Depois do blecaute (apagão) de 1999 escrevi o texto seguinte. Mudou alguma coisa?
Noite de quinta-feira, 11 de março de 1999. Após um dia de trabalho ao computador, o lazer, também ao computador: leio e escrevo e-mails. De repente, apaga a luz. Um fusível queimado? Pior. Olho pela janela: Copacabana mergulhada nas trevas. Somente no dia seguinte viria a saber que o blecaute – ou apagão, como se diz agora – atingiu grande parte do país.
Às apalpadelas, eu e outros milhões de brasileiros vamos à procura da vela. Tenho uma, remanescente da árvore de Natal, na estante de livros. A penumbra em que viveram nossos ancestrais traz mal-estar ao homem moderno. Sem o som da TV, atordoa-nos o barulho de nossos pensamentos. Sem o rádio de fundo, instala-se a solidão. Sem o ar-condicionado, o calor é saariano. Foi-se a época dos “Serões de Dona Benta”: perdemos o hábito da boa prosa, a não ser o papo-furado inconseqüente regado a cerveja, cana.
Em meio à paralisia geral, uma única pessoa funciona: o guarda de trânsito da esquina da Copacabana com a Figueiredo. Observo-o da janela. O apito, normalmente irritante, agora reconforta, adquire dimensões metafísicas, é o único sinal de ordem em meio ao caos. Os motoristas estão inquietos, na escuridão há risco de assalto, ninguém quer parar nos sinais. O guarda, iluminado tão-somente pelos faróis dos automóveis, coordena os dois caudais de veículos que ali se entrecruzam. Quando tudo está funcionando às maravilhas, uma ambulância, sirene estridente, vem atrapalhar, procurando abrir caminho exatamente pela rua cujo tráfego o guarda acabara de reter. Mas este não se atrapalha, detém de novo o tráfego da Copacabana, liberando o da Figueiredo, tudo tão difícil em meio às trevas do blecaute.
Lembra-me um episódio do tempo em que eu trabalhava na Rede Ferroviária. Certa vez, já encerrado o expediente (fazíamos hora extra), acabou a luz. Não restava outra alternativa senão ir embora. Mas era noite já, estava escuro. À luz de um ou outro isqueiro, fomos desvendando o caminho rumo à saída. Naquele apuro, parecíamos todos ceguinhos. Todos, menos um. Tínhamos um colega cego, programador. Eis que ele passa pelos corredores desenvoltamente com sua bengala, deixando todos nós para trás. Naquele momento, nós éramos os deficientes e o cego “enxergava”. Se eu fosse um desses autores de parábolas edificantes, tiraria bela lição de vida desse episódio. Mas sou um pessimista empedernido!
Em meio ao atordoamento geral, uma única pessoa funcionou, escrevi eu? Minto, duas! Recebi dias depois e-mail da minha amiga poetisa Eliana Mora. Ela me contou que, em meio à escuridão, lembrou-se de que sabe tocar um instrumento: a caneta. E à luz de vela, escreveu um poema, belo poema, que um dia vocês hão de ler numa página literária da Internet. Será que nem disso consigo tirar lição edificante de vida? Arre! Pessimismo tem limite!
Um comentário:
Volta (nada triunfal) do contexto, republicação do texto. Boa fórmula.
Diferença entre um e outro apagão? Uma década cheinha.
A Eliana consegue fazer uma coisa legal em situação tão... tão...
Ora, o dicionarista agora é você, Ivo.
Não tenho palavras.
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