FELIZ ANO NOVO, de Roberto Pompeu de Toledo


E lá fomos nós, outra vez. Assistimos à queima dos fogos, tomamos champanhe, trocamos beijos e abraços, dissemos feliz ano novo. Os mais entusiasmados aderiram ao coro da contagem regressiva: dez, nove, oito, sete, seis... E ao toque da meia-noite havia gente com lágrimas nos olhos. Era a emoção da virada, da ultrapassagem, da volta ao marco zero, do recomeço, de se encontrar no exato ponto em que começa o futuro. Claro que era tudo mentira e que depois de uma noite maldormida por causa da vigília até tarde, das bebidas e da comilança, com os músculos doendo e gosto ruim na boca, se perceberia que estava tudo igual, cada coisa em seu devido lugar, inclusive as aflições que azucrinam a cabeça, as doenças que castigam o corpo, as obrigações, os trabalhos, os motivos de chateação e os de alegria. Mas somos incorrigíveis, que fazer? Assim como já fizemos infinitas vezes no passado, na virada para o próximo ano repetiremos a dose. Não é pelo detalhe de saber que não funciona, que não há recomeço só porque se passou de um ano para o outro, se é que há recomeço, seja quando for, que vamos mudar um ritual para o qual nos programaram desde sempre.

Contar o tempo é uma grande ilusão, como todos sabemos, mas – e se não contássemos? Estaríamos como num deserto, todo plano, só areia, e sem estrelas no céu. Não é que, numa situação dessas, não se acha o caminho; é que não há caminho. Contar o tempo é o estratagema mais ardiloso já concebido pelos homens. A natureza ajudou, ao fazer os dias se suceder às noites, e o sol e a lua cumprir trajetos previsíveis. Com base nesses escassos dados, os homens fizeram do tempo um salame que se mede, depois se demarca, depois se retalha em porções que o tornam digerível. Em outras palavras, perpetraram a grande proeza de transformar o tempo em espaço.

O estratagema equivale a tornar visível o invisível, a dar forma ao que é informe, a conferir descontinuidade ao que é contínuo. Ou seja: é uma mágica, pela qual se transforma a coisa em seu contrário. Equivale a, do vento, produzir-se uma construção de complexa arquitetura. Estamos diante da mãe de todas as façanhas. Tomou-se de algo que não se pode ver nem pegar e transformou-se em objeto tão concreto e assentado no espaço como um armário. Inventaram-se gavetas para esse armário – 2006, 2007, 2008, 2009... O interior de cada gaveta foi, por sua vez, subdividido em escaninhos chamados janeiro, fevereiro, março... Pronto. Estavam criados espaços nos quais ancorar a memória e fixar a agenda do futuro. Sem tais âncoras, nem a memória teria as condições ideais para se desenvolver nem o futuro para ser planejado. Sem uma memória confiável, nem uma plataforma para a agenda do futuro, a inteligência encontraria insuperáveis dificuldades para prosperar.


Se a imagem do armário soa grosseira, fique-se com outra, mais delicada, ainda que óbvia – a do calendário. O tempo, esse ente assustadoramente impalpável e elusivo, nele aparece singelamente traduzido em papel, como se tivesse sido decifrado e dominado. Dominado é bem a palavra. É a palavra que se usa contra os inimigos, e o tempo é um inimigo. Sua especialidade é provocar desgaste e envelhecimento. No limite, mata. E é um inimigo ladino, nesse seu jeito de não se deixar ver nem apalpar, sorrateiro, em sua inconsistência, como um fantasma. No calendário – vingança – ei-lo capturado e trancafiado como passarinho na gaiola. Como gênio na lâmpada. Ou, para recorrer a imagem ainda mais delicada, e ainda mais óbvia, ei-lo, quando submetido à contagem que lhe impomos, aprisionado no âmago dessa maquininha esperta e fiel a que chamamos relógio.

Domar o inimigo é o mais capcioso dos efeitos da contagem do tempo. Mantê-lo domesticado dentro do calendário ou do relógio significa que, agora, mandamos nós.

As vozes que na noite do dia 31 entoavam a contagem regressiva comandavam o andamento do tempo como um jóquei comanda o cavalo. Ao chegar a meia-noite, ficou estabelecido que acabava de falecer o pedaço do salame de número 2008, e passava a vigorar o pedaço de número 2009. Foi uma perfeita e sincronizada operação no corpo do inimigo subjugado.

Todos conhecem o fim desta história. Ele sempre vence. Nossa mágica de capturá-lo e contá-lo, como todas as mágicas, não passa de ilusão. É ele quem, impassível como nunca deixou de ser, mais dia menos dia vai abater, uma a uma, todas as pessoas que, em coro, imaginaram comandá-lo na noite do dia 31. Não há como escapar de suas garras. Mas é melhor não pensar nisso. A ilusão de que de alguma forma dominamos o salame, a ponto de tornar distintas suas diferentes partes, é que nos mantém vivos. E que produz essa outra ilusão, a de que a cada 365 dias se ganha a oportunidade de retornar ao marco zero. Incorrigíveis que somos, daqui a um ano quem viver nos verá de novo no ritual de entoar em coro a contagem regressiva, tomar champanhe, trocar beijos e abraços, dizer feliz ano novo e derramar lágrimas ao saudar, com emoção e esperança, a chegada de 2010.

(Texto publicado na Veja de 5 de janeiro de 2008 e adaptado aqui para a virada 2008/2009 - Feliz Ano Novo!)

O DOURADO REFULGENTE, de Jorge Hausen


O AUTOR: Jorge Hausen é gaúcho de Porto Alegre, tchê!, mora há muitos anos no Rio de Janeiro (na mesma rua que o editor deste blog) e é geólogo por profissão. Participa da Oficina Literária Ivan Proença. O texto a seguir foi extraído do livro A prenda de Seu Damaso, segundo lugar do Prêmio Jabuti de contos de 2008. Escreve Moacyr Scliar no Prefácio: "Ele é um excelente contista. Nisto ele se vincula à tradição gaúcha do 'causo', o costume de contar histórias ao redor do fogo, no galpão, enquanto a cuia de mate passa de mão em mão. É este prazer da narrativa que Jorge Hausen passa a seus leitores."

Sudeste rio-grandense, tardezinha, a algumas léguas da fronteira com o Uruguai, no Capão do Leão, a roda dos amigos estava completa. Hora do chimarrão, do trago (a branquinha de mão em mão) e da conversa fiada. Todos, homens do campo. A maio-ria, seis, filhos dos abastados fazendeiros, fazendeiros das antigas. Gente criada no galpão a leite fresco, carne gorda e fogo de chão [as palavras em vermelho estão no glossário no final], igual à peonada, sem regalia nem folga – dureza, mão grossa de calo. Chapéu preto de feltro na cabeça: aba larga e barbicacho. Lenço no pescoço: vermelho (maragato) ou branco (pica-pau). Camisa de manga arregaçada e colete. Guaiaca alçava as bombachas: o 38 no lado direito, a faca nas costas – os fala-verdade, como chamados. Bota: cano alto, couro de rês e tacha de pessegueiro.
Eles, nos mochos, sentados, o mate e a prosa iam e vinham. Rigorosa ordem. Na hora da cana, por encanto, certo desajuste, a velocidade aumentava. Sede que era.
Na vez de Homerinho Fagundes, cuia na mão, pigarreou, limpou a garganta e começou a trova:

“Não trago testemunha, andava sozinho. Foi lá pros campos do finado coronel Noca Sarmento, nas barrancas do rio Teodósio. Batia casco pelo caminho com meu glorioso malacara – El Gran Vencedor. Poncho forrado, aposta de cancha-reta ganha na Fazenda Estrela do Sul. Ninguém ganha dele no estirão de qualquer cancha, botou pescoço na frente do segundo – o favorito. No caminho, de repente do alto da ponte Velha, no passo do Nhandu-Tatá, avistei, lá nas pedras, na margem do rio, fulgurado no sol a pino do meio-dia, um baita, um baita de um dourado. Deus me benza, animal que não acabava mais, sobrava pra frente, pra trás, pros lados – descalabro de bicho. No grito apeei. Tirei as pilchas todas – espalhadas no chão. Desenfreado, correndo desci o escalvado. Me joguei em cima, no lombo do monstro que bufava, esperneava, corcoveava como bagual na doma. Eu, firme em cima, rédea curta não lhe dava folga. O entrevero todo durou perto de hora, até que não dava mais pra agüentar aquela onça de peixe. Inda de inhapa aquele solzão todo de prancha me queimava a bunda. Tava nas últimas. Suava de molhar o rio. Fraquejava até das pernas, tremendo do esforço. Sem pensar, no puro instinto, vida ou morte, decidido puxei da faca e enterrei o ferro pela costela adentro do desgranido. Grito horrendo de dor...”

“Pera aí” – atalhou Zeca Netto – “tu não tava pelado? Que estória de faca é essa?”

“Que merda, Zeca Netto. A gente tá aqui pra contar causo ou pra discutir?”

Glossário
1 Fogo de chão: fogo que se acende nos galpões das estâncias para o preparo do mate e do churrasco ou ponto de reunião de tropeiros e peões.
2 Barbicacho: cordão, cadarço ou trança de couro, com as extremidades presas à carneira do chapéu, que passa pelo queixo de quem o usa, para prendê-lo à cabeça em dias de vento.
3 Guaiaca: cinto largo de couro macio que serve para o porte de armas e para guardar dinheiro.
4 Fala-verdade: armas pessoais.
5 Mocho: banco individual sem encosto.
6 Trova: fala, conversa.
7 Malacara: animal que tem a testa branca, com uma lista da mesma cor que desce até o focinho.
8 Poncho forrado: com muito dinheiro.
9 Cancha-reta: lugar plano e reto preparado especialmente para corridas de cavalo.
10 Nhandu-Tatá: avestruz de fogo (do tupi)
11 No grito: de imediato, rapidamente.
12 Pilcha: vestimenta típica do gaúcho ou roupa em geral ou os arreios.
13 Bagual: cavalo selvagem, isto é: ainda não domado.
14 Inhapa: brinde (do quíchua).

ESCADA DE MINHA MANSARDA, de GUILHERME DE ALMEIDA


Íngreme, estreita, escura e curva é a escada que sobe para minha mansarda.

Capaz de desanimar os velhos fôlegos cardíacos, nunca, entretanto, intimidou meu já muito vivido coração. Pelo contrário: leva-me leve, alado como os anjos da escada de Jacó.

Jamais me arrependi de tê-la subido. Sempre me arrependi de tê-la descido. Porque é mesmo uma ascensão ir pelos seus degraus acima: um desprendimento do rasteiro, numa ânsia de quietude, isolamento e sonho, para o pleno ingresso nos meus Paraísos Interiores. E porque é sempre uma degringolada ir pelos degraus abaixo: uma humilhante devolução ao mundo de todo o mundo, uma expulsão de réprobo atirado impiedosamente às ganas da caterva.

Escada de minha mansarda...

Chego, pesado, do dia cretino e pornográfico, esbanjado entre interesses desinteressantes, palavrórios e palavrões, mandos e desmandos, incompreensíveis incompreensões...

Chego. O fardo é exaustivo. Enfrento a escada. Parado, um instante, deixo ir por ela o olhar e o pensamento. Já isso é um alívio. O mundo, que eu piso, assume, então, certa importância: a de um capacho. Na sua áspera fibra limpo a sola dos meus sapatos. Lá, no topo, está a libertação.

E subo, contando os degraus, que vão ficando cada vez mais fáceis. E eu vou ficando cada vez mais leve.  Mais fáceis...  Mais leve...  Mais...

Pronto!

Aqui não há leis: nem mesmo a da gravitação terrestre.

Aqui é um ponto fixo no espaço. Talvez aquele por que suspirava Arquimedes: — “Dê-me um ponto fixo no espaço que, com uma alavanca, eu moverei a terra!”

Eu tenho esse ponto. E basta. Não quero alavanca. Porque a terra não me interessa.

Casa de Guilherme de Almeida em São Paulo


VEJA MEUS VÍDEOS SOBRE LITERATURA BRASILEIRA:



TORTA PODEROSA, de Silvana Vargas


Deu entrada na emergência do hospital, na última semana do ano, conhecido empresário de meia idade com sintomas gástricos que, apesar de rotineiros, intrigaram os residentes de plantão. Gritando frases desconexas, memória alterada, trocando letargia e agitação enquanto recebia mil e um tubos. Depois de levá-lo para submeter-se à bateria de exames, o plantonista colocou o doente no soro e localizou a família. No entanto, os parentes tinham diversas explicações que em nada somavam ao confuso diagnóstico.

Eis que, incrementando o incidente, o filho adolescente lembrou que os pais iriam viajar. Que pediu à amiga uma certa torta coberta de chocolate para animar a festinha com os amigos. Tudo combinado, recebeu o jovem a encomenda e, sem saber que a viagem dos pais fora adiada, deixou o doce enfeitando a bancada da cozinha. Indagando aqui e acolá, os médicos ficaram sabendo que o dono da casa, perfeito chocólatra, viu apetitosa sobremesa dando mole na copa e comeu um belo pedaço. Nem sonhava que a tal torta de ervas e chocolate era receita especial de Amsterdã, encomendada em aprazível ponto de doces do bairro. Enfim, dentre os amigos do investigado, houve quem lembrasse que a tal erva era coisa que, aquele senhor – empresário conhecido da melhor sociedade carioca – não provara nem na juventude. Era asmático.

Mais tarde ficou o médico sabendo que a dedicada cozinheira da família também não resistiu. Comeu a torta e mandou o serviço para o espaço .

– Ô torta poderosa, doutor! Fiquei chapada por dois dias inteirinhos.

POR QUE TODAS SÃO LOURAS? de Roberto Petti Pinheiro

Pesadelo. Isso. Só pode ser. Estou no meio de um pesadelo daqueles. Daqueles em que tentamos correr e o corpo pesa toneladas; em que tentamos gritar e a voz não sai; em que tentamos fugir e não conseguimos. Mas como pode ser pesadelo se não me lembro de ter ido dormir? Estava naquela festa e, até agora, bebera apenas duas doses de uísque – não dava para ficar bêbado. Será que colocaram alguma coisa na minha bebida? Caí no boa-noite-cinderela? Não, o Jorge, cara legal, não ia deixar fazerem baixaria em festa na casa dele. Pelo contrário. Tanta gente bonita circulando, por que ele permitiria que prejudicassem um amigo?

Olho para os lados e só vejo louras. Não estou na Suécia nem na Finlândia, e estou cercados de mulheres com longos cabelos louros e lisos, jogados, estudada displicência, de um lado para outro.

Estranho país este nosso onde a insatisfação com o próprio corpo e a preocupação com a aparência atingiram níveis epidêmicos. É só abrir qualquer revista de fofoca que as notícias saltam: fulaninha puxou aqui, sicraninha colocou mais alguns mililitros ali, beltraninha tirou de lá. Nas páginas das festividades sociais, então, nem se fala: há mais louras por metro quadrado do que nos países nórdicos.

Digressões estéticas à parte, voltemos à festa.

Aproveitei que, ao meu lado, havia uma dessas louras – várias vezes quase embebera os cabelos em minha terceira e última dose de uísque programada para aquela noite –, para tentar entender este incontido desejo de ser diferente do que se é. Comecei com alguns comentários banais, como o tempo, a crise política, a seleção musical da festa. Recebi respostas monossilábicas. Lembrei-me então de famoso apresentador de TV. Uma vez, talvez tenha sido sua melhor tirada, disse que elas agitam a cabeleira para ver se a inteligência pega no tranco.

Salvo melhor avaliação, pude concluir que a tintura, além de desaparecer com a cor natural dos cabelos, desaparece também com as idéias. Conclusão precipitada número um.

Meia hora depois, a segunda tentativa. Aproximei-me do grupo no qual estava uma loura que, havia mais de cinco minutos, não jogava as madeixas para os lados. Pelo menos, não corro o risco de comer salgadinho com cabelo cheio de tinta. Cheguei a tempo de ouvir o final da conversa. Era algo sobre a última edição de famosa revista semanal. Perguntei se surgira mais alguma denúncia contra o governo. Olharam-me como se fosse de outro planeta. A conversa continuou. Passei horas me produzindo, vesti a menor microssaia com o decote mais profundo que encontrei, cruzei e descruzei as pernas, mostrei a calcinha e não saí em nenhuma foto. Só publicaram aquela vagabunda da Gisleine que dá pra jogador de futebol pra aparecer em todas as revistas.

Conclusão precipitada número dois: a louridão está diretamente ligada à vontade de aparecer na imprensa.

Afastei-me cinco passos e cheguei a outro grupo. O centro das atenções era, claro, uma loura escultural que, voz de taquara rachada, contava os últimos passos dados em sua carreira de modelo e manequim. Na véspera, fotografara para importante revista de moda do interior de São Paulo. Trabalho pequeno para todo o talento que tinha, mas que lhe garantiu alguns trocados e convites para participar do circuito de rodeios. Sonhava em entrar para o próximo Big Brother, mas não sabia dizer se conseguiria ficar tanto tempo longe da mãe. Se estudava? Sim, ia começar um curso de atriz na próxima semana e tinha vontade de fazer Faculdade de Jornalismo. Para arrematar, ainda disse que negociava, com um canal a cabo, um programa infantil.

Quase me engasguei com o salgadinho que comia ao lembrar-me do quanto tinha sofrido para ser jornalista com algum prestígio. O que me levou à conclusão precipitada número três: ser loura ajuda a abrir algumas das portas mais fechadas deste país.

Já pensava em ir-me embora quando parei no quarto grupo de louras oxigenadas da noite. Todas muito assustadas comentavam a tentativa de assalto que uma delas tinha sofrido. Foi horrível. Meu carro foi cercado por homens armados – não, querida, não foi o tipo de homem armado que você está pensando, sua tarada – e três deles entraram. Mandaram que tocasse para a Barra. Ainda bem que conheço a Barra muito bem e passei perto da delegacia. Quando a polícia viu aquele carrão importado, dirigido por uma loura natural como eu, acompanhada de três homens feios, sujos e nenhum deles louro, desconfiou de que alguma coisa estava errada e mandou parar. Foi tanto tiro que pensei que ia morrer. Ainda bem que a polícia não mata louras, só pretos, pardos e morenos.

Ser loura é salvo-conduto em um país que mata pobres, feios e sujos desde que não sejam louros – a conclusão precipitada número quatro a que cheguei.

Resolvi partir.

Na calçada, enquanto esperava o táxi que chamara, vi uma bela morena chegando para a festa. Simpática, sorriu-me, dentes muito alvos, lábios carnudos pintados levemente de vermelho. Quando já me aproximava, o carro chegou e ela sumiu na portaria do prédio.
Conclusão realista número cinco: perdi muito tempo com as falsas louras. Deveria ter esperado pela morena.




Roberto Petti Pinheiro é autor de Varanda de histórias (Oficina do Livro, 2005)

ANA, SÃO JORGE DERRETEU!, de Marcia Frazão


Ontem, quando acordei e vi São Jorge derretido no chão da sala, afogado em um mar de açúcar, desconfiei que podia ser algum sinal. Bem verdade que quando o ganhei de presente de Ana Durães, ela me aconselhou a comê-lo ao invés de guardá-lo. "Vai derreter, " ela disse.

Mas quem, em sã consciência, comeria um santo? Por mais que os músculos dele saltassem da armadura de ferro, por mais que aqueles olhos azuis provocassem terremotos e arrepios na carne, santo é santo! Comer São Jorge? Nem morta!

Face à minha determinação, Ana, formada e diplomada nas artes dos santos, sugeriu uma camada de verniz. "De repente, impermeabiliza", ela disse.

A princípio, a solução pareceu acertada. Mas quantas camadas seriam necessárias? Certamente muitas, se ele não fosse santo e fosse homem, mas santo, sem nenhuma nódoa para esconder e nenhuma vaidade para exibir, é uma outra história. Não havia pincel no mundo que deslizasse um quase tico de verniz desnecessário.

Não sei se pelos muitos copos de vinho ou pela euforia de estarmos reunidos - eu, Ronaldo, Ana, André Mux, Adriana Reis e Allison - a degustação do santo foi esquecida. De cima da mesa São Jorge nos espiava com olhar pidão, e Adriana jurou ter visto umas gotas vermelhas escorrerem do canto da boca dele. Se fosse em outro contexto, numa ocasião mais sóbria, todos nós admitiríamos o milagre, mas já estávamos na sexta (ou seria oitava?) garrafa de vinho, com os pés enfiados na região onde milagre é ficar sóbrio, e deixamos Jorge quieto no seu canto.

Melado, caramelado, desengonçado na sela do seu cavalo branco, o santo brandia a lança sem o mesmo ímpeto de antes. "São Jorge está bêbado. É melhor comê-lo", disse Adriana sem um mínimo pudor.

Receosos de recairmos em pecado mortal, não nos aproveitamos da santíssima embriaguez e Jorge ficou na mesa, chapado. Depois que todos foram embora o carreguei para o altar. E lá ele dormiu por alguns meses, até que Gilda Brasileiro, minha amiga química, filha de Iroko e Oxum, me aconselhou a servir cerveja para ele. "Mas só serve em copo de prata", ela recomendou.

Durante um ano ele se entupiu de cerveja, até que ontem, por coma alcoólica ou mistério que só os santos conhecem, São Jorge derreteu. Escafedeu-se sem deixar nenhum bilhete, deixando no ar uma sinistra pergunta: teria sido melhor comê-lo?

MENINA NA JANELA, de Renata Valle


A menina na janela gosta de ver o céu. Céu da manhã, azul clarinho, aceso pela luz do sol, esfumaçado por dispersas nuvens brancas. E as nuvens brancas que ficam esverdeadas, invadidas por ariscas maritacas que, fugitivas, voam em bandos, convidando-nos à liberdade: sobrevoam o pátio da escola, exibem-se para as crianças, fazem algazarra, animam a hora do recreio, arrancam sorrisos, bagunça contagiante. Bagunça que vem do céu.

A menina na janela gosta de ver quando o dia esperneia, mas acaba por ceder, vencido, pintando a tarde de cereja e entregando o céu à escuridão da noite. A escuridão da noite trará luzes coloridas, brilhando em toda parte, acendendo a cidade. Acenderão também os carros e seus corre-corres: subindo calçadas, galantes, amantes, derramando-se sobre as pontes preguiçosamente esticadas, entediadas, pontes ansiando tornar-se felizes maritacas.

A menina na janela gosta de ver as outras janelas abertas, fechadas, as luzes vermelhas lambendo a avenida, o morro pretinho pintado de uma infinidade de pontos brancos e destacando-se à frente do céu azul que o agasalha. E o céu azul que agasalha está cravejado de estrelas, damas elegantes, brincando de acender e apagar. E no céu a menina vê a gorda lua cheia: toda dona de si, toda cheia de si. Vaidosa, brilha cintilante, derrama-se, lânguida, fatal.

A menina gosta de ver os telhados das casas, a cúpula da igreja, a grande cruz mirando o céu, apontando para o alto, as muitas árvores escondendo ninhos de pássaros plebeus, arredios, que insistem em procriar em reino de asfalto e cimento. E no reino de asfalto e cimento a menina vê postes magrelos, caules compridos, terminando em belas flores de luz. E vê asfalto e cimento que não acabam mais, espalhando-se mais e mais todos os dias.

A menina gosta de ficar nas pontas dos pés e se esticar para olhar ao longe. E ao longe vê o relógio gigante guardião das horas. O gigante conta o tempo, aproveita para cochilar enquanto dormem os olhares curiosos, enquanto não volta o dia, enquanto repousa a menina, mantendo a janela aberta.

(Ilustração: Quadro "Mädchen am Fenster" - "Menina na Janela" - de Klara Filipowna Wlasowa, 1958.)

NUTRIÇÃO DA BARATA EM QUE SE METAMORFOSEOU (SEGUNDO FRANZ KAFKA) O INFELIZ GREGOR SANSA, de Helio Brasil


Açúcares, provenientes do mel que escorre das línguas ferinas. Em doses generosas, para que nada se perca da maledicência. O sal é tão indispensável quanto o ar que envenena a alma. Deve ser sorvido aos poucos, saboreado nas intrigas e acompanhado dos ruídos que as chuvas produzem nas ruínas dos telhados. As melancólicas gorduras esmaecidas que escorrem dos livros jamais abertos devem ser ingeridas a cada dois pares de tristezas. A carne pendente da ferrugem dos tendais servirá a novo repasto, desde que os vermes habitantes façam um juramento – tão eterno quanto passageiro – de dispensarem os sinistros temperos do amor. Legumes e verduras serão vistos com reservas. Nutrirão desde que as lesmas coladas em suas folhas, hastes e talos adquiram o ocre das verdades irrefutáveis. Os vinhos, só serão sorvidos após triturados em pequenos coágulos indecifráveis, coados e prontos para agradar aos cães famintos. O pão sempre será o pão desfeito. Desfeito do trigo que não foi ceifado. Ceifado, morto e sepultado. Sepultado e posto junto ao leito em que jamais arquejou um ser amado.

          Helio Brasil - outubro 2004

QUANDO A NOITE VEM, de Ana Lia Vianna Ambrosio



Quando a noite vem — mais uma jornada que se foi, levando um pouco de mim e a eterna incerteza do amanhã. Respiro fundo, recuperando energia, brisa, ânimo, para um novo tempo. Namoro as primeiras estrelas a despontarem no mesmo céu de antes, tão exigente e mau, frente aos meus tímidos passos. Quando a tarde cai.

Quando vem a noite — relaxo ao som natural das enluaradas canções e causos, que espelham o itinerante caminho reinventado a cada momento. Retorno, alívio, à morada ilusória dos sonhos recuperados após imensas travessias: doloroso não possuir abrigo, acalanto, nem amigos. Quando cai a tarde.

Triste é viver na solidão...

Quando a noite vem — meus olhos palpitam incessantes, enternecem rasgos de generosidade bem como os de egoísmo. Salvos pelo valente príncipe que habita corações e cativeiros: vizinhos no paraíso? Nas verdes matas, nas profundezas dos arquipélagos, nas colisões do dia-a-dia. Quando a tarde cai.

Quando vem a noite — de mansinho recolho imponderáveis rastros espalhados por onde andei. Fagulhas perpetuam andanças e andanças: mergulhadas nos poemas a ti dedicados, repletos de rimas, mel, métricas. Certeiro o pêndulo, oscilando sob o marulho das tristes ondas, mas curioso no olhar. Meu. Quando cai a tarde.

Triste é viver na solidão...

E se a noite não vier? Falhar ao fim do derradeiro ato? Esperança, onde andarás? Nas asas de um fiel pássaro de fogo? Adormeço qual um anjo, aguardando... Quando a noite vem.

Ana Lia Vianna Ambrosio, durante anos minha colega na Oficina Literária do Professor Ivan Proença, foi uma das melhores escritoras brasileiras de prosa poética dos últimos tempos. Texto inédito, gentilmente cedido pela autora, que faleceu alguns anos atrás. Outra crônica sua pode ser lida no meu blog Literatura & Rio de Janeiro.

DELÍRIOS NA SELVA, de Nelson Motta


O mais bonito dos surrealistas, nos anos 20, era que eles não queriam apenas mudar a arte, mas a vida. Salvador Dali, Buñuel, Breton, Man Ray, Duchamp, a linguagem dos sonhos e dos pesadelos, imagens do inconsciente — novas visões de corpo e alma. Mudou a arte, sem dúvida, mas o ser humano...

Da mesma forma, mas sem a mesma graça, a ambição dos comunistas cubanos nos anos 60 era não só o igualitarismo e a sociedade sem classes, mas a criação do "novo homem cubano", e a nova mulher, por supuesto. Ético, patriota, disciplinado, consciente, politizado, justo, solidário, boa saúde, bons dentes, estudado, este novo ser surgiria como o fruto final da Revolução. Como diria Copélia, não a famosa sorveteria cubana mas a de "toma lá dá cá", prefiro não comentar.

No desmantelamento da União Soviética, a Rússia e outras repúblicas socialistas que aderiram ao capitalismo se tornaram, porque já eram antes, alguns dos países mais corruptos do mercado livre. Claro, eram os antigos "novos homens", formados na burocracia estatal corrupta e infiltrados em toda a sociedade, criando uma cleptocracia.

Os sonhos do Fórum Social Mundial são mais modestos, apenas a transformação do mundo. O problema é que são muitas as aproximações, e contradições, entre um novo mundo que eles creem possível e um mundo velho que já se provou impossível e desmoronou com o Muro de Berlim.

Outro problema comum a surrealistas, comunistas e foristas é a confusão entre ideais, sonhos e delírios, que sempre acabam custando caro para os que eles querem "libertar".

Do tempo dos surrealistas e da revolução cubana o mundo melhorou muito, pela ação de homens e mulheres de boa vontade, mas o ser humano, não sei não... Está para nascer sistema político ou econômico capaz de criar, além de um mundo novo, um novo homem.

Ou talvez o "novo homem" dos velhos comunas só exista mesmo na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, que investiram fundo na social democracia, criaram prosperidade e distribuíram riqueza e educação, criando condições para uma forma mais civilizada de viver. Embora chatíssima, para padrões latino-americanos.

Crônica publicada originalmente no jornal O Globo de 30/1/09. Foto: obra do pintor surrealista russo Evghenie Gordiets obtida de um PPS que circulou na Internet.

O MAR AZUL, de Rogel Samuel


O MAR AZUL
Crônica de Rogel Samuel

Volto de Copacabana, onde o vi. O mar, aquele mar azul.
"Vontade de cantar, mas tão absoluta, que me calo, repleto", escreveu Drummond ao vê-lo. Ao vê-lo belo. E azul. Tão azul.
O problema do mar, de sua beleza, é que sua beleza é infinita, é azul, azul profundo.

Oh, sim, estamos, entramos no Verão. Voltemos ao Verão. Que venha o verão. Como no início dos Cantos,
Ezra Pound diz:

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.




Que mar é esse? Este é o mesmo mar de Ulisses, o mesmo mar de Pessoa, de
Camões, que canta:

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo [gado de Proteu, animais marinhos que vivem em cardumes] são cortadas


Desconhecido embora, um poeta amazonense,
Sebastião Norões, escreveu, há décadas, em 1956, um soneto perfeito, exemplar, único, sobre o mar. Seu título, "Mar da memória":

Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.

O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,

delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.

Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.


No verão, o brilho intenso, os ares claros, as nuvens brancas. O calor é pegajoso, pecaminoso.
Quando jovem, morava perto do
Arpoador. Domingos de sol, festivos, de verão extremo.
O sol ficando forte, vem a vida, as canções. O metalizado brilho do passado estandartiza, nos ares, as claras visões dos cânticos do sol. É o verão do mar, que para o amor se vai abrir. Quando amar se espera. E o mar, o mar azul, "essa incógnita de anil que se destrança / em ânsias de infinito e me circunda / em grave tom de inquietude langue".

É langue todo verão, e assim esqueço, me esqueço, penso que ainda jovem. Me lembro dos dias de verão do Pier. Quem tem sonhos não morre. "O mar de quando eu era, não agora. / Quando as retinas fixavam tredas / a incompreensível mole líquida e convulsa. / E o pensamento convidava longes."
O mar convida longes. Atravessa o longe, a linha, o afastado horizonte. Delimitando 'imprevisíveis rumos / viagens de herói e de mancebo guapo."
Naquele tempo, acampávamos nas praias desertas, e em desertas praias amávamos.
Um dia, em
Búzios, um grande e luxuoso barco ancorou na praia onde acampávamos, na noite de Reveillon. De longe podíamos ver mulheres elegantes, os garçons, as champanhas. Fogos de artifícios. Ao nascer do sol, alguns vieram, num bote menor, até a praia. Algumas mulheres, de vestidos longos e brancos, ainda com as joias, jogaram-se no mar. Outras, completamente nuas. Era a Era de 60, onde tudo se permitia, mesmo o ser feliz, nas « marítimas águas consagradas, / que do gado de Próteo são cortadas." E «nossos corpos também no pranto aflito, / E ventos vindos pela popa nos / Impeliam adiante, velas cheias». Sim, sim. « Por artifício de Circe, / A deusa benecomata."



Norões
nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira, Amazonas. Mas estudou em Fortaleza, daí sua fixação no Mar. Aos 18 anos voltou para Manaus, fez Faculdade de Direito. Foi meu professor no Colégio Estadual. Chefe de Polícia do Estado, onde protegeu o comunista Jorge Amado. Era professor de Geografia.
A geografia do Mar.
Quando éramos jovens, Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás das baforadas de cigarro. As lentes grossas. Norões impressionava, carismático, culto. Nunca pensei que faria sua "apresentação", anos mais tarde, quando escrevi um prefácio para a segunda edição de seu livro "Poesia Frequentemente", de 1956. E é uma surpresa sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.

O mar azul.




Rogel Samuel é autor de O Amante das Amazonas e Novo Manual de Teoria Literária. A crônica "O Mar Azul" foi originalmente publicada no site Blocos.