A PELE DO SOLDADO, ROMANCE HISTÓRICO DE HELIO BRASIL

 


A guerra, um fenômeno deplorável que, desde que Caim matou Abel, acompanha a marcha da humanidade sobre este planeta, inspirou grandiosas obras de literatura: a Ilíada, sobre a Guerra de Troia, Guerra e paz, sobre a invasão napoleônica da Rússia, as longas páginas de Os miseráveis e A cartuxa de Parma descrevendo a Batalha de Waterloo, E o vento levou... sobre a guerra civil norte-americana, Nada de novo no front, sobre a Primeira Guerra Mundial... No Brasil, tivemos a obra magna de Euclides da Cunha acerca da Guerra de Canudos (uma espécie de guerra de extermínio do Estado contra um grupo de destituídos fanáticos), Os sertões, segundo o poeta e ensaísta Alexei Bueno uma das duas epopeias em prosa da literatura brasileira – a outra é Grande Sertão, Veredas. E o romance machadiano romântico Iaiá Garcia (à semelhança deste primeiro romance histórico de Helio Brasil) transcorre tendo por pano de fundo a Guerra do Paraguai.

Assim como existem escritores prematuros, que desabrocham na tenra juventude – o exemplo quintessencial são os poetas românticos, todos mortos jovens: Álvares de Azevedo com 20 anos, Casimiro de Abreu com 21, Junqueira Freire com 22, Castro Alves com 24, Fagundes Varela com 33 e Gonçalves Dias com 41 – existem os escritores de maturidade que, após uma vida dedicada a uma atividade profissional “normal”, viram escritores: caso do médico, mais tarde memorialista, Pedro Nava, do delegado de polícia, mais tarde escritor policial, Joaquim Nogueira (com dois livros excelentes publicados pela Companhia das Letras, recomendo), e do arquiteto, mais tarde (após um rito de passagem pela oficina literária do mestre Ivan Proença, que assina o Posfácio da obra aqui em pauta) escritor, Helio Brasil.

Helio Brasil celebrizou-se como o “escritor de São Cristóvão”, bairro carioca histórico, que abrigou o palácio primeiro real e depois imperial, onde Helio cresceu. São de Helio Brasil dois magníficos romances protagonizados nesse bairro em dois períodos diferentes da história republicana brasileira: A última adolescência, cenas do cotidiano, ora trágicas, ora cômicas (ora tragicômicas) dos moradores de uma típica vila de casas carioca nos anos finais do Estado Novo, e Ladeira do Tempo-Foi, romance dramático que tem como fulcro uma ladeira imaginária do bairro, conforme lemos no verbete sobre Helio da Wikipédia criado pelo autor desta resenha.

Agora Helio resolve regredir para antes de seu nascimento e nos oferece um texto primoroso (de um escritor-arquiteto não se poderia esperar outra coisa), A pele do soldado (Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2022), que, já na abertura, transporta-nos para a carnificina da cruenta Guerra do Paraguai, para depois saltar, num longo flash back cinematográfico, à infância, adolescência e início da vida adulta do protagonista, Alberto, na Fazenda Morro Brilhante, no Vale do Paraíba. Deve ter contribuído para a perfeita reconstituição do ambiente da fazenda a pesquisa de Hélio, cerca de década e meia atrás, para seu suntuoso livro de capa dura sobre uma fazenda mineira antiga, O solar da fazenda do Rochedo e Cataguases, tendo por coautor seu proprietário, José Rezende Reis.

Desfilam por A pele do soldado a “prosperidade e labor nas terras de Gonçalo Francisco de Aires Rodrigues”, a violência, física e sexual, contra os escravos, o casamento por conveniência sufocando o amor autêntico, o pai administrando a propriedade com mão de ferro (e se assim não fosse, teria sucumbido nos conflitos fundiários), a mãe temperando com um toque humano a prepotência do pai, o vizinho dublê de médico e fazendeiro, o francês Jean-Jacques Pauchet, trazendo toques de civilização e civilidade ao ambiente rude (mas, não obstante sua “civilização”, condenando a filha a um destino infeliz)... O protagonista revolta-se com as injustiças e acaba se tornando um abolicionista. Quando convocado para lutar no Paraguai, seu pai mexe os pauzinhos para mandar dois escravos no seu lugar, mas Alberto abre mão das “costas quentes” e faz questão de participar da guerra já quase no seu desenlace, expondo sua vida à sanha dos meninos paraguaios que o ditador Solano López enviava ao front quando já não havia mais adultos para recrutar.

Àqueles que queiram se enfronhar melhor na obra de Helio Brasil, recomendo o verbete da Wikipédia supracitado e o artigo “Helio Brasil: A Persistência da Memória” na Revista Brasileira no 105, acessível no site da Academia Brasileira de Letras.

Eu (esquerda) e Helio Brasil (direita)


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