Der deutsche Text des Vortrags von Helga Flatauer über ihr Leben können Sie hier lesen.
Em 16 de fevereiro de 2021 comemoramos o centenário de nascimento de Helga Flatauer (sobrenome de solteira Paderstein), que infelizmente não está mais conosco, já que faleceu em 2011 aos noventa anos de idade. Helga foi a introdutora no Brasil do programa “Alcançar a Recuperação”, no Hospital Albert Einstein, de apoio a mulheres mastectomizadas, baseado no “Reach to Recovery” da American Cancer Society, através de voluntárias que também passaram pela mastectomia. A seguir uma palestra de Helga proferida em alemão em Vockenhausen em 4 de abril de 2008, traduzida por seu sobrinho, o editor deste blog. O texto original alemão da palestra pode ser lido aqui.
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Antiga árvore genealógica da família doada por Helga Flatauer ao Museu Judaico de Frankfurt |
A PALESTRA
Hoje estou diante de vocês, moradores de Eppstein e Vockenhausen. Não
me será difícil falar com vocês sobre minhas lembranças. Lembranças de uma
longa vida.
Eu retiro essas lembranças de
antigos diários e centenas de cartas que meu pai e minha mãe escreveram durante
a emigração.
Vamos começar pela primeira parte
de minha história. Muito tempo antes de eu ter nascido. Histórias que minha mãe
contava. A segunda parte conta sobre a época sob o regime nazista e nossa
emigração para o Brasil.
Sobre meu retorno à Alemanha
talvez possa falar também.
No ano de 1919, a volta do meu
pai da guerra. Condecorado com a Cruz de Ferro 1a Classe.
Retornou com a consciência orgulhosa de ter servido sua pátria. 96 mil soldados
judeus participaram da guerra. Dos 550 mil judeus que viviam então na Alemanha,
80 mil lutaram no front. E 12 mil soldados
judeus tombaram na guerra.
Lembro-me de fotografias do front em um papel um tanto avermelhado e
desbotado. Os soldados pareciam bem contentes. Perder a guerra, nisto não se
pensava.
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Wilhelm Paderstein durante a guerra |
A família do meu pai vivia em Paderborn, Vestfália. Meu avô, Emil Paderstein, um brilhante homem de negócios. Foi o fundador da cervejaria Dortmunder Union e como banqueiro fundou o Deutsche Bank em Paderborn. Era um homem bem abastado.
C
asou-se com Frederike Grünebaum.
Um linda e jovem mulher. Vinte anos mais jovem que seu marido. Tiveram cinco
filhos.
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Wilhelm Paderstein e seus pais |
Wilhelm (Guilherme), o filho mais novo dentre cinco crianças, queria se tornar fazendeiro. Como foi parar em Hof Häusel não sei dizer. Seu pai financiou a compra. Em uma carta dirigida ao pai Wilhelm expressou seu agradecimento ao pai com a promessa de cultivar a fazenda e administrar o dinheiro da forma mais conscienciosa.
Sua noiva, Grete Gerson, uma moça
alegre e divertida de Berlim, nascida em Dortmund, viajou para Eppstein, à
margem do Taunus, a fim de visitar seu noivo. O casamento em Berlim estava
planejado.
Durante sua visita Gretchen foi
surpreendida pela ocupação das tropas francesas. Uma viagem de volta a Berlim
não era possível. Mas um telegrama dos pais, preocupados com a integridade
moral da filha, chegou em Hof Häusel com as seguintes palavras:
“Onde dorme Gretchen?”
“Na cama”, foi a resposta, curta
e concisa para aquela época.
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Margarethe (Margarida) Gerson (direita - mais tarde, Paderstein) com colegas de escola |
O casamento foi selado em 19 de novembro de 1919 em Niederjosbach, ou Oberjosbach, no cartório. E o casal foi morar na antiga casa, uma antiga queijaria, como consta dos documentos.
Grandes castanheiras atrás da casa davam no verão sua sombra e mais tarde seguraram os balanços das duas menininhas em seus braços.
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Hof Häusel, aquarela de Charlton Smith de junho de 1966 |
Uma nova casa residencial foi
planejada. Grande e espaçosa. O Dr. Voggenberger [Fritz Voggenberger, 1884-1924],
um arquiteto de Frankfurt, fez a planta. Até hoje o telhado repousa acima das
copas das árvores. O Dr. Voggenberger morreu muito jovem. Lembro-me ainda do
obituário e de sua fotografia num jornal. Era uma casa fora do comum. Com
certeza bem moderna para aquela época.
Em 16 de fevereiro de 1921 nasceu
Helgali [diminutivo de Helga] em Frankfurt no hospital Marienkrankenhaus. Era
pleno inverno. Um carro foi chamado de Frankfurt e levou horas até enfim
chegar. Minha mãe precisou descer a rua íngreme na neve e gelo. E rezava ao bom
Deus que a poupasse de dores no
caminho para baixo.
Uma menininha nasceu. Era para
ter sido um menino para portar o orgulhoso sobrenome Paderstein. A decepção do
meu pai foi grande. Como consolo a criança foi chamada de Helga. Um nome
alemão. Loura de olhos azuis. Eu cumpri minha promessa.
Em agosto de 1921 chegou em Hof
Häusel um homem jovem para ajudar na colheita. Seu nome era Ewald Just. E com
entusiasmo e paixão juvenil apaixonou-se pela menininha. Na despedida escreveu
um poema pedindo que fosse entregue para Helga no seu 14o
aniversário, em 1935. Também seu poema me acompanhou de volta para cá.
E vou lê-lo no final para vocês, como um documento, ao final de minha narração.
O poema mostra para mim, e talvez
também para vocês, que não se pode alterar seu destino. Ao contrário, que o ser
humano, apesar de todos os bons desejos e expectativas, deve seguir seu rumo na
vida prescrito. Raramente pensamos nisto!
E lentamente transcorreram os
anos.
Em 25 de janeiro de 1926 nasceu minha irmãzinha [Anita, mãe do editor deste blog]. Nunca esquecerei esse dia. De manhã cedo, ao que me pareceu, dormindo na cama da minha mãe, acordei. Era a voz da Senhorita Änne, a babá. Helgali, disse para mim, você ganhou uma irmãzinha. Não consegui imaginar como seria. Com um pequeno buquê de violetas na mão, viajamos à tarde de trem para Frankfurt. Em um pijama cor de salmão forrado de penas de cisne brancas, minha mãe estava deitada numa grande cama. O berço com minha irmãzinha ao seu lado. Minha mãe me parecia então uma mulher linda.
Então veio o primeiro dia de
escola em Vockenhausen. Valentes marchavam as perninhas por gelo e neve. A
lancheira cheia de delícias ficou pendurada muitos anos, como consolo, sobre a
porta do meu quarto de criança.
Mas aí chegou o inverno e um
destino ruim me surpreendeu. Estava com sete anos. No galinheiro e seu laguinho
que ainda não havia congelado por completo, os pezinhos afundaram na água
gélida. A camada de gelo se rompeu em mil fragmentos e as galinhas e gansos
ficaram observando. O medo de uma bronca foi grande, e os pezinhos ficaram
frios e molhados. O que eu devia contar em casa?
Um resfriado transformou-se em
infecção dos pulmões. E ela quase me custou minha pequena vida. A IG Farben
Hoechst havia naquela época descoberto um medicamento novo. Sulfa era seu nome.
Testaram em mim. E salvou-me a vida. Aos poucos fui sarando.
A criança precisava se
restabelecer. Na primavera viajamos até Lugano, ficando em um hotel à
beira-mar. Papai comprou uma vara de pescar. Algum peixe
morderia a isca? Não sei. Escondi a vara nuns arbustos no parque. No dia
seguinte, havia desaparecido.
Depois que voltei para casa, não
deveria mais ir à escola em Vockenhausen. Professoras particulares vieram dar
aula em nossa casa. Deveriam substituir nossa escola. Na minha cabecinha de
criança, a escola era uma praga. Em vão eu pelejava com a tabuada de
multiplicação, francês e ortografia.
Lá fora os cavalos aguardavam. O
estábulo com o adorável cheiro. O feno nas pastagens precisava ser virado. Os
gatos esperavam por seu leite. As galinhas cacarejavam e punham um ovo. O pavão
balançava sua cauda de penas coloridas. Sua fêmea, em seu vestido de penas
marrons sem graça, postava-se admirada ao lado. Medo eu tinha dos gansos que,
como nossos inimigos, reconheciam nossas pernas de criança. Tudo isto e ainda
muito mais era minha vida no sítio.
Porcos eram abatidos. O triste
guinchar ante a morte certa. Saíamos correndo, o mais rápido possível. E do
porco guinchante surgiam presunto e salsichas. Schlachtplatte.
Um prato suculento. O pão era assado. Sobre duas cadeiras na cozinha repousava
a gamela. Levedura, farinha, sal e água eram misturados com a mão. E a
fragrância de pão recém-assado invadia a casa.
As prímulas amarelas, tantas. As
mãos infantis eram pequenas demais para conterem o buquê. Primavera, verão,
outono e inverno. Cada estação do ano tinha sua história. Cerejas grossas no
alto das árvores. Suco de maçã em garrafas com etiquetas coloridas. Grandes
barris e sidra, nossa bebida diária.
Andar de trenó na neve. O boneco
de neve e a descida de trenó pela montanha. Coque preto para calefação. O
aquecedor menor para dias frescos no outono. O aquecedor maior no inverno. Uma
vez por semana tomávamos banho. Era uma algazarra, um divertimento. Todos na
mesma água. Fomos educadas de forma frugal.
E aí chegava o Natal. A
expectativa era tamanha. Nenhum
buraco de fechadura era pequeno demais para impedir que espiássemos, com um
olho, a iminente felicidade. Mas no dia 9 de dezembro Papai Noel já surgia à
nossa frente. Com sua
barba branca e voz profunda. Ele sabia todas as nossas mentirinhas,
travessuras, e seu saco era tão grande. Prometíamos nos comportarmos pelo resto
da vida. E aí ele pegava o saco e sacudia. Os presentes, nossos desejos
silenciosos, jaziam no chão.
Depois se assava. Kringel [tipo de pretzel], biscoitos,
bolo de mel. Ao final do dia, quando já estava escuro, vinha o anjo do Natal
com sua veste branca. Os biscoitos no peitoril da janela da cozinha ele deveria
provar. Bem atrás no jardim em um pinheiro ardia uma vela. Iluminava seu
caminho.
E finalmente, em 24 de dezembro,
véspera de Natal. Mal conseguíamos aguardar! Aqui no saguão, onde estou hoje,
uma grande mesa coberta com todos os presentes. No salão o piano e a árvore de
Natal. Ouço a voz de vovó Lieschen. Uma bela voz, noite feliz, noite de amor. Oh
Tannenbaum, oh Tannenbaum, wie grün sind deine Blätter.
Todos cantávamos juntos. Os presentes eram abertos. A casa estava toda
perfumada. Todos nós estávamos contentes. Frieda, a cozinheira, Hanna, a
copeira, que mais tarde se casou na igreja católica em Eppstein e acompanhou
seu marido aos Estados Unidos. Mina, a arrumadeira, com suas pernas um tanto
tortas. Ehlert, o administrador, com seus filhinhos. E claro que os cachorros.
Ninguém era esquecido. Estávamos despreocupados e satisfeitos. A vida para nós
era bela, e nada pressentíamos de nosso destino.
O pacote de frutas do sul da Vovó
Lieschen para o Natal não faltava. Laranjas, bananas. Maçãs da Califórnia com
bochechas vermelhas. Papai via as frutas de forma crítica e comentava: comam
suas peras e maçãs alemãs!
Bons modos, tão importantes na
vida, nos eram ensinados. Não falar com a boca cheia, não apoiar os cotovelos
na mesa. Não deixar comida no prato. Tínhamos um papai rigoroso e uma mamãe
afetuosa.
Cavalgar e o grupo de equitação
em Wiesbaden com Tio Heini na ponta. Quantas horas, as mais felizes de minha
vida, pertenciam a esses momentos. Petrella, meu cavalo de nosso estábulo com a
estrela branca na testa. Meu grande amor. Lágrimas do primeiro amor derramei ao
seu pescoço. Será que entendia minhas preocupações? Tanta coisa eu poderia
ainda lhes contar daquela época.
Em pensamentos estou sentada no
meu quarto. Junto à minha escrivaninha envernizada de branco. As paredes
revestidas com papel de parede azul-claro. Em uma prateleira cactos de todos os
tamanhos e formas. Quando todos dormiam, na calada da noite eu cortava um botão
de rosa no jardim. O orvalho jazia sobre suas folhas. E à luz de vela meu
diário era preenchido página após página. Com sonhos infantis e dores. A vida
era tão importante naquele tempo.
Mas aos poucos, bem ao longe,
nuvens escuras se formavam. Hof Häusel continuava à luz do sol. O portão de
ferro forjado, a entrada para a casa, trazia a data 1934 e as iniciais W P,
Wilhelm Paderstein. E nossa vida transcorria tranquila.
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Haras Hof Häusel |
Cavalgar no grupo de equitação em
Wiesbaden era “funz”. A palavra para
fabuloso na nossa linguagem de então. O ponto alto era o corso no outono em Wiesbaden na Wilhelmstraße sob o júbilo das
massas e sob as janelas ornadas com as bandeiras da suástica vermelhas. Eu era
autorizada a cavalgar na ponta sobre um vistoso cavalo branco. Acompanhada à
direita e à esquerda por dois companheiros. As pessoas lançavam buquês de
flores sobre nós. Na cabeça uma grinalda com ásteres lilases e amarelos. A cor
de nosso clube de equitação. Um dia bem feliz na minha vida. Mas só por um
breve tempo.
Num ensolarado dia de outono,
tocou a campainha da casa. Tio Heini, meu grande amor, queria falar conosco.
Havia sido pressionado. Uma judia não tinha mais lugar na garupa de seus
cavalos. O que significou para mim o fim do mundo.
E aí vieram as leis. Arianos não
podiam mais trabalhar para judeus. Palavras como Rassenschande passaram a fazer parte do idioma alemão.
Começamos a nos ocupar com uma
imigração. Israel, Ragusa, Suíça, Côte d'Azur. Nenhum destes lugares se concretizou. Permanecemos em Hof
Häusel. Íamos pescar trutas no riacho. Trutas, que abocanhavam, gulosas, as
minhocas no anzol. De noite iam parar na caçarola. Uma refeição deliciosa.
Amigos vinham nos visitar.
Passava-se manteiga no pão, consumido com cidra num canto tranquilo. Hoje vejo
a fuga da verdade que ali existia. “Não queríamos acreditar em nada daquilo!”
Emigrar? Mas para onde?
Kurt Meyer, um grande amigo meu,
que gostava muito de mim, cujo pai era proprietário da cervejaria
Sonnenbrauerei em Mainz, deixou a Alemanha na calada da noite. E salvou sua
vida indo para a Suécia. Seu pai mais tarde se matou. Ernst Philipstal emigrou
para a África. Fazíamos planos. Queríamos casar. Não deu em nada. Meu amor não
era grande o suficiente e eu ainda era nova demais. O Sr. e Sra. Kass, nossos
amigos de longa data de Frankfurt, emigraram para a Inglaterra. Também Morels.
Werner Mankiewitz, um primo do meu pai. Nós o encontramos mais tarde em Buenos
Aires. Mary e Änne, as amigas de minha mãe. Tiveram sorte e conseguiram um
visto para os Estados Unidos.
À nossa volta estava ficando
vazio e quieto. Ehlert, nosso administrador com seus filhinhos e sua mulher,
deixaram-nos e choraram. Mina a arrumadeira, Hannah a cozinheira, também elas
nos deixaram. Só o Dr. Fernkorn, nosso preceptor, pôde ficar. Para nossa sorte
tinha uma mãe judia. Seu cargo de professor havia perdido. Sua nova missão era
preparar a nós, crianças, para a vida.
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Estados Unidos (1929) |
Outra vez veio uma nova lei.
Cavalos judeus não podiam mais correr nos hipódromos alemães. Não eram
suficientemente arianos. Em uma viagem a Berlim em visita à Vovó Lieschen, não
achamos nenhum restaurante e nenhum hotel, ainda que fosse para
tomar um copo d'água. Em todas as entradas e portas um aviso: judeus não são
bem-vindos.
Sim, a necessidade de uma
emigração se tornava premente. Tio Walter e Tia Eu de Königstein preparavam
seus papéis para o Brasil. Ali
trabalhava seu filho numa grande indústria química. Dava para comprar terras
lá. Candidatar-se a ir para a selva plantar café em Rolândia. A selva aguardava
os ingênuos emigrantes. Após muitos anos de dificuldades inacreditáveis na vida
diária, Rolândia havia se tornado um Eldorado.
O Brasil tornou-se nossa meta. Quase todas as fronteiras em 1938
estavam fechadas. Brasil, país
cuja língua desconhecíamos. Começamos a ter aulas de português. Mal se sabia
naquela época onde ficava a América do Sul!
As tarefas domésticas sem
empregada nem ajuda na enorme casa tornaram-se parte de minha vida diária.
Aprendi a fazer as camas. Aprendi a cozinhar, passar a ferro e costurar. Hof
Häusel foi até o fim o refúgio de muitas pessoas. Todas com o mesmo objetivo:
escapar do inferno de nossa terra natal.
Os cavalos foram vendidos. Menos
um problema. Reichsfluchtsteuer
[imposto sobre saída de capitais], todo tipo de taxações sobre judeus. Centenas
de milhares de marcos fluíram para o caixa de nosso perseguidor. E enfim a casa
também foi vendida. Em 8 de setembro,
aniversário de minha mãe, o cônsul brasileiro entregou-nos o visto para o Brasil. Era um visto para a família
“católica” Paderstein. E hoje aqui sou grata ao pastor de Brehmtal, que sem
hesitar com seu carimbo nos documentos salvou nossas vidas.
Era outono. E na manhãzinha de 30
de setembro de 1938 os
caminhões de mudanças estavam diante da porta. Com um grande buquê de flores de
outono do jardim nos braços de minha mãe, meus pais deixaram a segurança de uma
vida. Vovó Lieschen havia vindo de Berlim. Como pôde aguentar tudo aquilo? O
Dr. Fernkorn, junto comigo, Helga, seu grande amor, virou a chave da porta da
casa pela última vez na fechadura. Deixamos a casa e descemos o caminho pelo
bosque até Eppstein. Ali, onde uma curva no caminho estreito ia dar no bosque,
ficaram parados uma última vez. Heiner, como chamávamos carinhosamente o Dr.
Fernkorn, arrancou um galho de pinheiro e deu para mim com a promessa de sua
eterna lealdade. As agulhas do pinheiro numa caixinha com um Ex Libris “Emita
Luz, Helga Paderstein” entalhado por ele voltaram comigo para a Alemanha e
mantêm desperta a lembrança.
Depois o trem nos levou até
Frankfurt. De tarde, nunca esquecerei esse dia, Vovó Lieschen pegou o trem
expresso de volta a Berlim. Estava na janela de seu compartimento. O trem
partiu com atraso. Saberia ela que nunca mais veria sua filha e seus netos? Em
1943 ela se suicidou. O Brasil
havia fechado as fronteiras. Getúlio Vargas, um ditador, era germanófilo e um
fascista. Imigrantes judeus não conseguiam mais vistos. Na mesma noite um avião
nos trouxe à segurança da Holanda. Não antes que, devido ao controle de
transferência de divisas, nos tivessem depenado. Minha mãe chorava.
A emigração começou. Após alguns
dias em Paris,
onde moramos num pequeno hotel. Após nossa partida da Alemanha, quanto coisa
aconteceu.
Num navio francês viajamos rumo à
nossa nova terra natal. O Cruzeiro do Sul nos acompanhava no céu ao nos
aproximarmos do Brasil. A foice
da lua parecia diferente no céu. O calor, o sol, o mar azul fizeram com que
logo esquecêssemos que éramos emigrantes.
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O símbolo carioca, Cristo Redentor, braços abertos abençoando a cidade |
E aí chegou o dia em que nos
aproximamos do Brasil. A
maravilhosa praia branca acompanhou-nos durante o dia todo. Malas foram feitas.
A expectativa era grande. No final da tarde o navio chegou no Rio de Janeiro. O
símbolo carioca, Cristo Redentor, braços abertos abençoando a cidade, erguia-se
num pedestal de nuvens. Jamais esquecerei tal dia. O dia em que o Brasil se tornou nossa nova terra
natal.
Tudo era estranho. A língua.
Pessoas negras. Cabelos crespos. O calor do início do verão. A excitação. A
Europa e todos os seus perigos ficavam definitivamente para trás. O Cristo
Redentor continha-nos em seus braços protetores. Havíamos alcançado nosso
destino.
No porto nos aguardava um senhor
que não conhecíamos. Emigrantes não paravam de chegar, e era preciso ajudá-los.
Tudo tão estranho. Num táxi lotado, já no escuro, percorremos a Avenida Rio
Branco, a rua principal do Rio. Passava no meio da cidade. Admirados víamos as
muitas luzes. Admirados víamos a praia branca. Admirados víamos a confusão de
gente de todas as cores. E cansados chegamos em Copacabana em uma pensão
barata.
Desfazer as malas. A primeira
noite. O calor do verão brasileiro. O primeiro passeio na manhã seguinte ao
longo da praia. Novos conhecidos. Gente, emigrantes como nós que chegaram antes
de nós e já tinham alguma experiência da adaptação à nova vida.
Logo procuramos uma moradia. Mas
não antes de um grande susto. O cônsul brasileiro em Frankfurt, nosso amigo,
havia chegado no Cap Arcona, um navio alemão que ligava então Europa e Brasil. Queria falar conosco e nos
encontrou num pequeno hotel. Nós não falávamos sua língua, o português. O visto
católico era a razão de sua vinda. Ele ameaçou nos expulsar devido aos
documentos falsos. O que podíamos fazer? Tivemos que pagar tudo que ele exigiu.
E nosso já parco dinheiro minguou ainda mais.
Alugamos um apartamento
mobiliado. Ficava pertinho da praia. De manhã cedo, devido ao calor
insuportável, eu lavava nossas roupas, cozinhava e arrumava a casa. Depois
íamos à praia. A areia branca bonita, o mar, os morros e a queimadura de sol!
Íamos à feira. Laranjas, bananas,
abacaxis. Legumes de todas as cores e com nomes exóticos. Assávamos bolo de
banana. Não havia maçãs nem peras. A tudo nos adaptávamos. Aos domingos íamos
ao hipódromo. Com nossas apostas procurávamos ganhar algum dinheiro. Raramente
nossos cavalos chegavam na frente.
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Aos domingos íamos ao hipódromo |
A gente se reunia em um bar
alemão e bebia cerveja brasileira. E conversava sobre as últimas notícias da
Europa, que chegavam escassamente. Uma carta levava então ao menos quatro
semanas. Avião não existia ainda. A correspondência viajava de vapor para lá e para cá.
Enfim chegou nossa mudança após
três meses no Brasil. Havíamos
enquanto isso alugado um apartamento. Vazio, sobre uma padaria. De madrugada,
às três horas, as máquinas começavam a misturar a massa de pão e não dava mais
para dormir. O apartamento era pequeno. Os móveis, grandes demais. Uma grande
parte tivemos de vender. Mas enfim tudo ficou no seu lugar. Um ambiente
simpático e aconchegante. Cada um tinha seu quarto.
As preocupações eram grandes. A
pergunta tão ameaçadora: como prosseguirão as coisas? De que vamos viver? Meu
pai não havia aprendido uma profissão! Mas mesmo que tivesse, o que poderia
fazer com ela? Começar tudo de novo? Uma vida nova?
Procurei um trabalho. Minha irmã
foi mandada para o colégio e rápido aprendeu a língua portuguesa. Meu primeiro
emprego foi como babá. As crianças berrando eram uma praga.
Aí meu pai recebeu uma oferta.
Criar cavalos no interior do país. Entregamos o apartamento. De novo, tudo foi
empacotado. E meus pais deixaram o Rio de Janeiro. Bem longe de toda
civilização.
Com grande coragem enfrentaram a
nova vida inusitada. Em geral tudo transcorreu bem. Até o Brasil ser pressionado, em 1943, a
declarar guerra à Alemanha. Um navio com soldados brasileiros foi enviado à
Itália. Um grande cemitério sobre uma colina conta a história. Falar alemão foi
proibido. Papel preto era colado nas vidraças. Os alemães tornaram-se inimigos
dos brasileiros. Meus pais naturalmente também. Às pressas deixaram a fazenda
na calada da noite. Com um pequeno negócio filatélico que meu pai dirigia e
minha mãe, que também começou a trabalhar, ganhavam sua vida modesta.
Em 1945 deixei o Rio de Janeiro
para tentar a sorte em São Paulo. Em 1946 casei-me com Heinz Flatauer de
Marienburg. Pelo resto de minha vida meu grande amor.
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Minha irmã [Anita] casou-se em 1948 com Joaquim Korytowski |
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Em 1946 casei-me com Heinz Flatauer de Marienburg |
Minha irmã casou-se em 1948 com
Joaquim Korytowski, de Plauen. Tiveram três filhos. Mas após uns poucos anos
incomumente felizes o destino inevitável nos alcançou. Após seu terceiro filho,
Sylvio era seu nome, minha irmã contraiu câncer no seio. Tentou-se salvá-la com
todos os meios disponíveis naquela época. Em vão. Aos 33 anos ela nos deixou,
seus três filhinhos e seu marido, para sempre.
Meus pais mudaram-se para São
Paulo a fim de viverem perto de nós. Suportaram sua dor com uma dignidade
incrível. E a vida continuava.
Hof Häusel lhes foi devolvido e
depois vendido. Com esse dinheiro a vida deles se tornou enfim mais fácil.
Meu pai faleceu em 2 de julho de
1977, aos 83 anos, após uma breve doença.
Minha mãe seguiu-o em 1990 aos 93
anos. Fiquei sozinha. Em 1987 meu marido havia me deixado para sempre.
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“Meus pais”: Margarida e Guilherme |
Meus pensamentos voltam com
frequência ao Brasil. Em
pensamento visito os túmulos. Em pensamento converso com meus amigos. Aqueço-me
ao sol brasileiro. Penso com carinho nas pessoas ali. Pessoas com um espírito
aberto e amistoso.
Mas também aqui sou grata às
pessoas pelo tanto de amor e amizade que me concedem. Pelo tanto de amizade com
que me acolhem. Faço muitas palestras, que me enriquecem. Hof Häusel será para
sempre parte de minha vida. E talvez, quando penso a respeito, também no Brasil senti falta do farfalhar dos
bosques de pinheiros.
Em sonhos percorro os campos,
meus pensamentos voltados ao passado.
Saúdo todos vocês e encerro meu
relato. Gostaria de responder às perguntas de vocês. Uma espécie de debate.
Na torrente da vida vamos em
frente:
O passado fica para trás, novas
perspectivas se abrem.
Muita coisa boa passa por nós,
alguns penhascos temos de contornar.
E disto consiste a nossa vida.
Muito obrigada,
Vockenhausen, 4 de abril de 2008.