Alexei Bueno (direita) no lançamento de seu livro de poesia Anamnese, com o editor deste blog |
TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 30/11/2016 E REPRODUZIDO AQUI COM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR
As
grandes tragédias, e ainda mais as coletivas e completamente
inesperadas, como foi o caso da que se abateu sobre o Chapecoense -
titulares e reservas, comissão técnica e auxiliares, na companhia
natural de jornalistas e tripulantes – aguçam em todos nós a
percepção amarga daquilo que muitos chamam o “escândalo da
morte”, esse fenômeno natural que para o homem nada tem de
natural, já que foi contra a natureza, por oposição a ela,
rompendo a sua conformação perfeita ao momento e ao espaço, que
como homens nos firmamos. A humanidade é contra
natura
em sua essência, e se alguém sintetizou num verso tudo o que venho
dizendo, foi o poeta português Jorge de Sena, ao abrir o maior de
seus poemas, “A morte, o espaço, a eternidade”, com este
alexandrino do qual lamento não ser o autor: “De morte natural
nunca ninguém morreu”.
Na
tragédia desta madrugada, contribuíram ainda para essa sensação a
necessária juventude dos atletas, a estranheza da cessação do
fenômeno vital em indivíduos que, por sua própria atividade, se
notabilizavam exatamente pela excelência de sua constituição
física e pela agudeza de seus reflexos, tudo isso unido a uma
característica específica de nossos tempos, a pletora visual na
qual vivemos, quando, entre celulares e smartphones,
todos filmam tudo, permitindo, portanto, acompanhar os mortos, em
suas falas e gestos, até a sua escala na Bolívia, pouquíssimo
antes do acidente.
Essa
falsa proximidade com os mortos que nos traz a preservação do
registro visual e sonoro perdeu muito de sua eficácia com a total
banalização de tal possibilidade. Nossos
olhos, saturados desde a primeira infância pela imagem em movimento,
prejudicam gravemente nosso entendimento do que significou tal
revelação para aqueles que estiveram presentes à primeira sessão
de cinema, a 28 de dezembro de 1895, no Grand
Café
do Boulevard des Capucines, em Paris.
Nos
jornais que logo em seguida divulgaram tal evento histórico é que
podemos avaliar o impacto do primeiro encontro do olhar humano com o
movimento eternizado – ainda sem o som concomitante - especialmente
nesta resenha que ficaria célebre:
“É a própria
vida, é o movimento vivo que se vê no cinematógrafo. A fotografia
deixou de fixar a imobilidade. Ela agora perpetua a imagem do
movimento. Quando esses aparelhos estiverem ao alcance do público,
quando todos puderem fotografar aqueles que lhes são caros não mais
numa forma imóvel, mas em pleno movimento, em plena ação e nos
seus gestos familiares, a morte deixará de ser absoluta.”
E
é assim, com um pouco desse falso consolo que para nós já não o
é, que revemos os atletas desaparecidos na sua explosão de júbilo
com a classificação para a final da Sul-Americana, dando
entrevistas ainda em Guarulhos, brincando a bordo da aeronave, até a
fatal decolagem em direção a Medellín, cidade que nada teve a ver
com as causas do desastre desta madrugada, mas que já ficara
tristemente célebre, há 81 anos, com o estúpido desastre que matou
Carlos Gardel.
A
condição humana é trágica, gostem disso ou não os otimistas, e,
fora de alguma hipótese de transcendência, só resta ao ser humano
duas posturas radicalmente opostas, ou o incompleto raciocínio, ou
seja, a recusa em olhar até o fundo o abismo de nossa fragilidade e
nossa finitude, ou o desespero, e entre as duas a primeira posição
é maciçamente a preferida.
Em
certa época, ainda recente, esteve em plena moda – não sei se
ainda está - os pais filmarem o parto dos próprios filhos, ato
fisiológico cuja eternização sempre me pareceu do mais absoluto
mau gosto, motivo pelo qual eu jamais assistiria, caso existisse, a
um registro da minha incontornavelmente nojenta entrada no mundo.
Certa vez perguntei a um grande amigo, que acabara de fazer tal
registro, se ele não percebia que estava filmando – monstruosidade
das monstruosidades - o nascimento de um morto, pois aquele rebento
inaugural, mais ou menos sujo de sangue e de placenta, já nascera
condenado à morte, e nada impossibilitava que tal filme sobrevivesse
à sua própria desaparição. Só recebi em resposta o silêncio.
Para
os nossos heróis do Chapecoense, felizmente, sobrou o registro
visual e sonoro de seu apogeu vital e de sua alegria, aquele que
realmente pode dar a suas famílias, seus amigos e seus descendentes
diretos – ao menos duas das vítimas deixaram esposas grávidas –
a sensação da presença, da persistência da memória e de que a
morte deixou de ser absoluta.
29-11-2016
Nota do editor. O editor deste blog acredita que, além das duas posturas arroladas por Alexei em relação à morte – negação e desespero – existe uma terceira: indiferença (estoicismo). Afinal, antes de nascermos, já fomos mortos, de modo que voltaremos a um estado que já conhecemos e que em nada nos fez sofrer. E já que falamos na indesejada das gentes convido o leitor a ler minhas postagens de poemas & textos mórbidos. Procure no menu da barra vertical direita.
2 comentários:
Concordo plenamente com o que V. diz sobre a indiferença, mas creio que só é possível chegar a ela por um afastamento voluntário, e inclusive saudável, da reflexão sobre a morte. Se alguém mergulha fundo e visceralmente na sua ideia e no espetáculo que a acompanha – difícil pensar num exemplo melhor do que o do Augusto dos Anjos, basta lembrar um soneto como “Apóstrofe à carne” – essa indiferença torna-se extremamente difícil, diria mesmo quase heroica. (comentário enviado por e-mail e inserido aqui pelo editor do blog)
Alexei, vou confessar uma coisa, é uma questão de idade, na sua idade eu também tremia ante a ideia da morte, mas à medida que sua vinda se torna estatisticamente mais provável você começa a procurar tourear a fera. Sempre, desde jovem, pensei na morte. Adoro visitar cemitérios, agora mesmo estive em Highgate. Uma coisa é certa: se você não vive plenamente a vida, não escreve os livros que queria escrever, não compõe os poemas que tencionou compor, não lê os livros que pretendeu ler, não teve os filhos que gostaria de ter, não visitou os países que tinha curiosidade de conhecer, aí sim a aproximação do fim torna-se dramática!!! Portanto, vamos produzir, para que no fim ao menos tenhamos a consciência do dever cumprido. Porque a morte no fundo é a volta ao que fomos antes de nascer.
Postar um comentário