DICA DE LIVRO: EM ALTO MAR, de EDMONDO DE AMICIS


Entre 1880 e 1914, quase quinze milhões de italianos emigraram, o equivalente a metade da população do país na virada do século. Apesar da amplitude do fenômeno, poucos autores nacionais escreveram sobre o tema. Entre eles figura Edmondo De Amicis (1846-1908), hoje reconhecido como um dos maiores escritores da península. Repórter, militante pacifista e testemunha atenta da Itália unificada, ele foi enviado em 1884 por seu editor à América do Sul para uma turnê de palestras. A travessia é um choque para ele e irá desempenhar um papel importante na sua adesão ao socialismo: embora viaje na primeira classe, ele descobriu a miséria dos emigrantes e, na promiscuidade imposta do navio, as desigualdades terríveis da jovem nação. Verdadeiro entomologista a bordo, sabendo mesclar humor e realismo em seus retratos de burgueses e pessoas humildes, bem como na descrição das peripécias da viagem, esse grande admirador de Zola levará cinco anos para escrever o primeiro exemplo bem-sucedido de romance-reportagem. (Texto obtido no site das Éditions Payot & Rivage, traduzido para o português pelo editor do blog.)

A obra foi publicada pela primeira vez no Brasil em 2017, em edição primorosa, de capa dura, com o título Em Alto-Mar, pela Nova Alexandria em coedição com o Istituto Italiano di Cultura, e tradução, curadoria e notas de Adriana Marcolini. Uma outra tradução em língua portuguesa, integrando a tese de mestrado de Regina Celia da Silva, pode ser acessada na Internet (aqui). A seguir trechos selecionados, pela beleza estilística e descritiva, dessa obra-prima da literatura de viagem.

Embarque de italianos para o Brasil, 1910. Fonte: site do Museu da Imigração.

Sensação agradável no início da viagem (p.33)
Mas eu não me entediava: uma sensação me enchia a alma, nova e agradabilíssima, que não se pode ter em nenhum lugar, em nenhuma condição no mundo, a não ser em um navio que atravesse o oceano: a sensação de uma total liberdade de espírito. Em poucas palavras, eu poderia afirmar: durante vinte dias estou separado do universo habitado, estou certo de não ver outros semelhantes a não ser aqueles que estão à minha volta, que para mim são todo o gênero humano; durante vinte dias estou livre de qualquer dever e de qualquer obrigação social, e estou seguro de que nenhum sofrimento do mundo exterior me atingirá porque nenhuma notícia de lugar nenhum pode me alcançar. A Europa pode se sublevar, eu não o saberei. Vinte dias de horizonte sem limite, de meditação sem chateações, de paz sem temor, de ócio sem remorso.

Visão infinita das águas (p. 91)
Diante daquela visão infinita das águas que não revela nenhum vestígio do homem nem do tempo, o objetivo da nossa viagem, os nossos interesses, o nosso país, tudo nos parece tão longe, confuso, pequeno, insignificante! E pensar que três dias antes de partir ficamos magoados com a despedida fria de um conhecido encontrado na rua Barbaroux... Que lástima! Agora aquelas lembranças parecem recordações de outra existência que vêm à tona apenas um momento, e em seguida despencam; se afogam naquele abismo enorme que se nos abre abaixo e à nossa volta. E nos abandonamos ao mar a bordo de um navio imaginário que navega e navega sem parar, para além das últimas terras [...]

Tempestade em alto-mar (pp. 237-8)
Lembro-me da imensa voz do mar, mais estranha e mais formidável do que a mais assustadora fantasia, uma voz que parecia a de toda a humanidade enlouquecida e comprimida que estivesse aos berros, que se mesclava com os rugidos e os bramidos de todas as feras da terra, com os estrondos de cidades em ruínas, os urros de inúmeros exércitos, as explosões de risadas irônicas de povos inteiros, e dentro daquela voz, o assobio estridente do vento nos cordames, um redemoinho de notas longas, ruidosas e desencontradas, como se cada corda fosse um instrumento tocado por um demônio, gritos de desespero e de delírio que pareciam vir dos prisioneiros de um cárcere em chamas, e sibilos que faziam tremer como se em volta das antenas se enroscassem milhares de cobras furiosas. Toda vez que a ponta do navio era empurrada com força para a água, a embarcação começava a balançar violentamente de um lado para o outro, a ponto de dar a impressão de que quisesse tombar ora para um costado ora para outro, e a cada batida da onda no costado, tudo tremia, do convés à quilha, como se chocasse em um arrecife ou em outro navio, e as tábuas ao redor produziam um ruído de arrepiar da cabeça aos pés, como o estampido de uma bala ou de uma lâmina de machado que passa rente às nossas têmporas.

Um dia de cão (pp. 218-20)
Se for verdade que em toda longa viagem marítima exista algo como “um dia de cão”, em que tudo dá errado e o navio vira um inferno, creio que o Galileo teve o seu. [...]

Subi para o convés, onde estavam quase todos os passageiros: todos tinham rostos de quem tivesse passado a noite em colchões com pregos. As antipatias recíprocas tinham atingido aquele limite que separa o silêncio desprezível da injúria declarada. Tropeçavam uns nos outros sem se cumprimentarem. A própria “domadora”, que havia vários dias vivia em uma espécie de efervescência de amor maternal por todos, mantinha-se afastada; via-se que estava abatida como se no seu coração lhe revolvesse todo o licor Chartreuse da sua despensa secreta. O genovês veio ao meu encontro com uma cara sinistra, e fixando-me no rosto com o seu único olho, disse com uma cara zangada: – O senhor sabe o que há de novo esta manhã?... Nada de gelo! A máquina quebrou e o marinheiro cortou a mão! [...] O meu vizinho de cabine, apoiado no mastro da mezena, também estava mais transtornado do que o normal. No rosto e na roupa mostrava todos os sinais de que tinha passado a noite no convés para não ser torturado lá embaixo pela sua tirana. Até mesmo os recém-casados, sentados um ao lado do outro em um sofá de ferro, tinham uma expressão adormecida, e estavam mudos como se pela primeira vez estivessem cansados e irritados com aquela cama apertada em que havia três semanas eram obrigados a estudar o espanhol.

Terceira classe, 1907. Foto: A. Stieglitz. Fonte: Site do Museu da Imigração

Chegada na América (p.264)

Que agradável despertar! Aquelas palavras “hoje sentiremos a terra debaixo dos pés”, nas quais se expressava o pensamento de todos, tinham para nós um som e uma força novos, e ao repeti-las sentia-se uma espécie de prazer físico, como aquele que se tem ao abraçar uma coluna de granito. Além de outras razões, também se desejava impacientemente chegar por esta, pois ao final de uma longa navegação já nos sentimos cansados e irritados a ponto de não aguentar mais aquela perpétua dança de limites, aquela necessidade incessante de se encolher, de se encurvar e contorcer a que estamos obrigados pela falta de espaço, e aquele eterno cheiro de salsugem, de alcatrão e de madeira. Que alegria será ver novamente as ruas, respirar o aroma do campo, e dormir entre quatro paredes, sem mais sentir que a casa que nos acolhe tem uma palpitação de vida própria, da qual depende a nossa!

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