VIRGÍNIA DE OLIVEIRA


Gosto deste poema "delirante" de Virgínia de Oliveira. Mostra que em poesia, assim como nos sonhos e desenhos animados, tudo é possível. Natural de Indaiatuba, SP, Virgínia é professora de língua portuguesa e tem um livro de poesias publicado pela Editora Scortecci, Quando os sonhos vencem a solidão (1988).

HOJE, SOMENTE HOJE

Hoje eu sou uma idéia, um perfume de rosas
e te trago um presente, a lua prata partida .
Hoje sou uma história bandida,
manchete de jornal - o pecado sangrento,
uma dança, teu cigarro, tua mentira, um lamento.

Hoje, somente hoje, eu sou a pressa
da vida conduzida pelo metrô,
sou a miséria dos restos de comida
nos grandes centros da metrópole.
Sou parto fórceps, beijo-arrepio,
vidro que corta a dor, um calafrio.

E ainda hoje também sou óleo diesel queimado,
pedra de moinho e um lindo amor trigal
contra o vento, arqueado, alimento de passarinho.

HOJE EU ME PROPONHO A SER O QUE QUERO!!!

Eu sou tudo e o todo esquecido por ti.
Sou teu desejo, tuas mãos, teus lábios sedentos,
sou tua pele leite, teu suor, teus cabelos molhados
      de repente
sou tua lágrima e tua dúvida, uma dádiva, tua dívida
(coisa repetida que já fiz, que já senti e que já li).
Sou o medo que atravessa tua língua e a faz maledicente,
falante e depois, um marasmo- silêncio cortante.

Sou o espelho de teu ego.
Teu íntimo, teu âmago, teu verso
espalhado em transparentes sementes.

E tu és desse jeito: incapaz de ser o que realmente és.
Então, hoje, somente hoje e porque o tempo assim me perdoa,
eu sou o teu destino, tua inspiração e tu és pedaço de mim.

Tu podes ser sem padecer em mim,
uma parte do céu, uma onda do mar,
tronco de árvore, barranco, grão de areia.
E podes ser o mistério da lua cheia,
o pó seco da Seca, seno e co-seno
        viola
          tamborim
            capoeira
          amendoim
            candomblé
          berimbau
             café
              fruta no pé
            serafim
             e
              carnaval

És telha da tulha e as horas do relógio,
ampulheta, uma fagulha, a fantasia -
te veste de alegria e aprende a ser feliz.

E hoje, só hoje, eu sou o teu gozo no ato
e também tua solidão, um abandono, teu sapato.
Sou o que te anima e o que mais te aborrece,
teu ódio, teu enigma, uma praga, tua prece.

Eu sou tudo isso e o que tu desejas.
Hoje, somente hoje, eu te convido
a me olhar de uma maneira mais insana.
Hoje posso ser tua lama, água, tua cama
e te banhar o corpo ou te conter em chamas.

Sou os dentes que te cravam o corpo no leito
e a mórbida bala certeira em teu peito.
Sou teu riso, teu desprezo e a chuva calma.

Hoje eu sou teu vinho, teu mel servido em taça.
Me toma, me bebe com sutileza e graça.
Observa-me. Sou um lírio brotando no asfalto
à espera do beija-flor escondido na flor de tu'alma!