). Mal consegui balbuciar:
— Pouquinho.
Tempos bicudos, tempos de estudante, dinheiro sempre contadinho. Ao que o malfeitor arrematou com chave de ouro:
— Sabe de uma coisa? Você foi legal comigo, não vou mais assaltar você. — E, de um salto, sumiu pela porta de trás do ônibus.
Gostaria de terminar meu relato com uma digressão. Antigamente, acreditávamos no mito do bom ladrão: o ladrão crucificado ao lado de Jesus, Robin Hood, Lampião. Mas hoje em dia, os bandidos se tornaram tão violentos e cruéis — pelo mínimo gesto que possam interpretar como reação, vão logo atirando, barbarizando, assassinando — que, por mais “piedosos” que sejamos, no íntimo gostaríamos de vê-los todos linchados. Mas imaginemos que esse ladrão com quem topei no ônibus naquele início de manhã tenha sido o divisor de águas: quem sabe, o último dos bons ladrões?
(Arte no alto da página de Maytê, em cujo portal Maytê Website esta crônica foi originalmente publicada. Para ler outras crônicas minhas clique no label "minhas crônicas" abaixo.)
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