BLOG CULTURAL DO TRADUTOR, ESCRITOR, FILÓSOFO E FOTÓGRAFO IVO KORYTOWSKI. SEJA BEM-VINDO E VOLTE SEMPRE!
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O VERDADEIRO INIMIGO
"O mundo árabe perdeu centenas de bilhões de dólares e dezenas de milhares de vidas inocentes lutando contra Israel, que eles consideravam ser o seu inimigo declarado, um inimigo cuja existência eles nunca reconheceram. O mundo árabe tem muitos inimigos e Israel deveria estar no último lugar da lista. Os verdadeiros inimigos do mundo árabe são a corrupção, a falta de uma boa educação, a falta de uma boa assistência médica, falta de liberdade, falta de respeito pela vida humana e, finalmente, o mundo árabe teve muitos ditadores que usaram o conflito árabe-israelense para reprimir o seu próprio povo.
As atrocidades cometidas por estes ditadores contra o seu próprio povo são de longe piores do que as guerras generalizadas entre árabes e israelenses."
Abdulateef Al-Mulhim, tradução de Ivan Kelner.
A HISTÓRIA DE UM GLOSSÁRIO
Palestra que proferi na IV Conferência Brasileira de Tradutores do ProZ em 22/9/12
Resumo: Na minha palestra conto a fascinante história de como por acaso me tornei tradutor e como foi a gênese do meu Ivo Korytowski's English-Portuguese Translator's Dictionary. Abordo algumas questões ligadas ao dicionário, por exemplo, como obter versões atualizadas regularmente, já que aquela que está no servidor do Babylon fica muito defasada, e trato de alguns assuntos gerais de interesse dos tradutores, como a tradução computadorizada e a tradução auxiliada por computador. Mas antes da palestra propriamente, vai uma dica.
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Meu dicionário agora pode ser obtido gratuitamente em versão bgl para consulta no GoldenDict ou mobi para instalação no Kindle. Informações no meu novo site LIVROS & DICIONÁRIOS DE IVO KORYTOWSKI.
Boa tarde. Antes de mais nada, queria avisar: não precisam anotar nada do que vou falar. A íntegra desta minha palestra a partir de segunda-feira estará no meu blog Sopa no Mel em sopanomel (tudo junto).blogspot.com.br. É só entrar no Google e pesquisar ivo korytowski sopa no mel que vocês chegam lá. Além do que eu disser aqui, no blog vocês terão alguns bônus: ilustrações, links e algum texto extra [que está aqui entre colchetes]. Aliás, Sopa no mel é o título de um livro de curiosidades & abobrinhas que escrevi.
Meu dicionário agora pode ser obtido gratuitamente em versão bgl para consulta no GoldenDict ou mobi para instalação no Kindle. Informações no meu novo site LIVROS & DICIONÁRIOS DE IVO KORYTOWSKI.
A PALESTRA:
Boa tarde. Antes de mais nada, queria avisar: não precisam anotar nada do que vou falar. A íntegra desta minha palestra a partir de segunda-feira estará no meu blog Sopa no Mel em sopanomel (tudo junto).blogspot.com.br. É só entrar no Google e pesquisar ivo korytowski sopa no mel que vocês chegam lá. Além do que eu disser aqui, no blog vocês terão alguns bônus: ilustrações, links e algum texto extra [que está aqui entre colchetes]. Aliás, Sopa no mel é o título de um livro de curiosidades & abobrinhas que escrevi.
Dito isso, vocês devem estar curiosos em saber: “Quem é esse tal de Ivo Korytowski que diariamente, quando me sento ao computador para traduzir, aparece lá na telinha do Babylon com suas soluções engenhosas? “Seu glossário salva minha vida todos os dias do ano. Quando clico no Babylon e vejo seu nome para o termo que procuro, respiro aliviada.” alguém me escreveu (quem sabe estará nesta plateia?). “Ótimo dicionário, sempre está me salvando.”, escreveu outra pessoa. Alguns de vocês devem conhecer meu blog sobre o Rio de Janeiro. Talvez saibam que lancei recentemente um guia da cidade maravilhosa. Bem, sobre meus livros falarei no final, até porque vocês são um público potencial para eles. Alguns nessa plateia devem ter lido livros traduzidos por mim. Afinal, são quase 150. Mas vocês devem estar querendo saber como foi que o Ivo montou esse danado desse glossário? Quanto tempo levou? Qual método empregou? Vamos por partes. Primeiro, como foi que me tornei tradutor?
Ninguém quando tem dez, onze anos diz: "Quando crescer quero ser tradutor." E mesmo que disser, vai ouvir como resposta: "Não faça esta loucura!" O pessoal da minha geração deve se lembrar que antigamente, nas famílias de classe média, se esperava que filho homem se formasse em Engenharia, Medicina ou Direito. Erasmo de Roterdã escreveu uma obra clássica intitulada Elogio à Loucura. Pois eu cometi várias loucuras na vida. E essa sucessão de loucuras por acaso me encaminhou para a tradução (como se, no meu caso específico, Deus realmente tivesse escrito reto por linhas tortas).
Minha primeira loucura foi ter encasquetado de estudar Filosofia. Bem que meus amigos fizeram de tudo para que eu mudasse de ideia: “Filosofia é coisa de bicha”, disse um deles. “Melhor passar em último lugar em Medicina do que em primeiro lugar em Filosofia”, disse um outro. Minha família então... só faltou me deserdar. Mas eu que era meio porra-louca e curtia uma contracultura fiz a Graduação e Licenciatura em Filosofia lá no IFCS, no Largo de São Francisco — está lá até hoje. Nos anos de chumbo. Tenho um romance inédito sobre essa época que espero conseguir publicar. E vocês irão ao lançamento, claro! Em 1974 estava com meu diploma de filósofo na mão. Pretendia me tornar professor lá do Instituto, mas tinha que esperar até que abrisse concurso. Meu pai aqueles anos todos pressionando para que eu trabalhasse.
Aí surgiu o então chamado Processamento de Dados. Lembram disso? Dei uma guinada na vida. Durante quinze anos trilhei uma bem-sucedida carreira na área de sistemas. Desses quinze, treze trabalhei na extinta Rede Ferroviária Federal. Tenho uma crônica no meu blog Sopa no Mel que narra um episódio acontecido na Rede. Era comum nós do processamento de dados trabalharmos depois da hora, às vezes chegávamos a virar a noite na sala do computador testando um sistema. Tínhamos um colega programador que era negro e cego. O nome dele era Elizeu. Ele fazia misérias, por exemplo, pegava o metrô sozinho. Orientava-se pelo som. Um dia ouviu o som errado e caiu no fosso do metrô. Felizmente os seguranças o retiraram a tempo. Uma noite quando fazíamos hora extra ocorreu um blecaute, apagaram todas as luzes. Ficamos perdidos como cegos em tiroteio. Pois em meio às trevas quem foi que nos salvou, que nos conduziu para fora do prédio??? O programador cego! Naquele momento, com sua bengala, ele enxergava mais do que todos nós!
Aí surgiu o então chamado Processamento de Dados. Lembram disso? Dei uma guinada na vida. Durante quinze anos trilhei uma bem-sucedida carreira na área de sistemas. Desses quinze, treze trabalhei na extinta Rede Ferroviária Federal. Tenho uma crônica no meu blog Sopa no Mel que narra um episódio acontecido na Rede. Era comum nós do processamento de dados trabalharmos depois da hora, às vezes chegávamos a virar a noite na sala do computador testando um sistema. Tínhamos um colega programador que era negro e cego. O nome dele era Elizeu. Ele fazia misérias, por exemplo, pegava o metrô sozinho. Orientava-se pelo som. Um dia ouviu o som errado e caiu no fosso do metrô. Felizmente os seguranças o retiraram a tempo. Uma noite quando fazíamos hora extra ocorreu um blecaute, apagaram todas as luzes. Ficamos perdidos como cegos em tiroteio. Pois em meio às trevas quem foi que nos salvou, que nos conduziu para fora do prédio??? O programador cego! Naquele momento, com sua bengala, ele enxergava mais do que todos nós!
Processamento de Dados: Programa em COBOL (Common Business-Oriented Language) |
Na folha de rosto daquele livro que traduzi está escrito: Tradução Ivo Korytowski Analista de Informática e Organização da RFFSA. O termo informática já tinha vingado. Meus instrumentos de trabalho foram uma caneta e um bloco pautado grandão que eu levava a tiracolo aonde quer que fosse. Parece que gostaram da minha tradução porque depois me deram uma obra mais “clássica”: o Principles of Program Design do Michael Jackson. Não é o Michael Jackson que vocês estão pensando, é outro. A cada livro que traduzia, eu anotava numa folha ofício, mais ou menos em ordem alfabética, os termos técnicos encontrados e suas traduções. No final, a folha ficava uma zorra total, e eu a guardava, pensando: posso um dia pegar outro livro com esse mesmo tema... Aquelas folhas de anotações foram uma das origens do meu futuro glossário.
A outra origem do meu glossário foi o curso do Daniel Brilhante de Brito. Vocês todos devem ter ouvido falar do curso de tradutores e intérpretes do professor Daniel. Acredito que muitos tradutores atuais tenham passado pelo curso. O professor Daniel era uma figuraça: dominava mais de duas dezenas de idiomas indo-europeus, desde o sânscrito, que é a base de todos eles, passando pelo grego antigo e latim, até as línguas modernas: russo, alemão, inglês, holandês, o diabo a quatro. O cérebro dele era privilegiado, um enorme depósito linguístico. E nas aulas ele era um show man, contava umas anedotas do fundo do baú em inglês, punha-se a falar em russo, um espetáculo. Em 1988 eu estava cansado da rotina da Rede Ferroviária, queria parar um pouco, sondar outras coisas. Tirei uma licença sem vencimentos de seis meses — vejam só que loucura — e fui fazer três coisas: 1) o curso do Daniel, 2) escrever um livro sobre os anos 60 que ainda não consegui publicar e 3) uma tradução para o Jorge Zahar, dessa vez munido de uma moderníssima máquina de escrever eletrônica.
O curso de tradução me fascinou, fui um aluno absolutamente assíduo, em um ano de curso faltei a uma só aula: num dia em que um enorme temporal alagou a cidade. Dia seguinte soube que o próprio professor não conseguiu chegar ao curso. Uma coisa que me chamou a atenção nos exercícios do curso foi que as soluções do professor Daniel nunca eram aquilo que você esperava, não eram as traduções quadradinhas, literais. O Daniel sempre tinha uma maneira original de traduzir uma expressão, um trecho, uma frase. Resolvi criar um caderno organizado alfabeticamente para tomar nota daquelas soluções tão interessantes a fim de consultá-las no futuro. Esse caderno foi outro embrião do meu glossário do Babylon.
Finda a licença da Rede, tive que voltar, pois o que ganhei fazendo tradução na máquina eletrônica não chegava aos pés do que ganhava na Rede. Mas o sonho de virar tradutor não morreu. Eu só precisava encontrar um meio de viabilizá-lo financeiramente. A solução surgiu com o microcomputador. Em julho de 1991 enfim saí da Rede Ferroviária para me tornar tradutor full-time. De um certo ponto de vista, foi minha terceira grande loucura: trocar o certo pelo duvidoso. Mas acabou dando certo.
Na época nem Windows existia. O monitor era CGA, uma tela esverdeada, horrorosa, cansava a vista. O Word era algo um pouco mais avançado do que uma máquina de escrever eletrônica. Muni-me de alguns dicionários. Ainda não havia dicionários eletrônicos, ou se havia, eu não conhecia. Constatei que as consultas aos dicionários em papel e ao caderno de apontamentos do curso do Daniel e à folha de papel onde eu ia anotando os termos novos daquela tradução davam uma trabalheira, e tive uma ideia. Digitar tudo aquilo. Digitei num arquivo Word mesmo, para consultar através do comando Localizar. Mais à frente cheguei ao requinte de criar uma macro no Word para facilitar a consulta ao glossário.
Então vimos que as duas primeiras fontes do glossário foram os apontamentos do curso do Daniel e as folhas com os termos técnicos dos livros que eu traduzia. Aí comecei a incluir no glossário também os resultados das consultas que eu fazia aos dicionários de papel, para agilizá-las no futuro. Essa foi uma terceira fonte, os dicionários existentes.
Um parêntese: o meu glossário deve um pouco a sua origem à minha falta de memória. Ou seja, há males que vêm para o bem. Se eu tivesse a memória de computador do professor Daniel não precisaria fazer o glossário, cadastraria tudo nos escaninhos do cérebro. Mas como vivo esquecendo tudo, minha única salvação é anotar. No fundo o meu glossário não passa de um trabalho hercúleo de anotação.
Agora vou falar da localização de software, que foi a quarta fonte do glossário. No tempo do mainframe os programas de computador eram todos em inglês. Surgiram até uns neologismos na época decalcados dos termos ingleses, alguns até engraçados: "deletar" para delete, "atachar" para attach, "assanhar" para assign, "sortear" para sort, "linqueditar" para link edit, não sei se alguém aí lembra disso. Mas com o advento da microinformática e do conceito do user-friendly, os programas — Word, Excel, etc. — passaram a ser traduzidos nos vários idiomas. A isso se chamou localização de software. Surgiram firmas especializadas em traduzir os softwares — um grande mercado de trabalho que se abria para os tradutores. Durante uma boa época de minha carreira também atuei nesse mercado (mas sem nunca abandonar a tradução de livros). Quando você participava da equipe de tradução de um grande software — SAP, por exemplo — recebia um enorme glossário, geralmente no Excel, com a terminologia daquele software. Comecei a perceber que aqueles glossários traziam soluções interessantes, que passei a transcrever para o meu dicionário.
Aí começaram a surgir os dicionários eletrônicos. O primeiro que tive foi um Oxford, que veio numa montanha de disquetes. Depois adquiri o Aurélio. Mais adiante, lançaram o Houaiss. Atualmente uso muito o Aulete, que é um dicionário de português muito dinâmico, constantemente atualizado. Eles aceitam sugestões de verbetes dos usuários, eu mesmo mando muitas sugestões para lá. Mas nunca pirateei um dicionário pago. Respeito o trabalho do dicionarista como quero que respeitem o meu trabalho de tradutor (o que não quer dizer que eu não tenha pirateado outras coisas).
A certa altura, não me lembro exatamente quando, surgiu o Babylon. Passei a utilizar aquela ferramenta. Um dia notei no site deles um programinha de montagem de glossários chamado Babylon Builder. Esse programa existe até hoje, está na versão 3.1, mas não sei usar essa versão nova, continuo usando a versão 0.0 do ano 2000 (assim como continuo usando até hoje o Word 2000). Aí tive a brilhante ideia de transformar aquele meu glossário que estava num arquivo doc para o formato do Babylon. Montei assim o meu dicionário inglês-português. Comecei também a montar glossários em outras línguas mas não foram em frente.
No início esse glossário era só meu, existia só no meu computador. Como foi que surgiu a ideia de disponibilizá-lo ao grande público? E por que fiz isso de forma gratuita e altruísta? Por que não ganho dinheiro com meu glossário? Acho que vocês têm curiosidade em saber.
Existe um lado altruísta sim. Acredito que a gente deve dar sua parcela de colaboração para legar um mundo melhor aos nossos descendentes. Mas não sou nenhuma Madre Teresa de Calcutá. Em 2004 iniciei uma carreira de escritor, lançando um livro de contos, o Édipo, e um livro de dúvidas de português, o Português Prático. O meu raciocínio na época foi que, para conseguir vender livros, eu tinha que me tornar conhecido de alguma maneira. Eu notava que as pessoas que conseguiam vender livros eram pessoas com visibilidade: geralmente jornalistas, às vezes artistas, um ou outro diplomata, acadêmicos. Para eu vender livros também tinha que me tornar visível. Uma forma de conseguir visibilidade seria disponibilizar o meu glossário no Babylon. Reparem que botei meu nome bem grandão lá no título: Ivo Korytowski's English-Portuguese Translator's Dictionary. Passei também a usar links ao pé dos verbetes para direcionar os consulentes aos meus blogs e, mais recentemente, ao site onde divulgo meus livros.
Falei sobre quatro fontes iniciais desencadeadoras do meu glossário: os apontamentos do curso do Daniel etc. Mas a maior fonte de verbetes do glossário tem sido a minha atividade diária de tradutor que exerço há mais de duas décadas. Atividade quase que monástica, solitária, que exige uma autodisciplina de atleta olímpico, ou mais, exige que você seja um gerente de si mesmo mais rigoroso do que se fosse gerente de uma equipe. Você tem que trabalhar com metas e cumprir as metas, senão o dinheiro não entra em caixa. Nessas mais de duas décadas em que a tradução tem sido meu ganha-pão traduzi uns 150 livros dos mais variados assuntos e autores. Por exemplo, Harlan Coben com o linguajar do submundo de Nova York, Nadime Gordimer com uma linguagem que beira o incompreensível, Stephen Hawking, o maior gênio científico da atualidade, [Richard Bach e suas alegorias com personagens furões (o furão animalzinho, o ferret), O livro dos estratagemas, A arte dos negócios, A arte da paz etc. etc. etc. Traduzi livros de filosofia, livros de religião, livros sobre ciência, livros de economia (Galbraith, Krugman), livros de história, guias de viagem, um livro polêmico que contesta as previsões catastrofistas dos ambientalistas (do Lomborg),] uma biografia do Galileu, um livro sobre a caça às bruxas, um livro sobre o sequenciamento do genoma, dois livros sobre vinhos, livros infantis, o Sex for Dummies (aí foi que aprendi pra valer!) etc., e cada um desses livros, com sua terminologia específica, contribuiu para o glossário que vocês e eu consultamos no nosso dia-a-dia. Porque eu consulto o meu glossário tanto quanto vocês e me surpreendo com suas soluções tanto quanto vocês.
O que torna meu glossário tão diferente dos dicionários bilíngues tradicionais é que eu não sou um lexicógrafo, eu não elaboro o glossário segundo as regras & convenções da lexicografia, que sequer conheço. Sou um tradutor, e vou elaborando o meu glossário no contexto de minha labuta diária de transpor textos do inglês para o português. Cada língua é o produto de uma história, uma cultura, uma vivência coletiva idiossincrática, específica, e todos vocês, tradutores, sabem que não existe uma correspondência biunívoca, uma correspondência exata entre os termos de uma língua e os da outra. Se existisse traduzir seria moleza, o computador nos substituiria nesse mister. Na medida em que vou tropeçando com os obstáculos da tradução, os actually, os eventually e tantas outras armadilhas desse campo minado que é a tradução, vou registrando tudo tintim por tintim no meu dicionário.
O tradutor é um traidor, diz um velho ditado italiano. Você tem que reproduzir o mais fielmente possível o que foi escrito no original. Este é um lado da moeda. Por outro lado, o texto na língua-alvo, no nosso caso, o português, precisa soar o mais natural possível, como se tivesse sido escrito no nosso idioma, como se não existisse o texto original. Não sei se na plateia existe algum tradutor de programas de TV a cabo. Quando vejo alguns programas no Discovery Channel ou no NatGeo (cada vez menos, porque os programas estão cada vez mais apelativos), observo que a tradução — talvez por ser feita às pressas e ser mal-remunerada — não consegue se descolar muito do texto original inglês e às vezes capto um ou outro erro do tipo falso amigo. O expectador em casa que está se deleitando com o encantador de cães, com aquelas paisagens africanas, com as previsões maias do fim do mundo, etc. não percebe esses erros. Mas numa tradução de livro o nível de exigência é maior. Pois bem, um dos objetivos do meu glossário é oferecer aquilo que o professor Daniel oferecia nas suas aulas: traduções alternativas para as palavras e expressões, que fujam daquelas soluções mais “quadradas”, mais literais que existem nos dicionários bilíngues comuns.
Onde esse dilema entre a fidelidade ao original e a estilística da língua-alvo é mais acentuado é na tradução poética. Claro que a tradução poética é um ofício à parte, quem traduz poesia precisa antes de mais nada ser poeta em sua própria língua. Mas às vezes, ao traduzirmos um livro, encontramos alguma epígrafe ou citação poética, e aí temos a saída de fazer a tradução literal (ignorando a métrica e rima do original) e talvez citar o poema original em nota de rodapé. Mas e se o livro que você está traduzindo é de crítica literária. Por exemplo, certa vez traduzi um livro do Paul Auster, A arte da fome, que é uma coletânea de ensaios que ele escreveu sobre literatura e poesia. Num livro desse quilate você tem que realmente traduzir as poesias com poeticidade. E para respeitar métrica e rimas do original não dá para ser fiel, é preciso trair. Por isso o genial poeta Haroldo de Campos, que foi tradutor de Goethe, Dante, Joyce, Brecht, Mallarmé e outros pesos-pesados criou o termo "transcriação". Segundo ele, “não basta traduzir o sentido das palavras. É preciso recriar o texto restituindo sua estrutura original em outro idioma” [ver http://www.dw.de/dw/article/0,,951490,00.html]. Será que alguém aí na plateia já se meteu a fazer tradução de poesia?
Outra preocupação do meu glossário é registrar as armadilhas dos chamados falsos amigos. Se você consultar o termo silicon vai ler: “silício; não confundir com silicone”. Sobre os falsos amigos chegou-se a escrever um livro alentado: o Guia Prático da Tradução Inglesa, do Agenor Soares dos Santos. O bom tradutor que tiver o cuidado de consultar meu glossário não vai traduzir hazardous por "azarado", quarter por “quadrimestre”, porter por "porteiro", amass por “amassar”, ultimate por "último", journal por "jornal", [pasta por "pasta", nem traduzirá spine por "espinha" quando se tratar da lombada de um livro (eu já detectei num livro esse erro de tradução), nem traduzirá deputy necessariamente por "deputado" (pode até ser, mas geralmente não é), nem traduzirá spirits por "espíritos", nem condition necessariamente por "condição" (pode ser um distúrbio, uma doença), nem determine necessariamente por "determinar" (pode ser definir), nem school necessariamente por "escola" (pode ser faculdade), nem chancellor necessariamente por "chanceler" (pode ser reitor), nem captain necessariamente por "capitão" (pode ser piloto de avião), nem capture necessariamente por capturar (pode ser captar), nem story necessariamente por "história" (pode ser uma matéria jornalística), nem salute necessariamente por saudar (pode ser bater continência), nem scallop por escalope (escalope é cutler, scallop é vieira, um fruto do mar), saberá quando report significa "subordinado" (e não "relatório")] e por aí vai. O bom tradutor que tiver o cuidado de consultar meu glossário verá que substitute a with b é “substituir a por b”, mas substitute a for b é “substituir b por a”! Durma-se com um barulho destes!
Antigamente tinha umas piadinhas de não confunda, tipo assim "não confunda capitão de fragata com cafetão de gravata" ou "não confunda um pouquinho de macarrão com um porrão de macaquinho" e outras mais que o decoro me impede de declinar aqui. No meu glossário chamo a atenção para possíveis confusões entre termos ingleses, ou mesmo do vernáculo. Por exemplo, não confundir additive com addictive; bombardeiro (air bomber) com bombardeio; aterosclerose (atherosclerosis) com arteriosclerose; [biannual (semestral) com biennial (bienal); chloride (cloreto) com chlorine (cloro); coma (com um m, a cabeleira do cometa) com comma (vírgula); gentile (gentio) com gentle (gentil); ironwork (trabalho de serralheria) com ironworks (siderurgia ou metalúrgica);] king-penguin (pinguim-rei) com royal-penguin (pinguim-real — pois é, até livro sobre pinguins traduzi); liquor (bebida destilada) com liqueur (licor); major (especialização acadêmica) com mayor (prefeito); [provably (comprovadamente) como probably (provavelmente); ringue de box com rinque de patinação; selenide (com d de dado, selenieto) com selenite (com t de tatu, selenito); trapping (aprisionamento) com trappings (paramentos);] tudo isso você encontra no meu glossário.
Depois que as editoras passaram a colocar à disposição do tradutor versões PDF dos livros que traduzem, meu dicionário ganhou um recurso novo que vocês devem ter percebido: aquilo que se chama abonação — citações de textos para exemplificar certas acepções dos verbetes. Essas citações eu copio do PDF dos livros que traduzo.
Falei bastante do meu dicionário, de suas origens, etc. Agora chegamos naquela parte da reunião de condomínio intitulada Assuntos Gerais. Um tema interessante que poderíamos abordar é a tradução computadorizada. O dia em que os computadores aprenderem realmente a traduzir, nós, tradutores, estamos ferrados. Mas a julgar pela qualidade das traduções computadorizadas atuais, esse dia parece estar distante. O pior é que tem gente que acredita nessas traduções automáticas e posta em páginas da Internet textos totalmente macarrônicos, coisas como: “Eu sou um cientista, se formou em ciências médicas e bastante normalmente eu não conseguia controlar a tensão da investigação, discussões, e manifestações e assim por diante, até que eu comecei o banho de ervas. [Eu nunca soube que um banho poderia ser divertido. Diverso do comum em todo o corpo-banho, seus braços e mãos são gratuitos, o que indica que você será capaz de ler o jornal de domingo, etc livro. e totalmente obter prazer do encontro lavabo.”] Juro que não inventei isso, está na Internet [em http://waytoenliven.com/pt/beauty/body/revolutionary-h-bath-natural-weight-loss/]. Portanto acho perda de tempo discutir a tradução computadorizada em sua forma atual. Ela só funciona, se é que funciona, para textos com uma sintaxe muito simplista e uma linguagem totalmente denotativa, sem figuras de linguagem, sem jogos de palavras, sem inversões sintáticas, sem nada. Um manual de instruções de um aparelho, digamos.
Uma coisa são os programas de tradução, outra coisa é a CAT, computer aided translation, a tradução humana auxiliada pelo computador. Confesso que não sei exatamente o que é, suponho que seja o uso de programas como o Trados. Eu nunca fui fã do Trados, fiz muitos trabalhos de localização em arquivos com formato Trados, só que eu trabalhava direto no Word, sem usar o Trados (claro que com o consentimento da empresa de localização). Em alguns casos cheguei a usar o Trados sim, mais notoriamente nos projetos de tradução do sistema SAP, mas aí fiz o trabalho na empresa de localização, não em casa. [Em outros casos instalei o Trados no meu computador mas utilizando um dongle emprestado pela empresa de localização.] Em suma, nunca comprei o Trados, e quando o Trados se impôs e não dava mais para driblá-lo, tomei mais uma dessas minha decisões malucas na vida: decidi não comprar o Trados e me dedicar tão-somente à tradução de livros e artigos, abandonei os trabalhos de localização.
Mas existem recursos do Word que exploro muito bem e que me dão grande agilidade no trabalho de tradução — e isso acho que também faz parte da CAT. Uma das primeiras ferramentas que criei quando comecei a traduzir foi associar certas teclas a terminações de palavras, por exemplo, Ctrl + Shift + C para a terminação ção, Ctrl + Shift + M para mente [, Ctrl + Shift + K para ções]. Com o tempo fui criando um monte de atalhos para um monte de coisinhas: por exemplo, para trocar de posição duas letras que estão invertidas, ou para trocar de posição duas palavras que estão trocadas. No decorrer dos anos, formei um grande acervo de entradas de AutoTexto e AutoCorreção. Vocês sabem o que é o AutoTexto e AutoCorreção do Word, AutoTexto são os termos que você cadastra e depois recupera usando a tecla F3. AutoCorreção são as correções automáticas que você cadastra. O AutoTexto utilizo basicamente (mas não exclusivamente) para nomes próprios[, por exemplo, al para América Latina, ali para Abraham Lincoln, e assim por diante]. A AutoCorreção no início utilizei para coisas simples tipo p para para, n para não, tb para também[, ng para ninguém, qd para quando]. Mas no decorrer do tempo fui criando centenas dessas entradas de AutoCorreção cada vez mais complexas, por exemplo, famano para futebol americano[, icomprlm para incompreensivelmente], preq para pré-requisito, de modo que ao digitar o texto na verdade utilizo uma taquigrafia que o Word transforma no texto completo, o que reduz substancialmente a carga de digitação.
Um dos recursos de que lanço mão para descobrir a tradução de um termo técnico é digitar esse termo (entre aspas se for mais de uma palavra) no Google e pedir resultados somente em português. Geralmente aparece algum contexto em que se associou o termo inglês à sua tradução. Não sei se vocês fazem isso. Um site que consulto com frequência é o OneLook Dictionary, que reúne um número imenso de dicionários. Esse vocês devem conhecer. Para as gírias, expressões recentes e acepções novas consulto o Urban Dictionary, que é um dicionário de contribuições coletivas (assim como a Wikipedia é uma enciclopédia de contribuições coletivas). Para acrônimos indecifráveis recorro ao AcronymFinder. Para traduções de termos técnicos [(por exemplo, o nome de uma árvore, um composto químico, essas coisas)] às vezes encontro soluções no site IATE, que significa InterActive Terminology for Europe. Esse Europe inclui Portugal, portanto as traduções são em português de Portugal, o que às vezes é melhor do que nada. Outras boas ferramentas para o tradutor são os sites do ProZ (o patrocinador desta conferência) e Linguee. Quando vocês olharem a minha palestra no meu blog encontrarão todos esses links. Na medida em que vou descobrindo soluções de tradução cadastro no meu glossário. Mas a língua é dinâmica e sempre aparecem termos novos ou acepções novas de termos existentes. Daí surge um problema: como fazer com que os usuários do meu glossário tenham acesso a versões atualizadas? Eis a questão.
Suponho que vocês, caros usuários, estejam consultando a versão que está atualmente no servidor do Babylon. Acontece que a empresa Babylon cresceu muito e está levando um tempo enorme para atualizar o glossário no servidor. A versão que está lá hoje é de mais de um ano atrás (maio de 2011) e a versão que existia antes chegou a ficar defasada em três anos. Eu envio versões novas regularmente mas eles levam uma eternidade para atualizar. [Às vezes escrevo para o suporte deles reclamando mas não adianta.] Mantenho uma mala direta de algumas pessoas privilegiadas que recebem atualizações mais ou menos de quatro em quatro meses do dicionário. Se vocês quiserem fazer parte dessa mala direta, terminada esta palestra estarei vendendo os meus livros numa mesinha em frente ao auditório. Aí vocês poderão registrar seus nomes e e-mails neste meu livro de presenças. Além disso disponibilizo versões atualizadas do glossário no MediaFire para download gratuito, e no cabeçalho dos meus blogs aviso quando existe uma nova versão disponível. Se eu pudesse disponibilizaria uma versão sempre atualizada (ou mesmo em tempo real) do glossário fora do Babylon, num blog, num site, sei lá onde, mas acontece que ele tem uma série de referências cruzadas, entre verbetes, que só o Babylon Builder consegue resolver.
É verdade que existe uma versão do meu glossário no Lingoes. Não sei como o criador do Lingoes conseguiu copiá-lo do servidor do Babylon (como aliás copiou vários outros). Só que o glossário lá está completamente desatualizado, tem apenas 26775 verbetes, quando hoje o número já ultrapassou 31 mil. Cheguei a oferecer ao Lingoes uma versão nova, mas o administrador queria que eu enviasse o arquivo fonte em formato doc. Se eu enviar o fonte fico sujeito à pirataria, alguém poderá até ganhar dinheiro com meu suado trabalho. Por isso não usem o glossário do Lingoes, não vale a pena, ele está muito defasado.
Mais de uma vez me sugeriram montar um dicionário reverso, português-inglês. A ideia é ótima, um dicionário desses seria uma mão na roda para quem faz versões para o inglês, mas como na fábula do gato e dos ratos (quem leu Monteiro Lobato conhece), quem vai botar o guizo no pescoço do gato? Ou seja, quem vai botar a mão na massa? Fazer essa inversão à mão, verbete por verbete, é um trabalho hercúleo. As referências cruzadas se perderiam, paciência. Talvez exista uma maneira de processar isso automaticamente, mas não sei como, se alguém tiver uma ideia, entre em contato comigo por e-mail para tentarmos chegar a uma solução.
Uma editora certa vez me perguntou se eu gostaria de publicar meu dicionário. Não vejo sentido nisso. O dicionário foi feito para ser consultado online, um dos seus pontos fortes são as referências cruzadas, que se perderiam na versão impressa. Suponho que todos vocês concordem comigo.
Era isso que eu tinha a dizer sobre o dicionário e temas afins. Agora chegou a hora da propaganda dos meus livros. Depois da palestra estarei vendendo a preço de custo alguns dos meus livros numa mesinha lá fora. Um deles, A arte da escrita, traz dicas de estilo utilíssimas para qualquer pessoa que lide com textos escritos: escritores, tradutores, jornalistas, revisores. Estou vendendo por módicos dez reais. Tem outros livros também que vocês verão.
E termino a palestra com um velho provérbio retirado da já citada obra de Erasmo de Roterdã: "Só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude, embora fugacíssima, e de retardar bastante a malfadada velhice." É isso aí.
VEJAM MEU VÍDEO SOBRE A TRADUÇÃO DO LIVRO ESCRITORES AMERICANOS EM PARIS 1944-1960 DE CHRISTOPHER SAWYER-LAUÇANO (FUI PARAR ATÉ NA REVISTA VEJA!):
VOU-ME EMBORA..., de Ivo Korytowski
Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do Presidente, e do líder do partido do Presidente, e do tesoureiro do partido do Presidente... (fique entre nós: lá, tenho a verba que quero no paraíso fiscal que escolherei).
Vou-me embora Brasil afora (onde todo mundo é meu amigo): Bela Vista, Belo Horizonte, Bonito, Feliz, Formosa, Jardim, Nova Esperança, Porto Alegre, Maravilha — beleza pura!
Vou-me embora to Brazil, South America, capital city Buenos Aires, gastar o milhão que ganhei (suando a camisa no assalto ao trem-pagador) com as "amiguinhas" — mulatas, morenas, louras, um harém! — que arranjarei.
Vou-me embora pra Terra de Marlboro, lá sou amigo dos caubóis, e posso fumar fumar fumar — que o câncer não vai me matar.
Vou-me embora pra Maracangalha, lá sou amigo do Dorival, uniforme branco, chapéu de palha, e desta vez há de vir Amália.
Vou-me embora pra Terra do Nunca, lá sou amigo do Peter Pan, de lá estico pra Terra Encantada, dou uma passada no País das Maravilhas e — brincar brincar brincar — venho parar no Sítio do Picapau Amarelo.
Vou-me embora pra Terra do Sol Nascente, lá sou amigo das gueixas frementes, ver o arrebol da manhã enquanto ainda dorme o Ocidente.
Vou-me embora pra terra de Oz, lá sou amigo do mago dotado de superpoderes (efeitos especiais, dizem os desmancha-prazeres).
Vou-me embora pra Casa da Mãe Joana, zorra total, liberou geral, oba oba, a vida eterno carnaval/bacanal/saturnal... legal!
Vou-me embora mundo afora: Kristinestad, Smyrna, Kadmandu, La Tur du Pint, Malabar, Honolulu (quem sabe ainda vá parar, pleno Pacífico, na ilha de Vaitupu?)
Vou-me embora pro ultramar, pros antípodas, pro fim do mundo, lá onde o Judas perdeu as botas, pra lá de Marrakesh, pra lá de Bagdá.
Vou-me embora pra Amsterdam, passear de barquinho nos canais, fumando haxixe no narguilê — que lá a polícia não vem prender.
Vou-me embora Brasil afora (onde todo mundo é meu amigo): Bela Vista, Belo Horizonte, Bonito, Feliz, Formosa, Jardim, Nova Esperança, Porto Alegre, Maravilha — beleza pura!
Vou-me embora to Brazil, South America, capital city Buenos Aires, gastar o milhão que ganhei (suando a camisa no assalto ao trem-pagador) com as "amiguinhas" — mulatas, morenas, louras, um harém! — que arranjarei.
Vou-me embora pra Terra de Marlboro, lá sou amigo dos caubóis, e posso fumar fumar fumar — que o câncer não vai me matar.
Vou-me embora pra Maracangalha, lá sou amigo do Dorival, uniforme branco, chapéu de palha, e desta vez há de vir Amália.
Vou-me embora pra Terra do Nunca, lá sou amigo do Peter Pan, de lá estico pra Terra Encantada, dou uma passada no País das Maravilhas e — brincar brincar brincar — venho parar no Sítio do Picapau Amarelo.
Vou-me embora pra Terra do Sol Nascente, lá sou amigo das gueixas frementes, ver o arrebol da manhã enquanto ainda dorme o Ocidente.
Vou-me embora pra terra de Oz, lá sou amigo do mago dotado de superpoderes (efeitos especiais, dizem os desmancha-prazeres).
Vou-me embora pra Casa da Mãe Joana, zorra total, liberou geral, oba oba, a vida eterno carnaval/bacanal/saturnal... legal!
Vou-me embora mundo afora: Kristinestad, Smyrna, Kadmandu, La Tur du Pint, Malabar, Honolulu (quem sabe ainda vá parar, pleno Pacífico, na ilha de Vaitupu?)
Vou-me embora pro ultramar, pros antípodas, pro fim do mundo, lá onde o Judas perdeu as botas, pra lá de Marrakesh, pra lá de Bagdá.
Vou-me embora pra Amsterdam, passear de barquinho nos canais, fumando haxixe no narguilê — que lá a polícia não vem prender.
GRANDES E PEQUENAS MARAVILHAS, de Ivo Korytowski
Existem grandes maravilhas: comer mancheias de caviar ao som de balalaicas às margens do Mar Cáspio. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar na primeira padaria que surgir pela frente e escolher a dedo aquele pão doce cheio de creme pra sair comendo pela rua, ou o croissant (ou pão de provolone) pra saborear em casa, camada de manteiga com sal e geléia de morango — ou prefere damasco?
Existem grandes maravilhas: excursão de degustação pelos vinhedos de Borgonha. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar em botequim qualquer e saborear aquela latinha de Bohêmia, ouvindo todo o papo furado daquele pessoal que parece não ter horário nem compromisso como você.
Existem grandes maravilhas: assistir à peça de Shakespeare em Stratford-upon-Avon. Mas existem pequenas maravilhas também: ver capítulo de novela qualquer na televisão. Não acompanhar compulsivamente toda e qualquer novela, dia após dia, mas ver um capítulo aleatoriamente, sem saber muito bem a história. Na novela, é como se as revoluções estéticas do século XX jamais tivessem ocorrido. Sua lógica, totalmente romântica, folhetinesca, rocambolesca: incríveis coincidências, amores impossíveis, expectativas dilacerantes — culminando no final feliz! E os diálogos? Os diálogos, de tão naturais, até parecem reais — a gente não se dá conta de que um autor, um escritor, um roteirista escreveu aqueles diálogos.
Existem grandes maravilhas: ouvir a Filarmônica de Berlim, com toda a pompa e circunstância, em seu país natal. Mas existem pequenas maravilhas também: ouvir o CD favorito no momento — que pode ser aquele trio de Schubert, o álbum do ERA ou o velho disco de boleros remasterizado — à meia-luz, balançando na rede, incenso indiano queimando.
Existem grandes maravilhas: ganhar pendentif de ouro do namorado. Mas existem pequenas maravilhas também: beijoca estalada na orelhinha! Existe coisa melhor?
Existem grandes maravilhas: ir a Roma e ver o papa. Mas existem pequenas maravilhas também: subir a Santa Teresa, Rio de Janeiro, e ver o puja no templo budista.
Existem grandes e pequenas maravilhas. E dado que os extremos se tocam, as pequenas acabam se revelando tão prazerosas quanto as grandes. Pensando bem, as pequenas saem ganhando: afinal, poupam-nos de estafantes deslocamentos, do aperto de lata de sardinhas e turbulências dos aviões, das intermináveis prestações pós-viagem...
Afinal, não é a toa que reza o ditado: boa romaria faz quem em casa fica em paz.
Do livro Édipo. O meu livro - ótimo presente de fim de ano para quem curte uma boa leitura - foi lançado em 2004 e não está mais nas livrarias, mas está à venda em várias livrarias virtuais - pesquise no Buscapé (clique) onde está mais barato. Garanto que vai gostar. Sobre o livro, disse Antonio Carlos Villaça: "Édipo nos revela um grande contista. Um dos melhores contistas do Brasil de hoje. O livro nos mostra a perfeição de um estilo, argúcia da observação, análise implacável, minuciosa, leve. É um contista fluente, ágil, malicioso. Tão humano! O irmão de Marques Rebelo."
PS. Embora eu quase não saia do Rio e deteste voar, decorridos alguns anos sinto uma vontade irresistível de visitar a Europa - veja neste blog minhas postagens sobre algumas viagens.
UM CARIOCA EM SÃO PAULO
MASP |
O editor deste blog morre de amores pelo Rio de Janeiro, mas sente uma admiração profunda por Sampa. Tão perto (uma hora de avião, seis horas pela Dutra) mas tão diferente (como são diferentes Munique e Frankfurt, Roma e Milão, etc.) De Sampa a mídia mostra só as enchentes periódicas e megaengarrafamentos diários (assim como do Rio só mostra guerras do tráfico e balas perdidas), mas existe muito mais tanto lá quanto cá.
Estação da Luz |
Em dois dias de visita a Sampa (por ocasião do casamento do meu irmão paulistano) vi (usando tão somente o metrô e as pernas, que é como gosto de conhecer uma cidade): a Sé, uma verdadeira catedral gótica "medieval", o Centro em geral ainda com vários prédios do início do séc. XX, o Pátio do Colégio onde a cidade começou, o Mercado Municipal onde se come o famoso sanduíche de mortadela e o pastel de bacalhau, a 25 de Março, espécie de Saara paulistano, Museu da Língua Portuguesa (de onde a gente sai orgulhoso de nossa língua), Pinacoteca, MASP (inacreditável, nível de museu europeu, não existe nada que se lhe assemelhe ao sul do Equador), Avenida Paulista, Livraria Cultura (a maior do país, quiçá do mundo), Bixiga, Liberdade...... Vale a pena fazer a viagem de ônibus até lá. Depois que você entra no estado de São Paulo, é como se tivesse adentrado um primeiro mundo brasileiro: tudo é pujança, progresso, riqueza (com uma ou outra mazela, que o primeiro mundo também tem).
Pinacoteca do Estado |
Edifício Montreal de Oscar Niemeyer inaugurado no ano do quarto centenário da cidade |
Viaduto Santa Ifigênia |
Rua 25 de Março |
Galeria Pajé |
Mercado Municipal |
Sanduíche de mortadela no Mercado Municipal |
Casario atrás do Mercado Municipal |
Pateo do Collegio |
Solar da Marquesa de Santos |
Casa da Imagem |
Edifício do antigo Banespa visto da Rua 15 de Novembro |
Edifício José Fakhoury |
Busto de Adoniram Barbosa na Praça Dom Orione, no Bixiga |
São José e escadaria (Bixiga) |
Igreja de Nossa Senhora Achiropita |
Bar no Bixiga |
Palmeira solitária (Rua Itapeva) |
Crônica escrita em abril de 2012. Leia mais sobre Sampa clicando no label "São Paulo " abaixo.
A BARATA SAI CARO, de Ivo Korytowski
Que o cão é o maior amigo do homem, todos hão de concordar. E o maior inimigo? O próprio homem. Homo homini lupus — O homem é um lobo para o homem. Mas em segundo lugar, ao menos nos meios urbanos, vêm as baratas. Acham que exagero?
Vez ou outra deparamos, num desses programas de TV sobre o mundo natural, com denodado cientista coletando, examinando, catalogando alguma ordem de inseto: borboletas, besouros, essas coisas. Mas nenhum cientista é maluco de estudar as baratas (só se for um cientista masoquista). Se elas já parecem medonhas, hediondas a olho nu, em tamanho natural, quão mais assustadoras serão — você consegue imaginar? — sob a lente do microscópio?
O dia (bendito dia!) em que a barata for uma espécie em extinção, quero ver se algum ambientalista virá em sua defesa. Mundo sem baratas, maior barato!
Dizem os expertos que a barata existe desde as priscas eras em que os dinossauros reinavam sobre a Terra. Cá entre nós, os dinossauros, tão fofinhos, não mereciam...
O primeiro preceito budista proíbe matar animais. Por isso, o bom budista não come carne. Mas como fazem os bons budistas pra conviver com as baratas? Acho que vou fazer uma viagem ao Sri Lanka pra pesquisar in loco esta questão!
A barata, de tão repelente, não é citada em nenhum livro da Bíblia, seja do Novo ou Antigo Testamento. E olha que até a pulga tem seu momento de fama na sagrada escritura: “Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegues tu? A um cão morto, a uma pulga!”
Não se pode servir a dois senhores simultaneamente: ou você se dedica à família, ou à literatura. Depois de vários casamentos (formais e “pirata”) malsucedidos, resolvi me casar com a literatura (as freiras não se casam com Cristo?). Mas como me dedicar à nobre arte num apartamento que (sem o toque feminil) aos poucos vinha sendo invadido por legiões de formigas e baratas?
Combater as formigas foi mais fácil. Sempre que elas farejam (lá da rua, suponho) uma pitada — ainda que infinitesimal, no sentido matemático do termo — de açúcar ou qualquer alimento doce, escalam (suponho) os três andares até a minha toca e, em perfeita fila indiana, qual soldadinhos de desenho animado, vêm atacar o petisco. A solução: bombardear a fila de formiguinhas. Bombardeio de inseticida, claro, que não sobra uma pra contar a história.
Ou por outra, sobra sim. Porque, depois de alguns meses de bombardeios sistemáticos e impiedosos, imagine que as formiguinhas desistiram de vir me incomodar! Tenho pra mim que as formigas não são nada imbecis e se comunicam entre si: sabe o apartamento lá no terceiro andar onde mora aquele escritor aloprado cercado de livros? Pois é, tomem cuidado, que ele é meio nazista...
Já as baratas são mais burras. A cada barata que você extermina (morrendo de nojo, às vezes chegando ao cúmulo de se arrepender de ter se separado — pelo menos pra matar baratas a patroa servia), logo aparecem mais duas. Não há nada que espante esses repelentes ortópteros onívoros (obrigado, Aurélio!) — nem mesmo a Cavalgada das Valquírias ou música funk.
Munido de tubo após tubo de inseticida, declarei guerra santa, cruzada contra as baratas que teimavam em vir dar as caras onde não eram chamadas. Se, no Juízo Final, eu vier a ser acusado de assassino de pobres baratas, replicarei ao bom Deus, pobres uma ova, eu bem que avisei, alto e bom som, que não ousassem invadir meu sagrado domicílio, que a pena não era nada branda — pena de morte, sumária, sem apelação. Quem mandou serem abusadas?
Pois: um dia estava tranqüilamente preparando o almoço quando flagro uma barata passeando, maior cara-de-pau (não tomem esta expressão literalmente), bem em cima do meu fogão. Numa reação que já se tornara automática, peguei do tubo de inseticida e... pfff... quase provoquei um desastre. Ninguém nunca me havia dito que o inseticida é inflamável, e a chama do fogão veio subindo spray acima quase até o tubo em minha mão. A pobre da barata, baratinada, mergulhou de encontro à chama do fogão, que lhe queimou as pernas, deixando-a desmembrada e morta. Dantesco!
Aquela foi a gota d’água. Parei tudo que estava fazendo, peguei as Páginas Amarelas e liguei pras dedetizadoras. Escolhi a empresa de maior preço (a barata sai caro) e com maior garantia: um ano sem estas pestes! É bom demais pra ser verdade.
É bom demais pra ser verdade, disse eu? Pois é, meu primo advogado veio logo cortar meu barato. Ele é desse tipo chato-de-galochas-que-gosta-de-contar-fim-de-filme. (O Burton faz um papel perfeito de mordomo, nem dá pra desconfiar que ele é o assassino... ih, foi mal, sem querer contei o fim do filme.) Segundo ele, o Procom está assim de gente reclamando de dedetizações que não surtiram o menor resultado.
Deus, ó Deus, não quero me meter em Vossa criação, mas em Vosso lugar, no Dilúvio Universal, teria feito uma única exceção às baratas. Deixando-as sucumbir. (Escrito em junho de 2004, quando eu morava sozinho e legiões de insetos invadiam meu apartamento)
BLECAUTE, de Ivo Korytowski
Depois do blecaute (apagão) de 1999 escrevi o texto seguinte. Mudou alguma coisa?
Noite de quinta-feira, 11 de março de 1999. Após um dia de trabalho ao computador, o lazer, também ao computador: leio e escrevo e-mails. De repente, apaga a luz. Um fusível queimado? Pior. Olho pela janela: Copacabana mergulhada nas trevas. Somente no dia seguinte viria a saber que o blecaute – ou apagão, como se diz agora – atingiu grande parte do país.
Às apalpadelas, eu e outros milhões de brasileiros vamos à procura da vela. Tenho uma, remanescente da árvore de Natal, na estante de livros. A penumbra em que viveram nossos ancestrais traz mal-estar ao homem moderno. Sem o som da TV, atordoa-nos o barulho de nossos pensamentos. Sem o rádio de fundo, instala-se a solidão. Sem o ar-condicionado, o calor é saariano. Foi-se a época dos “Serões de Dona Benta”: perdemos o hábito da boa prosa, a não ser o papo-furado inconseqüente regado a cerveja, cana.
Em meio à paralisia geral, uma única pessoa funciona: o guarda de trânsito da esquina da Copacabana com a Figueiredo. Observo-o da janela. O apito, normalmente irritante, agora reconforta, adquire dimensões metafísicas, é o único sinal de ordem em meio ao caos. Os motoristas estão inquietos, na escuridão há risco de assalto, ninguém quer parar nos sinais. O guarda, iluminado tão-somente pelos faróis dos automóveis, coordena os dois caudais de veículos que ali se entrecruzam. Quando tudo está funcionando às maravilhas, uma ambulância, sirene estridente, vem atrapalhar, procurando abrir caminho exatamente pela rua cujo tráfego o guarda acabara de reter. Mas este não se atrapalha, detém de novo o tráfego da Copacabana, liberando o da Figueiredo, tudo tão difícil em meio às trevas do blecaute.
Lembra-me um episódio do tempo em que eu trabalhava na Rede Ferroviária. Certa vez, já encerrado o expediente (fazíamos hora extra), acabou a luz. Não restava outra alternativa senão ir embora. Mas era noite já, estava escuro. À luz de um ou outro isqueiro, fomos desvendando o caminho rumo à saída. Naquele apuro, parecíamos todos ceguinhos. Todos, menos um. Tínhamos um colega cego, programador. Eis que ele passa pelos corredores desenvoltamente com sua bengala, deixando todos nós para trás. Naquele momento, nós éramos os deficientes e o cego “enxergava”. Se eu fosse um desses autores de parábolas edificantes, tiraria bela lição de vida desse episódio. Mas sou um pessimista empedernido!
Em meio ao atordoamento geral, uma única pessoa funcionou, escrevi eu? Minto, duas! Recebi dias depois e-mail da minha amiga poetisa Eliana Mora. Ela me contou que, em meio à escuridão, lembrou-se de que sabe tocar um instrumento: a caneta. E à luz de vela, escreveu um poema, belo poema, que um dia vocês hão de ler numa página literária da Internet. Será que nem disso consigo tirar lição edificante de vida? Arre! Pessimismo tem limite!
PASSEIOS PELO RIO ANTIGO, de Ivo Korytowski
No Capítulo XXI de Quincas Borba, na viagem de trem de Barbacena ao Rio de Janeiro, Rubião observa que, “para quem estava acostumado a costa de burro, a estrada de ferro cansava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso...”
De progresso em progresso, descartamos o zepelim, o transatlântico, a maria-fumaça, o bonde (com a honrosa exceção do bondinho de Santa Teresa, o último dos moicanos). Viajamos espremidos na classe turística de monstruosos aviões. As atrações turísticas se sucedem qual programas de televisão sob a batuta do controle remoto: chegada em Paris, translado ao hotel, à tarde, city tour pelos principais monumentos, à noite, espetáculo no Lido, manhã seguinte, Museu do Louvre (correria pelos quadros mais “famosos”)...
Tudo muito vertiginoso. Um progresso, não se pode negar. Mas cá entre nós: pra conhecer uma cidade, você tem de caminhar por ela, sentir-lhe o burburinho, os odores, os sabores, o colorido, a paisagem humana.
Com o advento do assalto à mão armada, do poder paralelo dos traficantes, dos arrastões e tiroteios, passamos a temer nossa própria cidade maravilhosa e perdemos o costume de “andar por aí”, “sem lenço, sem documento”. Algumas páginas da literatura talvez nos inspirem a retomarmos esse hábito.
No conto machadiano "O Erradio", o personagem principal é um andarilho urbano. “Ia a toda parte; era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, São Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.” Uma noite, após sair no meio de uma peça de teatro e tomar chá (!) no botequim próximo até o fechar das portas, Elisário (assim se chamava o Erradio) vai a pé do centro a São Cristóvão, percorrendo um Rio antigo em grande parte destruído pela abertura da Avenida Presidente Vargas e pelo aterro do Cais do Porto:
Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos [atual rua da Constituição]. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação [atual Praça da República], enfiou pela Rua de S. Pedro [Avenida Presidente Vargas] e meteu-se pelo Aterrado acima [nome genérico de boa parte do trajeto do Campo de Santana, Av. Presidente Vargas e Av. Francisco Bicalho]. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha [a Igreja de São Cristóvão, que ficava à beira mar]. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade.
Quem leva à perfeição a arte de flanar pelo Rio antigo é Pedro Nava, que em sua obra autobiográfica descreve longos passeios pela Glória, Santa Teresa, Centro, São Cristóvão, Rio Comprido na primeira metade do século XX. E Helio Brasil, em seu primoroso livrinho São Cristóvão, sugere ao leitor “demorar sua observação em alguns cantos do bairro. Quem sabe, até realizar caminhadas para descobertas de encantos imprevisíveis...”
De progresso em progresso, descartamos o zepelim, o transatlântico, a maria-fumaça, o bonde (com a honrosa exceção do bondinho de Santa Teresa, o último dos moicanos). Viajamos espremidos na classe turística de monstruosos aviões. As atrações turísticas se sucedem qual programas de televisão sob a batuta do controle remoto: chegada em Paris, translado ao hotel, à tarde, city tour pelos principais monumentos, à noite, espetáculo no Lido, manhã seguinte, Museu do Louvre (correria pelos quadros mais “famosos”)...
Tudo muito vertiginoso. Um progresso, não se pode negar. Mas cá entre nós: pra conhecer uma cidade, você tem de caminhar por ela, sentir-lhe o burburinho, os odores, os sabores, o colorido, a paisagem humana.
Com o advento do assalto à mão armada, do poder paralelo dos traficantes, dos arrastões e tiroteios, passamos a temer nossa própria cidade maravilhosa e perdemos o costume de “andar por aí”, “sem lenço, sem documento”. Algumas páginas da literatura talvez nos inspirem a retomarmos esse hábito.
No conto machadiano "O Erradio", o personagem principal é um andarilho urbano. “Ia a toda parte; era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, São Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.” Uma noite, após sair no meio de uma peça de teatro e tomar chá (!) no botequim próximo até o fechar das portas, Elisário (assim se chamava o Erradio) vai a pé do centro a São Cristóvão, percorrendo um Rio antigo em grande parte destruído pela abertura da Avenida Presidente Vargas e pelo aterro do Cais do Porto:
Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos [atual rua da Constituição]. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação [atual Praça da República], enfiou pela Rua de S. Pedro [Avenida Presidente Vargas] e meteu-se pelo Aterrado acima [nome genérico de boa parte do trajeto do Campo de Santana, Av. Presidente Vargas e Av. Francisco Bicalho]. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha [a Igreja de São Cristóvão, que ficava à beira mar]. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade.
Quem leva à perfeição a arte de flanar pelo Rio antigo é Pedro Nava, que em sua obra autobiográfica descreve longos passeios pela Glória, Santa Teresa, Centro, São Cristóvão, Rio Comprido na primeira metade do século XX. E Helio Brasil, em seu primoroso livrinho São Cristóvão, sugere ao leitor “demorar sua observação em alguns cantos do bairro. Quem sabe, até realizar caminhadas para descobertas de encantos imprevisíveis...”
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