MANUEL BANDEIRA


Manuel Bandeira, desenganado como tuberculoso ainda no final da adolescência, conseguiu salvar-se graças a uma exemplar disciplina e a uma renúncia cruel a vastas possibilidades vitais de um homem saudável. Surgia o poeta, que, em 1917, publicava A cinza das horas, livro diretamente ligado ao último Simbolismo, em que as influências portuguesas e francesas se uniam a uma sensibilidade muito pessoal e a um ouvido dos mais agudos e, sobretudo, dos mais sutis da poesia brasileira. Depois de Carnaval, converte-se definitivamente ao verso livre em Ritmo dissoluto, ao qual se seguiram Libertinagem e o admirável Estrela da manhã, talvez o momento fulcral de sua obra. Bandeira, dono de imensa cultura literária e infalível bom gosto, aproveitou do Modernisno tudo o que esse lhe podia dar, sem cair jamais nos maneirismos da escola. (Alexei Bueno)

DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

— Ah, como dói viver quando falta a esperança!

(De A cinza das horas, primeiro livro publicado pelo autor, na sua fase simbolista, em 1917)

A SEREIA DE LENAU

Quando na grave solidão do Atlântico
Olhavas da amurada do navio
O mar já luminoso e já sombrio,
Lenau! teu grande espírito romântico

Suspirava por ver dentro das ondas
Até o álveo profundo das areias,
A enxergar alvas formas de sereias
De braços nus e nádegas redondas.

Ilusão! Que sem cauda aqueles seres,
Deixando o ermo monótono das águas,
Andam em terra suscitando mágoas,
Misturadas às filhas das mulheres.

Nikolaus Lenau, poeta da amargura!
Uma te amou, chamava-se Sofia.
E te levou pela melancolia
Ao oceano sem fundo da loucura.

(Lenau foi poeta austríaco da primeira metade do século XIX; do livro Carnaval, o segundo do autor, publicado em 1919)

MURMÚRIO D'ÁGUA

Murmúrio d'água, és tão suave a meus ouvidos...
Faz tanto bem à minha dor teu refrigério!
Nem sei passar sem teu murmúrio a meus ouvidos,
Sem teu suave, teu afável refrigério.

Água de fonte... água de oceano... água de pranto...
Água de rio...
Água de chuva, água cantante das lavadas...
Têm para mim, todas, consolos de acalanto,
A que sorrio...

A que sorri a minha cínica descrença.
A que sorri o meu opróbrio de viver.
A que sorri o mais profundo desencanto
Do mais profundo e mais recôndito em meu ser!
Sorriem como aqueles cegos de nascença
Aos quais Jesus de súbito fazia ver...

A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama
Tranquila e mansa.
Talvez ouvi, quando criança,
Cantigas tristes que cantou à minha cama.
Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa.
Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa
Do teu rumor, murmúrio d'água...

A meiga e triste rapariga
Punha talvez nessa cantiga
A sua dor e mais a dor de sua raça...
Pobre mulher, sombria filha da desgraça!

-- Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.

(De O ritmo dissoluto, terceiro livro do autor, publicado, junto com os dois anteriores, em 1924 sob o título Poesias).

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