VIAGEM À BAHIA: ILHÉUS E SALVADOR


ILHÉUS

De manhã cedo, céu fortemente encoberto, garoa fina. Vastidão de praia a se perder de vista de ambos os lados. Entre as casas esparsas (incluindo nosso hotel, La Dolce Vita) e a faixa de areia, coqueiros, coqueiros, coqueiros... Coco da Bahia... Ondas baixas vão quebrando aos pouquinhos até chegarem, mansinhas, aos meus pés descalços. O murmúrio do mar.


Estou na antiga Vila de São Jorge dos Ilhéus, fundada em 1534, terra do cacau e de Gabriela, Cravo e Canela, para o lançamento presencial, em plena Festa Literária da Academia de Letras de Ilhéus, de O gigante e a bicicleta e outras belas crônicas (Editora Via Litterarum), coletânea de crônicas magistrais do ilheense Fernando Leite Mendes que desencavei do fundo do baú da Hemeroteca. Quem esteve à testa deste projeto foi o intelectual itabunense Cyro de Mattos, autor do texto introdutório. Presente ao lançamento o filho do autor, radialista Wilson Leite Mendes. Tanto eu como ele estamos aqui a convite de Pawlo Cidade, que preside essa academia, cultor contemporâneo do realismo fantástico ou mágico, gênero de que a América Latina de língua espanhola foi pródiga na segunda metade do século XX. O evento teve lugar às duas da tarde da quinta-feira (14/7/2022), na sede do sindicato rural. De manhã ministrei o workshop A Arte da Escrita para um pequeno, heterogêneo e simpático grupo.

Eu, Jorge Amado e Wilson Leite Mendes

Nos áureos tempos do jornalismo, quando ainda não tínhamos Internet, uma notável geração de cronistas literários, como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, deixou sua marca na literatura brasileira. O texto de jornal, assim como o grafite, é uma arte efêmera que tende a cair no esquecimento, mas esses cronistas tiveram a presciência de perpetuarem seus textos em livros que até hoje as pessoas compram e leem. Mas o Fernando, por levar uma vida muito agitada – foi jornalista (cobriu a campanha presidencial de Juscelino Kubitschek), magnífico cronista, radialista, editor de revistas, publicitário, apresentador de TV, chegou a atuar num filme, e ainda por cima era boêmio – quando enfim resolveu organizar seus textos em livros, foi pego de surpresa pela morte prematura aos 49 anos de idade, e assim, praticamente sem obra publicada (a não ser uma pequena coletânea de crônicas publicada postumamente em 1985 sem grande repercussão), caiu num injusto esquecimento.

Igreja Matriz de São Jorge, a mais antiga de Ilhéus, construída em 1556

O lendário cabaré Bataclam e o Bar Vesúvio de Gabriela, cravo e canela foram comprados e reabilitados por um empresário e agora funcionam como bem-sucedidos bares/restaurantes. A praga da vassoura-da-bruxa atingiu forte a lavoura do cacau, e agora a atividade turística tomou o lugar da cacaueira como base da economia local. “Barões” do cacau, ostentando sua riqueza, perderam-se no passado. Na noite da chegada vimos a Igreja de São Jorge, tombada pelo IPHAN, uma das mais antigas do país, cujo restauro está sendo iniciado. Os baianos, com sua fala mansa, são para lá de gentis e simpáticos. Aprendi que baiano burro nasce morto.

Na praça principal defronte à catedral ao final da tarde a sinfonia das maritacas, disputando em algazarra os galhos mais altos da árvore copada. À noite, lançamento coletivo de livros de autores locais no Palácio Paranaguá, antiga sede da Prefeitura, que abriga o Museu da Capitania de Ilhéus. 

ILHÉUS-SALVADOR (DE ÔNIBUS)

Partimos da rodoviária de Ilhéus ao meio-dia e 45 e só chegamos em Salvador quinze minutos antes das dez da noite, numa viagem que, depois que escureceu, parecia interminável. Durante o dia, podíamos ver extensões de matas nas vastidões, um ou outro bananal ou caminho de terra, levando a alguma propriedade, ou alguma casinha esporádica, ou grupo de casas, ou mesmo uns núcleos urbanos diminutos, nestes fins de mundo, algumas casas de tijolos aparentes, como nas favelas, ou rebocadas apenas na fachada, mas o que predominava era a vegetação, colinas acima, vales abaixo.


Baiana de Marcos Costa, 2021

Salvador não é para qualquer um. Tem gente que adora, tem gente que odeia. Primeira capital do Brasil, preserva um centro histórico homogêneo, enquanto no Rio de Janeiro as edificações históricas sobrevivem em meio aos prédios modernos. Rio, cidade de contrastes arquitetônicos. Já o centro histórico soteropolitano é como se fosse uma Ouro Preto, uma Parati, só que cercado por uma cidade moderna. Com quase três milhões de habitantes, a terceira maior cidade do país.

Imaginem o deslumbramento do turista europeu ao adentrar a área do Pelourinho, com seus capoeiras, baianas em trajes típicos vendendo acarajés, fitinhas do Bonfim, casas multicoloridas, bandas de percussão, predominância de população negra e mestiça. Para amar Salvador, você precisa de um mínimo de empatia com o africanismo. Não precisa ser um africanólogo como o Alberto da Costa e Silva, mas deve ter um mínimo de amor pela Mãe África. A Bahia fica na mesma latitude de Angola, país que já visitei (como você pode ver clicando aqui). O sol aqui bate quase tão forte como lá. O baiano em geral é afável. Na noite da chegada, ao darmos uma primeira volta nas imediações do hotel (o Bahiacafé, na Praça da Sé), passando por uma barraca de pastéis, alguém nos chamou (vem provar o melhor pastel”), estávamos com fome, sentamo-nos a uma mesinha, pedimos uma cerveja, e de repente estávamos conversando animados com um grupo que incluía a Lenira, moradora da Cidade Baixa, que veio de um baile e após umas biritas estava para lá de animada, Marinês, aniversariante, dona de um boxe no Mercado Modelo “com a melhor moqueca” (prometemos ir lá no dia seguinte), seu marido Jackson, um negão com uma camiseta estampando a bandeira da Suíça... Em Salvador (como em qualquer cidade grande) você precisa ter cautela com seus pertences, e aqui em especial sofre assédio de pedintes insistentes e até intimidadores, mas se for dominado pelo medo e evitar todo e qualquer contato com os locais, perderá muito do encanto, da bonomia, do gosto pela conversa, do sotaque saboroso, da alma festeira do baiano.

 


SALVADOR (1o DIA)

Quem disser que esta é a cidade de Castro Alves estará dizendo apenas meia verdade. Se disser que esta é a cidade de Rui Barbosa estará também dizendo apenas meia verdade. Entre o espírito libertário e o espírito liberal vive a Bahia.

Jorge AmadoBahia de Todos os Santos

O primeiro dos três dias na antiga capital colonial situada na entrada da Baía de Todos os Santos  que Portugal escolheu para a administração centralizada por estar equidistante das extremidades do território da colônia, como lemos no site do IPHAN  dedicamos a conhecer o tão colorido, sonoro e fotogênico (como bem mostram as fotos à frente) núcleo histórico no centro da cidade. Começamos pela Catedral Basílica do Santíssimo Salvador. Ninguém melhor que Alexei Bueno para nos apresentar esse templo de grandiosas dimensões, revestido interna e externamente de pedra de lioz portuguesa e construído para rivalizar com as igrejas da metrópole. A seguir transcrevo o capítulo “Catedral Basílica, Salvador”, à página 52 do álbum Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil, com que tive a sorte de ser presenteado pelo próprio Alexei.

 

Catedral Basílica de Salvador

Quanto à fachada, é um cruzamento do tipo de fachada jesuítica italiana, de Giacomo della Porta e Vignola, sem torres e com frontão em volutas, com o tradicional português, com duas torres

A Catedral Basílica de Salvador é, na verdade, a Igreja do Colégio de Jesus, que se erguia na imediata vizinhança da Sé velha, a Sé Primacial do Brasil, demolida juntamente com dois quarteirões dos mais antigos do centro histórico em 1933.

Com a chegada dos jesuítas na fundação da primeira capital, em 1549, foi erigida a primeira igreja, em taipa de pilão e cobertura de palha. Em 1553 ergueu-se a segunda, e entre 1561 e 1572 a terceira, construída por Mem de Sá. Entre 1575 e 1591 foi construído o segundo Colégio, com projeto do jesuíta Francisco Dias. Em 1604, finalmente, começam as obras da igreja atual, a quarta do Colégio de Jesus. Entre 1657 e 1672 é erguido o terceiro Colégio, e em 1692 chegam de Portugal as pedras para a “nova igreja”, seguramente o seu revestimento externo e interno em lioz, vindo pronto da metrópole, o que a faz, de certa maneira, uma igreja quase pré-fabricada, mais portuguesa do que brasileira. De 1701 data o término do teto em madeira da nave, e de 1707 é o altar de mármore italiano da sacristia. Em 1759 são os jesuítas expulsos do Brasil, e em 1765 a igreja é restaurada por José Antônio Caldas e Manuel Cardoso do Saldanha. Em 1781 é elevada à dignidade de catedral, e em 1795 o antigo Colégio é transformado em hospital, adaptação dirigida pelo Capitão Manuel Rodrigues Teixeira. Em 1801 o pátio dos Estudos Gerais é destruído por um incêndio. Sete anos depois instala-se no antigo Colégio o hospital militar, até que em 1833 é nele criada a histórica Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1905 um incêndio – outro desses correntes incêndios que tão constantemente continuam atingindo o patrimônio de Salvador –destrói a Faculdade de Medicina, e com ele uma importantíssima capela jesuítica das mais antigas do Brasil. A igreja, felizmente, nada sofre, nem a ala de celas anexa à sua lateral, numa das quais, grande relíquia histórica, viveu e morreu, em 1697, o padre Antônio Vieira. Sobre as ruínas do Colégio é reconstruída, com feição neoclássica, a Faculdade de Medicina.

A planta é de nave única

Essa monumental igreja, talvez o mais belo monumento de arquitetura religiosa seiscentista no Brasil – ao lado da de São Bento, do Rio de Janeiro –, foi construída, de acordo com o Padre Simão de Vasconcelos, então reitor do Colégio, para rivalizar com as maiores de Portugal. Sua planta é aparentada com a da Igreja do Espírito Santo de Évora. Lúcio Costa crê poder atribuir seu risco ao irmão Francisco Dias, construtor do segundo Colégio e ajudante de Felipe Terzi em São Roque de Lisboa. Quanto à fachada, é um cruzamento do tipo de fachada jesuítica italiana, de Giacomo della Porta e Vignola, sem torres e com frontão em volutas, com o tradicional português, com duas torres. Daí talvez o acanhado das duas torres sineiras em relação ao frontão e certa deselegância lateral das mesmas, na parte, diga-se de passagem, onde a vista foi aberta pelas nefandas demolições que resultaram na Praça da Sé. A fachada é dividida verticalmente em cinco planos, por pilastras dóricas superpostas. As três portas monumentais são encimadas por frontões partidos, coroados cada um por um nicho com um santo.

O teto em abóbada de caixotões, da passagem do século XVII para o XVIII, é magnífico

A planta é de nave única ladeada por capelas, transepto inscrito no retângulo da nave e capela-mor ladeada por duas capelas e dois corredores de acesso à sacristia. O teto em abóbada de caixotões, da passagem do século XVII para o XVIII, é magnífico, assim como toda a talha interna, que documenta vários períodos da execução de retábulos no Brasil, destacando-se os altares dos Santos Mártires e das Virgens Mártires, de linha puramente renascentista e vindos provavelmente da igreja jesuítica anterior. Esses dois retábulos quinhentistas são dos mais preciosos da arte sacra brasileira.

talha interna, que documenta vários períodos da execução de retábulos no Brasil

Menção à parte, finalmente, tem que ser feita para a sacristia [que infelizmente não estava aberta à visitação], de dimensão e beleza extraordinárias, a mais rica da arquitetura religiosa luso-brasileira, e talvez mesmo, simplesmente, o mais extraordinário espaço interno construído no Brasil. Não se sabe, nessa sacristia, o que mais se admirar, se o magnífico teto com os retratos dos padres da Companhia, se os três altares de mármore policromo, o central italiano e os laterais portugueses, se os arcazes incrustados de marfim e tartaruga, se as dezesseis pinturas sobre cobre que os encimam, de rara qualidade, se o lavabo, o piso ou outros elementos.

 

Depois enveredamos pela área revitalizada do centro histórico, buliçosa, colorida, policiada, tomada por turistas e baianos festeiros (em contraste com a parte decadente do centro vedada ao turista por falta de segurança segundo a opinião unânime). Os telhados de telhas, as ruas de calçamento pé-de-moleque tradicional, os largos, os becos (que você apenas olha mas não adentra), a arte de rua, a banda de percussão (Tambores e Cores), as ladeiras, os quadrinhos de Salvador à venda, que enchem os olhos mas como que produzidos em série, as igrejas, a casa velha com fachada de azulejos em estilo lisboeta, as sacadas, as crianças que posam para uma foto e depois pedem um trocadinho, os lampiões, a escadaria defronte à igreja do Santíssimo Sacramento do Passo onde Zé do Burro tentou em vão pagar sua promessa no filme vencedor da Palma de Ouro O Pagador de Promessas... tudo isto, já que careço do poder descritivo de escritores geniais como Pedro Nava, fui registrando em fotografias, algumas das quais compartilho aqui:

Igreja da Ordem Terceira de São Domingos Gusmão

telhados de telhas

os becos (que você apenas olha mas não adentra)

a banda de percussão (Tambores e Cores)

a arte de rua

a casa velha com fachada de azulejos em estilo lisboeta

as ruas de calçamento pé-de-moleque tradicional

as crianças que posam para uma foto e depois pedem um trocadinho

os lampiões


As ladeiras quadricentenárias que ligam a Cidade Alta à Cidade Baixa não são consideradas seguras para se transitar, o que frustrou meu plano de descer pela sugestiva Ladeira da Misericórdia (a do Rio foi vítima da demolição do Morro do Castelo, só restando um diminuto fragmento). No site do IPHAN lemos: “O conjunto urbanístico e arquitetônico contido na poligonal do centro histórico de Salvador – declarado Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco em 1985 – é um dos mais importantes exemplares do urbanismo ultramarino português. Com seus becos e ladeiras, acolhe um dos mais ricos conjuntos urbanos do Brasil, implantado em acrópole e distinguindo-se em dois planos as funções administrativas e residenciais (no alto) e o porto e o comércio (à beira-mar).” Pois bem, esses “becos e ladeiras”, que eu gostaria tanto de percorrer, como faço no Rio de Janeiro (por exemplo, nos morros da Zona Portuária), estão vedados aos turistas, por não serem considerados seguros. O mapa de Salvador oferecido no escritório de informações turísticas no Largo Terreiro de Jesus distingue em amarelo as ruas que o visitante “pode” percorrer, devidamente policiadas, daquelas que deve evitar. E se você pergunta a qualquer pessoa se pode adentrar uma destas ruas proibidas, todos são unânimes em dizer que não, que você corre risco lá. Como se o Estado tivesse desistido de policiar essas ruas e de alguma forma “legalizado” o assalto ao turista ali. Com isso, a mobilidade do passeante que, como eu, gosta de percorrer os meandros de uma cidade fica limitada, privando-o de ver ao vivo, por exemplo, importantes casarios coloniais como o Solar Berquó e a Casa dos Sete Candeeiros, limitando-se a vislumbrá-los no Street View do Google.

Solar Berquó

Recomenda-se descer à Cidade Baixa pelo Elevador Lacerda, que cobra módicos 15 centavos – você se livra daquelas moedinhas de cinco e dez centavos que atulhavam seu porta-níqueis. Aos pés do elevador, uma zona que lembra a da Central do Brasil reúne a escória soteropolitana – numa obra de romancista russo ou crônica de João do Rio, tudo bem, mas ao vivo e a cores é... disgusting como dizem os anglo-saxões. Na entrada do Mercado Modelo (que eu já fotografara lá do alto) um pedinte me abordou com certa assertividade, tentando bloquear meu caminho. No mercado descobrimos que o bar da Marinês (aquela que anteontem comemorou seu aniversário na barraca de pastéis da Praça da Sé), que serve a melhor moqueca do pedaço, não passa de um espelunca – conversa de bêbado é como de pescador, trilha vira robalo. O pretendido passeio ao Forte de São Marcelo, trezentos metros ao largo do cais, onde tirei uma foto nos velhos tempos de jovem cabeludo, não foi possível – com a pandemia, as visitas foram descontinuadas.

Elevador Lacerda

Mercado Modelo

Eu no Forte São Marcelo em julho de 1973

Na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, revestida externamente de pedra de lioz portuguesa e com nave poligonal, que estava sendo decorada para um casamento, o vigia deixou que entrássemos só rapidinho. De volta à Cidade Alta, depois de surpreendidos por enorme arco-íris, encerramos a jornada enchendo o estômago com delicioso abará + vatapá + pirão + arroz + cerveja artesanal baiana no Boteco do Viajante, recomendado de manhã pelo simpático vendedor de pinturas de Salvador que simplesmente abandonou seu posto para nos mostrar os arredores da loja. Baiano tem dessas gentilezas...

 

Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia

Paço Municipal

Arco-íris sobre Salvador


SALVADOR (2o DIA)

Baiano é conversador, e em pouco tempo você fica sabendo a vida das pessoas: o recepcionista noturno do hotel que se apaixonou por Salvador e por aqui ficou; o motorista de aplicativo abandonado pela esposa que acha que as mulheres só se interessam por dinheiro e não encontra sua alma gêmea; a dona da barraca de pastéis defronte ao hotel que, apesar das vicissitudes, como a perda recente de pai e mãe, não perde a alegria de viver; o garçom do Boteco do Viajante que foi criado na Itália, onde mora sua mãe, e acha que lá o nível de vida é melhor, mas um filho o reteve aqui.

Igreja do Bonfim

No segundo dia de Salvador, ziguezagueamos pela cidade, por obra e graça do Uber – embora o trecho inicial fizéssemos com o Aloízio, simpático taxista de meia idade, voz pausada, certo sotaque de algum interior baiano, que no percurso ia mostrando os marcos da cidade, esta é a Praça Castro Alves, ali fica o cais do porto... Dois dias depois, foi ele quem nos levou ao distante aeroporto por um preço combinado de noventa reais – anote seu Whatsapp: (71) 98766.8879.


azulejos portugueses representando cenas bíblicas

Primeira parada, Basílica do Senhor do Bonfim, ou simplesmente Igreja do Bonfim, cuja lavagem da escadaria com água de cheiro por uma procissão de baianas, na Festa do Senhor do Bonfim, faz parte do imaginário dos brasileiros. Igreja de nave única, altares neoclássicos, ladeada por corredores em arcada com  azulejos portugueses representando cenas bíblicas, sua fachada, parcialmente revestida de azulejos brancos, é coroada por frontão rococó e torres com terminação em bulbo. Por ser domingo, a igreja pululava de gente, muitas vindas para a cerimônia de batismo coletivo de crianças. A grade do adro recoberta de fitinhas do Senhor do Bonfim que os fiéis amarram fazendo pedidos.

fitinhas do Senhor do Bonfim


De Bonfim rumamos para Monte Serrat, com sua singela igrejinha e mosteiro anexo, erguidos em meados do século XVII sobre uma rocha, o alpendre lembrando as capelas rurais, como a de Nossa Senhora da Cabeça no Jardim Botânico carioca. “No conjunto, a ermida, o pequeno mosteiro e a sua magnífica implantação criam um todo de extraordinária beleza”, diz Alexei Bueno no livro já citado. A duzentos metros ergue-se o forte de mesmo nome, construído na década de 1580, “o modelo mais antigo do sistema defensivo de Salvador, durante o período colonial brasileiro”, segundo placa informativa do Exército, e “uma das mais belas construções militares do Brasil”, segundo Alexei. A quatrocentos metros do forte, no Largo da Boa Viagem, a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem (que estava fechada), finalizada em 1746, abriga a galeota “Gratidão do Povo”, que conduz as imagens do Senhor Bom Jesus dos Navegantes e de Nossa Senhora da Boa Viagem na tradicional procissão marítima do primeiro dia do ano.

Monte Serrat, com sua singela igrejinha e mosteiro anexo

forte de mesmo nome, construído na década de 1580

Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem

Em seguida fomos visitar o elegante solar de três pavimentos, envolvido por varandas de ferro fundido, cujo acabamento foi totalmente realizado com materiais importados (ver site do IPHAN), que o abastado exportador de carnes Francisco Amado Bahia mandou erguer no princípio do século XX na orla da Ribeira. “Ele possuía mais de 300 açougues e muitas fazendas espalhadas por todo o Estado com milhares de cabeças de gado”, informou o blog do Reynivaldo Brito em 3/8/2017. O solar ainda conserva a capela com entalhes dourados no primeiro andar. O grande salão apresenta paredes revestidas de espelhos franceses, piso de parquete e teto em estuque com sancas molduradas. Os quartos e outros salões têm assoalhos de pinho de riga. Tetos e paredes exibem pinturas atribuídas a Badaró (o pai), conhecido por ter pintado muitos tetos de casarões e até igrejas da Bahia.

Solar Amado Bahia

capela com entalhes dourados no primeiro andar


“Com a morte dos 13 filhos , os herdeiros, cerca de 60 netos, doaram o Solar em 1956 para a Associação dos Empregados do Comércio construírem um sanatório no local. Dez anos depois a Associação desistiu de construí-lo, e a sua diretoria resolveu com anuência dos herdeiros instalar uma escola, o Centro Educacional Amado Bahia, que funcionou durante alguns anos. Assim, os quartos, salas e salões antes ocupados por senhores e senhoras fidalgas, foram reocupados por sindicalistas e depois por estudantes.” (transcrito do Blog do Reynivaldo Brito) Tombado pelo IPHAN em 1981, o imóvel acabou sendo subutilizado e se dilapidando, e em 2017 foi a leilão para o pagamento de uma dívida trabalhista da Associação dos Empregados do Comércio. Um empresário do ramo do sorvete acabou arrematando, restaurando e lá instalando um museu do sorvete, com uma sorveteria anexa, e abrindo o solar à visitação do público.

orla da Ribeira


De lá pretendíamos visitar a Casa do Rio Vermelho, onde moraram Jorge Amado e Zélia Gattai, mas fomos barrados por não termos trazido o “passaporte vacinal”, o comprovante de vacinação contra a COVID-19 – algo que, a esta altura, nem nos aviões se pede, mas que a prefeitura de Salvador, que administra a casa, insiste em exigir.

fotografia junto à estátua em tamanho natural do Jorge e Zélia sentados no banco com seu cãozinho

No Largo de Santana, que abriga a Igreja de Santana, diante da qual tirei fotografia junto à estátua em tamanho natural do Jorge e Zélia sentados no banco com seu cãozinho, saboreamos o acarajé da Regina que, grandão, bem servido de camarões, cebolinha em vez de cebola, nos agradou mais do que o da Dinha, naquele mesmo largo. Após um descanso no hotel, à noite saímos sem celular, sem câmera, sem cartão bancário, para um passeio noturno pelo centro histórico agora tomado por pedintes.

 

SALVADOR (3o DIA)

lavabo em mármore de Alentejo, estilo D. João V

Duas horas durou nossa visita às contíguas igrejas de São Francisco de Assis e a da Ordem Terceira desse mesmo santo, a primeira ostentando deslumbrante talha barroca folheada a ouro (segundo a tradição, quase mil quilos de ouro em pó foram utilizados no douramento da talha) e a segunda, cuja talha barroca original foi substituída no século XIX por uma nova decoração neoclássica, formando, com a sacristia, pátio interno, secretaria, sala da mesa e outros corredores, escadas e aposentos, um conjunto de preciosas obras de arte, alfaias e pinturas, destacando-se o lavabo em mármore de Alentejo, estilo D. João V, da primeira metade do século XVIII e azulejos portugueses do século XVIII retratando a entrada em Lisboa do cortejo régio das bodas do herdeiro do trono, D. José do Brasil, filho de D. João V, com a princesa D. Ana Vitória da Áustria.

Ninguém melhor do que Alexei Bueno para nos descrever estes dois templos:

 

IGREJA E CONVENTO DE SÃO FRANCISCO (1708)

A fachada inteiramente de arenito ladeada pelas duas torres em alvenaria caiada, com fortes cunhais, é de admirável elegância

Em 1587, os franciscanos fundam um convento em Salvador. Um século depois, em 1686, Frei Francisco das Chagas inicia as obras de uma construção de grande envergadura para o mesmo. Em 1708 é colocada a primeira pedra da igreja, já estando pelo meio as paredes do claustro. Consagrada em 1713, a igreja é concluída dez anos depois. De 1733 a 1737 o seu teto é pintado e decorado por Frei Jerônimo da Graça, na mesma época sendo colocados os azulejos da capela-mor. Na década de 1740 conclui-se a arcada do claustro, começa a douração da capela-mor e dos altares laterais, é realizado o piso da capela-mor por Frei Manuel do Nascimento e chega de Portugal o retábulo de Nossa Senhora da Glória. Em 1751 é executado o forro da biblioteca e no ano seguinte terminam as obras do claustro, com a colocação dos painéis de azulejos.

A igreja do Convento de São Francisco de Salvador, um dos maiores monumentos religiosos do Brasil, é mesmo o modelo mais característico e divulgado da “igreja de ouro” entre nós, esse estilo de exuberante decoração barroca surgido na metrópole no século XVII, sempre de grande efeito no imaginário popular, como as outras igrejas todas douradas, São Bento e São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro, Capela Dourada do Recife, Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, entre outras

“igreja de ouro”

Com fachada monumental voltada para a Praça Anchieta – onde se ergue o tradicional cruzeiro franciscano –, que vai se unir ao Terreiro de Jesus, com a Catedral Basílica, localiza-se em um dos pontos privilegiados, talvez único, do urbanismo colonial brasileiro. Sua fachada lembra a da Matriz de Maragogipe, embora o trabalho das três portadas de arco pleno em pedra, a do centro mais alta, recorde as magníficas portas da demolida Sé de Salvador. A fachada inteiramente de arenito ladeada pelas duas torres em alvenaria caiada, com fortes cunhais, é de admirável elegância. Como a igreja do Colégio, atual Catedral Basílica, a sua fachada é dividida por duas ordens de colunas superpostas. O frontão em volutas, de grande monumentalidade, segue o estilo já encontrado na igreja do Convento de Cairu e em Santo Antônio do Paraguaçu.

azulejos portugueses

A planta é em três naves, com três capelas laterais de cada lado, talvez influenciada pela planta de São Francisco do Porto. O convento [que infelizmente não estava aberto à visitação] desenvolve-se de forma tradicional, com dois pavimentos em torno de um claustro quadrado, e abriga sob suas arcadas um dos maiores conjuntos de azulejos portugueses no Brasil, além dos localizados no corpo da igreja, que se beneficia do belíssimo contraste do azul e branco dos mesmos com o dourado da decoração exuberante. Merecem destaque a biblioteca do convento, de extraordinária decoração, e o teto da capela-mor e da nave da igreja, em caixotões e painéis octogonais e quadrados, além da pintura ilusionista do teto da portaria do convento, atribuída a José Joaquim da Rocha. Em recuo, à esquerda da fachada, escondida pelas casas da Praça Anchieta, ergue-se a monumental fachada plateresca da Ordem Terceira, que, com a Igreja de São Francisco e o convento, constitui um dos mais monumentais conjuntos da arquitetura religiosa no Brasil. (Transcrito de Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil)




IGREJA DA ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO (1702)

A fachada da igreja, única no Brasil, foi esculpida em calcário em exuberante estilo plateresco

Anexa à Igreja e ao Convento de São Francisco, com os quais formam um conjunto único, o portal do adro e a fachada da Ordem Terceira causam um monumental impacto ao passeante que dobra inadvertidamente da Praça Anchieta para a Rua Inácio Accioli.

A Ordem Terceira de São Francisco da Bahia foi fundada em 1635 por Frei Cosme de São Damião. Na década seguinte já estavam concluídas a primitiva igreja e a sala da mesa. Em 1702, demolido o conjunto primitivo, é assentada a primeira pedra da igreja atual, com risco de mestre Gabriel Ribeiro. A inauguração ocorre no ano seguinte. Em 1827, considerando se deteriorada a talha barroca, é ela substituída por talha neoclássica, da autoria de José de Siqueira Torres. Em 1831 são abertas duas portas novas no frontispício, e em 1834 o piso de madeira da nave é substituído por mármore. No ano seguinte assenta-se a grade de ferro que divide a nave. Em 1869 é reformada a sacristia, com a talha do forro e dos altares encomendada a mestre João Simões Francisco de Sousa.

sala da mesa

Igreja de nave única, com corredores laterais, tem à direita a casa dos santos, com altar e vinte e cinco nichos onde se guardam as imagens de procissão, todos entalhados em 1844 por mestre Aquim Francisco de Matos Roseira. O conjunto arquitetônico, erguido em forte declive, possui dois pavimentos na parte fronteira e três, além de subsolo, onde se encontra o ossuário da ordem, na parte posterior. A fachada da igreja, única no Brasil, foi esculpida em calcário em exuberante estilo plateresco, mais encontrado na América espanhola. Essa fachada magnífica, por incrível que pareça, permaneceu longo tempo oculta por uma camada de argamassa, até ser redescoberta ocasionalmente já no século XX. Na opinião de Germain Bazin ela poderia ser uma transposição em pedra da talha barroca original da nave, infelizmente substituída, como já dissemos, por uma decoração neoclássica na década de 1820.

teto da nave

Merece destaque na igreja o teto da nave, principiado por Franco Velasco em 1831 e concluído dois anos depois, após a sua morte, por José Rodrigues Nunes. Os tetos da secretaria e da sala da mesa, da mesma década, são atribuídos a Antônio Roiz Braga, sendo os da casa dos santos e da sacristia, já da década de 1870, da autoria de Cunha Souto. Nos altares laterais da nave há seis painéis de mestre Teófilo de Jesus. Em todo o conjunto encontra-se notável conjunto de azulejos, alfaias, pinturas e mobiliário. (idem)

 

Eu pretendia arrematar a exploração do Centro Histórico seguindo a Rua Santo Antônio e visitando dois solares setecentistas, Solar Berquó e Casa dos Sete Candeeiros, mas me desaconselharam esse passeio por se tratar de uma área perigosa onde eu poderia ser assaltado. O Centro de Salvador tem essa característica de estar dividido numa parte turística, bem policiada que você pode visitar e uma parte “proibida”, degradada, onde a polícia (ao que parece) deixa os meliantes agirem em paz e o turista é simplesmente dissuadido de entrar. O próprio mapa turístico da cidade histórica obtido nas Informações Turísticas no Largo Terreiro de Jesus distingue a parte “permitida” com a cor amarela. Assim, minha visita aos solares tem que se restringir ao Street View do Google.

icônico Farol da Barra

Do Centro um Uber nos levou ao icônico Farol da Barra, que vemos nas cenas do Carnaval baiano exibidas na televisão, situado na entrada da Baía de Todos os Santos, na ponta de terra onde se assentou, em 1501, um marco garantindo a posse da terra pelos portugueses. Numa época em que invasores e corsários holandeses, franceses e ingleses cobiçavam e atacavam a colônia portuguesa no Novo Mundo, o Forte de Santo Antônio da Barra, o mais antigo do país, erguido em 1534, originalmente uma trincheira em terra socada, areia solta e taipa, defendia a cidade, que chegou a cair em mãos batavas de maio de 1624 a março de 1625. No final do século XVII, ganhou a forma irregular de uma estrela com quatro faces reentrantes e três salientes, que ainda preserva. O Farol agora abriga um museu náutico e histórico e você pode subir por uma escada em caracol os 87 degraus até o alto do farol, algo que eu, que sofro do mesmo mal do herói do filme hitchcockiano Vertigo (Um corpo que cai), preferi não fazer. 

Praia do Farol da Barra, Morro do Cristo e antigo Méridien ao fundo, depois Pestana, agora fechado. Nele me hospedei nas minhas primeiras férias do primeiro emprego, na Superdata, em 1977.


Uma forte chuvarada nos surpreendeu à saída, mas mesmo assim nos aventuramos um pouco na intempérie e acabamos sendo salvos por um providencial táxi, cujo motorista no percurso de volta ao hotel nos contou histórias de enchentes, desabamentos, pessoas que desapareceram em rios, bueiros. Numa das suas histórias de pescador, estava numa festa em casinha na encosta de um morro quando a cerveja acabou, fizeram uma vaquinha para comprar mais, ele saiu com um grupo para providenciá-la e, ao voltar, cadê a casa? Desabou, só sobrevivendo um cachorrinho. A corrida acabou saindo pelo mesmo preço que nos custaria a viagem pelo Uber.

À noite, despedida de Salvador com a moqueca de camarão e peixe do Odoyá, restaurante de altíssima qualidade, perto do hotel. Mesmo dividindo uma moqueca para uma pessoa (existe a opção para duas), a conta saiu quase 200 reais. A sobremesa, doce de coco encimado por sorvete de coco, divina. Na volta, noite de segunda-feira em que os quiosques de rua estão todos fechados, você é abordado por todo tipo de gente possivelmente mal intencionada.

Por essas e outras, tem gente que adora Salvador e tem gente que detesta. Nós adoramos.

PS. Recomendação de leitura para quem vai visitar as igrejas de Salvador: Basílicas e Capelinhas, de Biaggio Talento e Helenita Monte de Hollanda.


4 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Ivo! Muito bom! Eu amo Salvador!!

Cyro de Mattos disse...

Ivo, parabenizo-lhe pelo registro admirável de sua viagem histórica a Salvador de Bahia. Uma beleza, uma riqueza, uma proeza de sopa no mel. Como baiano agradeço, como escritor aplaudo seu fôlego e sensibilidade incrível pra o registro certeiro da Bahia histórica, que povoa nosso imaginário desde os tempos de adolescente quando passei como estudante mais de dez anos por aquelas plagas de lá. Obrigado por ter me enviado sua reportagem memorável sobre Salvador de Bahia. (enviado por e-mail e inserido aqui pelo editor do blog)

Anônimo disse...

Ivo, gostei muito do seu relato sobre Salvador, as igrejas, a sociologia do baiano, seu temperamento, seus costumes, enfim a sua gente.
Você é um atento observador de tudo, do que está fora, os monumentos, a arquitetura, a igreja, a viela, o farol, as ruas de pedra e das características dos sua população da sua “ alma” a sua religiosidade, formas de agir, o seu afeto, sua moleza, a cor da sua pele, a forma como gostam de puxar uma conversa com um turista com um estranho. Nada lhe escapa. Parabéns, você é um grande observador da vida! É um ótimo escritor.

Geraldo Reis Poeta disse...


DE ILHÉUS A SALVADOR - DE IVO KORYTOWSKI - RELATO DE VIAGEM
Reencontro nesse relato, a pena magistral de Ivo Korytowski dando, mais uma vez, lição de texto, de sensibilidade, de como ir a Ilhéus e a Salvador / Bahia e extrair outra beleza da beleza local (pessoas, cores, coisas, costumes e monumentos). Mais do que um relato de viagem, estamos diante um livro saboroso e inesquecível.
A reportagem, riquíssima de informações é, também nesse aspecto, uma fonte de pesquisa com nomes, datas e descrições dos monumentos, tudo feito com “olhos de lince”.
O fato é que ao mestre (Ivo é um mestre) não escapam detalhes e curiosidades. Só quem ama e dá atenção ao detalhe é capaz de ouvir e de entender a Bahia e sua riqueza (Ave, Olavo Bilac).
Só quem ama é capaz de ver e captar o lado invisível e até o avesso da cidade.
Ouso dizer que a alma do soteropolitano pulsa nos detalhes.
A presença de personagens introduzidos no texto é outra coisa deliciosa, mas que não ouso revelar para não quebrar o encanto, a surpresa da leitura. Tem gente e coisas e cores pulsando em cada capítulo desse trabalho magistral.
Assim, o que poderia ser um simples relato de viagem, vem a ser importante trabalho de pesquisa sobre Ilhéus e, principalmente, sobre Salvador.
Com essa nova lição de texto, ultrapassando limites, Ivo Korytowski nos dá de presente essa joia, coisa rara nos tempos atuais, joia que a Bahia deve agradecer e divulgar.
(Geraldo Reis – Belo Horizonte, 26/07/2022)