VALDEZ


Em 1999, quando lancei minha Caixinha de Surpresas, talvez a primeira revista eletrônica de poesia a circular na Internet, conheci uma série de poetas que faziam do ciberespaço seu canal de divulgação (que denominei Geração Internet), entre eles Valdez, de João Pessoa. Valdez de Oliveira Cavalcanti mantinha um site muito bonito, Cancioneiro, que a esta altura do jogo parece que saiu do ar. Em e-mail que me enviou, contou: "Gostaria, realmente, de dedicar-me à poesia. Falta tempo, sou advogado. Vez ou outra surpreendo os nossos juizes com uma petição em versos, para fugir à rigidez do linguajar jurídico. Mas estudo, e daqui a alguns anos, garanto, saberei tudo sobre poesia como compensação por não ser um bom poeta." De Valdez aprecio, em especial, o soneto "Ser Criança":

SER CRIANÇA

Pisar no lodo, chafurdar na lama;
Cara no vento, flauteando flores...
Na inocência..., não saber de amores...;
Não se queimar na perigosa chama...

Pular, correr, viver com desatino,
livre do pejo, dor..., ansiedade...
Não ter paixões..., jamais sentir saudade!
Curtir a vida simples de menino.

Pião na mão, caniço, baladeira...
Nunca pensar..., viver de brincadeira;
Nunca guardar rancores ou lembrança.

Desejo de esquecer esses teus olhos,
Que são na minha vida meus abrolhos...
Vontade de voltar a ser criança!

VERA TAVARES


Vera Tavares nasceu na pequena Aracaju - "onde as estrelas brilham com mais intensidade e o sol nasce mais disposto, mais alegre" - mas vive no Rio de Janeiro. Diz Vera: "Do céu recebi o maior e melhor presente - ter nascido poeta. Original passaporte. Aceito em qualquer mundo." O poema abaixo é de seu recente (e surpreendente) livro Camarim do tempo (Oficina do Livro).

SONHO AO CONTRÁRIO

Vive a sonhar o poeta, um viciado.
Sonha de todo jeito: dormindo, acordado,
dentro de um cubo, no ápice de um prisma,
ou simplesmente em linha reta.
Tem uma queda pelas paralelas.
Brinca com as letras:
espreme, estica o alfabeto.

As letras esvoaçantes vão e voltam
e caem numa folha de papel.
Ajeitam-se, pouco a pouco, e formam um verso.
Verso que vira versos. Poeta-criador
— usina de idéias. Idéias hilariantes, mirabolantes.
Poeta-palhaço — vê tudo ao contrário.
Arruma, quando acorda, um por um os paradoxos.

Segue em busca de novas aventuras.
Levam-no, a plagas distantes, os antagonismos.
Mexendo, incitando a memória refazem-se histórias.
Trocam, as palavras, de significado.
Poeta-mágico, semântica retocada,
surpreendente fonte brota, aflora.
No lugar da dor faz nascer o amor.

E o poeta segue viagem no trem de seus sonhos.

LIBERDADE

Sem nenhum mistério,
nem presa a qualquer critério.
Mas nua, nua
tal por Deus moldada.
E desembaraçada, desimpedida
para no céu brilhar. E flutuar
solta redonda estonteante.
Lua nua, lua leve, lua livre.
Livre das algemas dos românticos corações
ou outras atribuições.
Liberta para correr de um lado pra outro.
A qualquer hora transitar
no céu imenso, extenso
sem precisar mudar de cara
— afinar a silhueta, ou
crescer centímetro por centímetro
e ficar imensa de gorda.

Lua, leveza levando alhures
Luz magia e beleza.

DÁDIVA

Desgrudar da terra um dia.
Areia movediça
— luta lida liça.
Livre de fardo voar.
Voar nas asas da liberdade,
Nas promessas do PAI confiar:
As aves não semeiam, nem ceifam,
Nem recolhem nos celeir
os.

Sobrevoar a terra por um dia,
dar de cara com o horizonte,
visitar rios vales montes.
Perder-se na imensidão.
Livre leve lúcido — sonhar.
Sonhar que é lírio-do-campo:
Não trabalham, nem fiam.
Mas curam, adornam, perfumam.

O hoje basta.

VINICIUS DE MORAES


Vinicius de Moraes atravessou a vida conjugando opostos. Militante católico na juventude, cheio de freios, moralismo e metafísicas, mais tarde será boêmio convicto, devoto de Mãe Menininha do Gantois. Ocupa cargos diplomáticos de importância em várias capitais e depois se recolhe para uma paz hippie nas areias da Bahia. Nutre simpatias pelo fascismo na década de 1930 e compõe o hino da UNE, União Nacional dos Estudantes, nos anos 60. Múltiplo, sua vida parece às vezes reunir facetas dispersas do temperamento brasileiro. (Da orelha do livro de José Castelo, Vinicius de Moraes: O poeta da paixão. Poema "Revolta", da fase metafísica do poeta, obtido nesse livro. No meu livro Manual do poeta, a ser lançado este ano pela Ciência Moderna, observo que o "Soneto à Lua" é um exemplo perfeito de soneto camoniano, que, além de versos decassílabos, utiliza rimas opostas nos dois quartetos (ABBA/ABBA) e rimas cruzadas nos tercetos (CDC/DCD). Observe que o soneto como um todo utiliza apenas quatro rimas diferentes, A, B, C e D, o que constitui um desafio para o sonetista.)

Revolta

Alma que sofres pavorosamente
A dor de seres privilegiada
Abandona o teu pranto, sê contente
Antes que o horror da solidão te invada.

Deixa que a vida te possua ardente
Ó alma supremamente desgraçada.
Abandona, águia, a inóspita morada
Vem rastejar no chão como a serpente.

De que te vale o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança...
Desce ao chão águia audaz, que a noite é fria.

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste...
Talvez tu possas ser feliz um dia.

Soneto à Lua

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas, e sem fim
Quem és, que és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma, que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética e indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

O Poeta Aprendiz

Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante.
Anos tinha dez
E asas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina.
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
E caía exato
Como cai um gato.
No diabolô
Que bom jogador
Bilboquê então
Era plim e plão.
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho.
No fundo do mar
Sabia encontrar
Estrelas, ouriços
E até deixa-dissos.
Às vezes nadava
Um mundo de água
E não era menino
Por nada mofino
Sendo que uma vez
Embolou com três.
Sua coleção
De achados do chão
Abundava em conchas
Botões, coisas tronchas
Seixos, caramujos
Marulhantes, cujos
Colocava ao ouvido
Com ar entendido
Rolhas, espoletas
E malacachetas
Cacos coloridos
E bolas de vidro
E dez pelo menos
Camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
Era maravilha
E em bola de meia
Jogando de meia-
Direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
Nos jogos de cama
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Levadas e opimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder.
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
De sonhar o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser.

VIRGÍNIA DE OLIVEIRA


Gosto deste poema "delirante" de Virgínia de Oliveira. Mostra que em poesia, assim como nos sonhos e desenhos animados, tudo é possível. Natural de Indaiatuba, SP, Virgínia é professora de língua portuguesa e tem um livro de poesias publicado pela Editora Scortecci, Quando os sonhos vencem a solidão (1988).

HOJE, SOMENTE HOJE

Hoje eu sou uma idéia, um perfume de rosas
e te trago um presente, a lua prata partida .
Hoje sou uma história bandida,
manchete de jornal - o pecado sangrento,
uma dança, teu cigarro, tua mentira, um lamento.

Hoje, somente hoje, eu sou a pressa
da vida conduzida pelo metrô,
sou a miséria dos restos de comida
nos grandes centros da metrópole.
Sou parto fórceps, beijo-arrepio,
vidro que corta a dor, um calafrio.

E ainda hoje também sou óleo diesel queimado,
pedra de moinho e um lindo amor trigal
contra o vento, arqueado, alimento de passarinho.

HOJE EU ME PROPONHO A SER O QUE QUERO!!!

Eu sou tudo e o todo esquecido por ti.
Sou teu desejo, tuas mãos, teus lábios sedentos,
sou tua pele leite, teu suor, teus cabelos molhados
      de repente
sou tua lágrima e tua dúvida, uma dádiva, tua dívida
(coisa repetida que já fiz, que já senti e que já li).
Sou o medo que atravessa tua língua e a faz maledicente,
falante e depois, um marasmo- silêncio cortante.

Sou o espelho de teu ego.
Teu íntimo, teu âmago, teu verso
espalhado em transparentes sementes.

E tu és desse jeito: incapaz de ser o que realmente és.
Então, hoje, somente hoje e porque o tempo assim me perdoa,
eu sou o teu destino, tua inspiração e tu és pedaço de mim.

Tu podes ser sem padecer em mim,
uma parte do céu, uma onda do mar,
tronco de árvore, barranco, grão de areia.
E podes ser o mistério da lua cheia,
o pó seco da Seca, seno e co-seno
        viola
          tamborim
            capoeira
          amendoim
            candomblé
          berimbau
             café
              fruta no pé
            serafim
             e
              carnaval

És telha da tulha e as horas do relógio,
ampulheta, uma fagulha, a fantasia -
te veste de alegria e aprende a ser feliz.

E hoje, só hoje, eu sou o teu gozo no ato
e também tua solidão, um abandono, teu sapato.
Sou o que te anima e o que mais te aborrece,
teu ódio, teu enigma, uma praga, tua prece.

Eu sou tudo isso e o que tu desejas.
Hoje, somente hoje, eu te convido
a me olhar de uma maneira mais insana.
Hoje posso ser tua lama, água, tua cama
e te banhar o corpo ou te conter em chamas.

Sou os dentes que te cravam o corpo no leito
e a mórbida bala certeira em teu peito.
Sou teu riso, teu desprezo e a chuva calma.

Hoje eu sou teu vinho, teu mel servido em taça.
Me toma, me bebe com sutileza e graça.
Observa-me. Sou um lírio brotando no asfalto
à espera do beija-flor escondido na flor de tu'alma!