ERASMO DE ROTERDÃ: A VIDA DE UM NOTÁVEL HUMANISTA RENASCENTISTA

TEXTO EXTRAÍDO DO ENCARTE DO VOLUME X DA COLEÇÃO OS PENSADORES DA ABRIL CULTURAL PUBLICADO EM 1972


 

“Eu não lhe dei, Adão, nem um lugar predeterminado, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa tomá-los e possuí-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha.” Assim Deus fala na Oração Sobre a Dignidade do Homem, do pensador italiano Pico della Mirandola (1463-1494). Naquelas palavras está apresentado um dos temas centrais do humanismo renascentista: a liberdade do homem, que o torna um ser capaz de criar seu próprio projeto de vida.

Movimento literário e filosófico originado na Itália – na segunda metade do século XIV – e depois difundido em outros países da Europa, o humanismo constituiu um dos fatores fundamentais do surgimento da cultura moderna. Nascido nas cidades e comunas que, na época, lutavam por sua autonomia, o humanismo repudiou a ordem e a hierarquia cósmicas contidas na visão de mundo medieval e resguardadas pelo Império (o Sacro Império Romano-Germânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Dentro dessa ordem hierárquica o homem ocupava lugar insignificante e inalterável, imerso num mundo que era visto como ocasião para tentações e pecado. Em contraposição à mentalidade medieval, os humanistas exaltarão a dignidade do homem, proclamando que sua liberdade pode e deve ser exercida tanto em relação à natureza quanto à sociedade. Como aspecto do Renascimento, o humanismo reintegra o homem na natureza e na história, reinterpretando-o em função dessas coordenadas.

 

O humanismo

O termo “humanismo” é derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, correspondendo ao sentido da palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas ao homem e que o distinguiam dos animais. A autonomia do ser humano é buscada pelos humanistas da Renascença por meio de uma volta à Antiguidade, a seus modelos e a suas diretrizes pedagógicas. As chamadas “humanidades” – poética, retórica, história, ética e política – passam desse modo a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício de sua liberdade. Liberdade e capacidade humana de atuar sobre o mundo são temas fundamentais dos humanistas, aparecendo não apenas em Pico della Mirandola, como também em Gianozzo Manetti (1396-1459), em Marsilio Ficino (1433-1499), e ressurgindo nos humanistas franceses posteriores, como Charles Bouillé (1475-c. 1553). Mais tarde é que as especulações marcadas pela exaltação da capacidade humana serão contrabalançadas pela nota de ceticismo que o humanismo assumiu no pensamento de Montaigne (1533-1592), de Pierre Charron (1541-1603) e de Francisco Sánchez (1552-1581).

Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmativa do valor espiritual do homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e de seus prazeres. Opondo-se ao ascetismo medieval, humanistas italianos, como Lorenzo Valla (1407-1457), retornam às teses do epicurismo antigo de que o bem é o prazer e de que a virtude consiste num cálculo de prazeres. Em nome do hedonismo, Valla inclusive recusa a superioridade religiosa da vida monástica: os verdadeiros seguidores de Cristo seriam os que dedicam suas atividades a Deus, pertençam ou não a ordens religiosas. O combate ao ascetismo e à vida monástica é empreendido também por Gianozzo Manetti, Coluccio Salutati (1331-1406) e Poggio Bracciolini (1380-1459). A afirmação da naturalidade do homem leva ainda os humanistas a proclamar a superioridade da vida ativa sobre a contemplativa, e da filosofia moral sobre a física e a metafísica. “A filosofia moral é, por assim dizer, o nosso território”, escreve Leonardo Bruni (c. 1370-1444). A mesma idéia é defendida por Matteo Palmier (1406-1475) e por Bartolomeo de Sacchi (1421-1481). Nesse sentido é que o humanismo abriu caminho para a obra de Maquiavel (1469-1536) – em muitos aspectos considerado humanista.

O retorno à Antiguidade, que inspira o humanismo renascentista, confere-lhe agudo senso de historicidade, de que carecia a cultura medieval, construída em função do ideal de intemporalidade. A defesa da eloquência dos antigos, por exemplo, resultou para os humanistas num esforço de recuperação de linguagem genuína da época clássica e num laborioso empenho para restaurá-la de sob as deformações sofridas no decorrer da Idade Média. Os humanistas redescobrem a perspectiva histórica, fazendo no plano da temporalidade uma mudança correspondente à descoberta, ao nível do espaço, da perspectiva óptica pela pintura renascentista.

A rejeição do ascetismo e das filigranas teológicas não significou a adoção, pelos humanistas, de uma posição necessariamente antirreligiosa ou anticristã. O que fazem é rediscutir temas religiosos, como a providência de Deus e a natureza e o destino da alma, com o objetivo de defender a liberdade humana e a capacidade do homem de agir sobre o mundo e modificá-lo de acordo com suas necessidades. Por outro lado, no exame de problemas religiosos, deram preferência a dois temas que pareciam, na época, os mais importantes: a função civil da religião e a tolerância religiosa. A primeira associava-se ao naturalismo: na obra Sobre a Dignidade e a Excelência do Homem, Gianozzo Manetti defende a tese de que a Bíblia não contém apenas uma proclamação da felicidade celeste, mas encerraria também uma mensagem e um programa relativos à felicidade terrena. Por isso mesmo é que para Manetti, como para Valla e outros, a função fundamental da religião seria relativa à vida civil e à atividade política.

A tolerância religiosa constitui outro traço típico do humanismo renascentista. Nos séculos posteriores – XVI e XVII – a tolerância resultará de guerras religiosas que acabarão por determinar a coexistência pacífica de vários credos, que todavia permanecem distanciados e irredutíveis. A tolerância preconizada pelos humanistas era de outro tipo, pois sustentada pela convicção de que haveria uma unidade fundamental subjacente às diversas religiões. Isso implicava ainda a intrínseca identidade entre filosofia e religião. Perguntava Leonardo Bruni: “São Paulo ensinou algo mais do que foi pensado por Platão?”. Seguindo a linhagem da Patrística – a doutrina dos primeiros padres da Igreja –, os humanistas consideravam que o cristianismo teria levado à sua plenitude a sabedoria expressa pelos filósofos antigos: a Razão (logos) grega seria uma antecipação do Verbo (Logos) que se encarna em Cristo. O retorno às origens significava, assim, para o humanismo da Renascença, a possibilidade de conciliar diferentes concepções filosóficas (como pretende Pico della Mirandola com o platonismo e o aristotelismo) e ainda harmonizá-las com a Cabala, a magia, a Patrística e a Escolástica. Com isso, poder-se-ia retornar às fontes de diversas correntes filosóficas e recuperar a paz religiosa que fora destroçada pelas disputas teológicas. A tolerância religiosa, sustentada por argumentos que já então exprimem o despontar da mentalidade moderna, ressurge como um dos ideais do humanismo de Erasmo de Rotterdam e de Thomas More.

 

Numa prisão espiritual

Em agosto de 1495, um frade agostiniano, vindo de Cambrai, chegou a Paris com o objetivo de obter o título de doutor em teologia. Tinha sido contemplado com uma bolsa de estudos, mas os estipêndios, embora recebidos com regularidade, eram tão parcos que foi obrigado a alojar-se na domus pauperum do colégio Montaigu. Situado no Quartier Latin, sobre a colina de Sainte Geneviève [Santa Genoveva], o edifício era triste e sombrio, os dormitórios sujos, as paredes nuas e geladas. As refeições eram péssimas: frequentemente os ovos e a carne eram servidos quase estragados e o vinho mais parecia vinagre.

Tudo isso poderia ser visto com certa naturalidade por quem ainda tivesse uma visão medieval do mundo, centralizasse a vida em torno do espiritual e negasse o valor das coisas sensíveis. Mas o frade recém-chegado não pensava e nem sentia desse modo. Para ele o mundo material não era necessariamente residência do pecado e reino da contaminação, e cuidar do bem-estar físico não significava afastamento da bem-aventurança eterna.

Pior que o desconforto ou os jejuns, eram os sofrimentos pelos quais tinha que passar a inteligência diante do ensino escolástico, impregnado de sutilezas insípidas, de exagerado formalismo e limitado a discutir temas irrelevantes.

O colégio Montaigu era, na verdade, uma verdadeira prisão espiritual, que poderia ter sido útil para Inácio de Loyola (1491-1556), que ali suportou, durante vinte anos, uma disciplina de castigos corporais para educar a vontade. Mas era absolutamente repugnante para a natureza nervosa, independente e moderna do jovem frade Erasmo. Ele era exemplo vivo de uma nova ordem de coisas: da mentalidade renascentista, da qual veio a se tornar um dos maiores representantes.

Sua mãe chamava-se Margaretha e era filha de um médico de Zevenbergen. Seu pai, Gerardus, homem culto e relacionado com representantes do humanismo nos Países Baixos, era um padre com funções itinerantes em diversas paróquias da cidade de Gouda, próxima a Rotterdam. A ligação amorosa com Margaretha não era lícita, mas as regras da vida cristã estavam enfraquecidas, naqueles tempos, e os rigores da moral agostiniana não eram mais obedecidos com tanta severidade. Dessa ligação resultou um primeiro filho, chamado Pieter. Poucos anos depois viria à luz Erasmo, num dia e mês conhecidos com certeza (passagem de 27 para 28 de outubro), mas num ano que não se sabe ao certo qual tenha sido: os biógrafos oscilam entre 1465 e 1469. É certo, entretanto, ter o fato ocorrido em Rotterdam, para onde Margaretha fora enviada a fim de guardar a discrição necessária em tais ocasiões. Inicialmente a educação de Erasmo foi confiada a um preceptor, com o qual aprendeu as primeiras letras. Mais tarde, em 1475, o pai providenciou seu ingresso na escola dos Irmãos da Vida em Comum, em Deventer. Era um estabelecimento famoso do norte do continente, no qual se respirava a atmosfera humanística que imperava na Renascença.

Em Deventer Erasmo encontrou um dos melhores ambientes intelectuais da época, recebendo influência de humanistas como Johannes Sintheim e Alexander Hegius (1433-1498), e viveu feliz com a mãe e o irmão. Contudo, esses anos de bem-estar estavam fadados a terminar relativamente cedo: Margaretha faleceu e ele foi obrigado a voltar para Gouda. Logo depois, o pai também morreu, vitimado por uma das pestes que, naquele tempo, assolavam a Europa periodicamente. Pieter e Erasmo foram então enviados pelos tutores a Hertogenbosch, onde encontraram uma disciplina de claustro extremamente desagradável. Não podiam, no entanto, desobedecer aos tutores e concluíram os estudos, esperando ansiosamente o momento de se tornarem livres. A solução era entrar para alguma ordem religiosa. E, de fato, Pieter ingressou no mosteiro de Sion, perto de Delft, enquanto Erasmo tornava-se noviço agostiniano em Steyn [ou Stein]. Cinco anos depois (1492) era ordenado sacerdote e concluía um longo período dedicado ao estudo dos autores clássicos, gregos e latinos, solidificando sua formação humanística. Por outro lado, os rigores da vida monástica acenderam em Erasmo a paixão pela liberdade pessoal e a irritação com tudo aquilo que pudesse restringi-la Formaram-se assim os traços essenciais de um complexo caráter integralmente moderno, que colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do humano em todas as suas formas.

Ordenado padre pelo bispo de Utrecht, Erasmo de Rotterdam pôs toda a inteligência a serviço de seus ideais e providenciou, através de negociações secretas muito hábeis – não querendo opor-se abertamente aos superiores – sua nomeação como secretário do bispo de Cambrai. Assim poderia libertar-se dos horizontes limitados do mosteiro de Steyn e tomar contato com o mundo, pois o bispo precisava dele para acompanhá-lo até Roma. A viagem, no entanto, não chegou a ocorrer, tendo sido adiada várias vezes, o que permitiu ao moço, ansioso por liberdade, gozar uns tempos de vida sem problemas. Não era obrigado a dizer missa, podia divertir-se à vontade, conhecer pessoas inteligentes, aprofundar-se nos autores clássicos e, principalmente, dedicar-se à redação do diálogo Antibárbaros.

A boa vida, contudo, deveria acabar. Afinal o bispo não precisava mais de secretário e o alegre frade deveria voltar para o convento e dedicar-se aos mesmos afazeres dos colegas de batina. Mas Erasmo tinha tomado gosto pela liberdade e outra vez teve que usar de habilidade para mudar a ordem normal das coisas. E o fez tão bem que convenceu o bispo a envia-lo à capital francesa para obter o título de doutor em teologia. A vida em Paris tinha enormes vantagens, pois a universidade era um verdadeiro centro internacional de cultura e Erasmo poderia desfazer-se do provincianismo do país de nascença.

E realmente isso aconteceu, apesar de confinado a maior parte do tempo naquela prisão do corpo e da alma que era o colégio Montaigu. Nos momentos em que podia ver-se livre, procurava o contato com outras instituições e outras pessoas. Foi assim que conheceu Robert Gaguin (1425-1502) e Faustus Andrelinus (1462-1518), mestres incontestáveis do humanismo na França. No próprio colégio podia aprofundar o conhecimento dos primeiros padres da igreja e aperfeiçoar o latim a ponto de passar a rivalizar com os maiores epistológrafos antigos e modernos.

No entanto, isso tudo não o isentava dos aspectos negativos da vida em Montaigu, e as torturas físicas acabaram por deixá-lo enfermo. Tal fato permitiu-lhe, mais uma vez, pôr a sagacidade prática em funcionamento e safar-se para a terra natal, sob pretexto de necessitar de cuidados médicos especiais.

 

Humor e Teologia

Como era de se esperar, a cura foi muito rápida e logo depois Erasmo aproveitou para libertar-se definitivamente do colégio “vinagre”, como ele mesmo o chamou. Entretanto, ao voltar a Paris, no outono de 1496, tinha que providenciar a subsistência. A solução era dar aulas particulares para não recorrer à Ordem e assim manter sua independência. Antes já tinha tratado de criar clientela e agora tinha alunos muito ricos, especialmente entre a aristocracia inglesa. Não só pagavam muito bem, como possibilitavam-lhe outros privilégios, essenciais para quem queria manter-se livre e dedicar-se à criação de obras de pensamento e arte. Dessa época datam os primeiros esboços dos Colóquios e De como Escrever Cartas, além de pequeno volume de poemas.

Os Colóquios (modificados em várias edições até a definitiva, em 1533) foram concebidos para funcionar junto aos alunos como manual de conversação. Em forma de diálogo extremamente vivo, Erasmo ridiculariza costumes sociais e da Igreja, além de personalidades da época escondidas sob pseudônimos, mas facilmente identificáveis pelo público mais ilustrado da época. Em O Casamento e A Jovem Arrependida satiriza os defensores da vida conventual como ideal de espiritualidade; na Confissão do Soldado e O Soldado e os Cartuxos qualifica sarcasticamente como loucos os jovens atraídos pela carreira das armas.

Ele mesmo, no entanto, nada tinha de louco e sabia muito bem como fazer para dar solução aos problemas de sobrevivência e resguardar sua independência pessoal. Em 1499, acompanhado de lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, chega à Inglaterra, consegue hospedagem no Saint Mary’s College de Oxford e toma contato com uma universidade muito mais aberta a novas ideias do que a de Paris. Em Oxford, estudantes e professores faziam juntos as refeições, em meio a animados debates; eram banquetes com companhia culta, boa comida, não muito vinho e nobre palestra. Erasmo sentiu-se em seu elemento, não só por causa desses costumes cotidianos, mas porque encontrou pessoas que partilhavam de seus interesses intelectuais. Eram muitos os que, em Oxford, pensavam como ele: o arcebispo William Warham (1450-1532), John Fisher (1469-1535), os mestres universitários William Grocyn (1446-1519), Thomas Linacre (1460-1524), e Hugh Latimer (1485(?)-1555), e sobretudo John Colet (1467-1519) e o futuro chanceler de Henrique VIII, Thomas More. Juntos, conceberam o projeto de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos e propunham-se a iniciar, assim, uma revolução na hermenêutica e exegese dos livros sagrados. As consequências foram as mais profundas e as novas traduções a partir dos textos originais revelaram um cristianismo muito diverso daquele que perdurara durante os séculos da Idade Média.

Logo ao chegar à Inglaterra, em 1499, Erasmo não estava ainda dotado de todos os instrumentos necessários para esse trabalho, pois faltava-lhe o domínio do grego. Mas dedicou-se a aprendê-lo com os colegas ingleses e continuou os estudos durante alguns anos, até tornar-se apto a fazer a tradução, com comentários críticos, do Novo Testamento, publicado em 1516, e que veio a constituir um marco dentro da história da hermenêutica bíblica.

Antes, em 1500, Erasmo tentara deixar a Inglaterra, mas um incidente na hora da partida obrigou-o a redigir e publicar outra obra que marcaria época: as autoridades portuárias inglesas não lhe permitiram carregar as economias em ouro e prata, acumuladas custosamente. Mais uma vez viu-se forçado a recomeçar do zero a luta pelo pão de cada dia. Não teve dúvidas sobre como fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma antologia de citações latinas e provérbios, colocando nas mãos do grande público um imenso acervo de cultura, até então privilégio de poucos. O livrinho teve sucesso imediato e foi o primeiro exemplar de literatura de divulgação. Chamava-se Adágios e trouxe celebridade para o autor. À cata de patrocínio e ao mesmo tempo cioso de sua independência pessoal, viaja pelos Países Baixos e pela França, sem fixar-se em lugar algum. Acima de tudo procura não se comprometer com nenhuma instituição ou pessoa. Almeja apenas ao pouco que lhe permitia satisfazer as necessidades básicas, permanecendo livre para o trabalho intelectual.

 

O Elogio da Loucura

Continuando suas viagens, concretiza o velho sonho de estagiar na Itália, centro do humanismo e de toda a renovação intelectual renascentista que se estende pela Europa. Não só as bibliotecas italianas, onde poderia encontrar preciosos manuscritos, mas a tipografia de Aldo Manunzio (1450-1515) excitam-no enormemente, e passa horas e horas a trabalhar com belíssimos caracteres tipográficos, sobretudo os mais miúdos. A imprensa é para ele mais do que uma simples técnica: é o instrumento maravilhoso que abrirá todas as portas da cultura, inaugurando uma nova era.

Em 1509 a Coroa Inglesa passa à cabeça de Henrique VIII (1491-1547), que Erasmo conhecera desde menino e com o qual chegara a corresponder-se em latim. O monarca estava sempre imerso na leitura dos Adágios, segundo informação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os amigos insistem para que Erasmo volte à Inglaterra, pois poderia conseguir do novo soberano uma pensão permanente. Em 1509 deixa definitivamente a Itália e hospeda-se em Londres, na casa de Thomas More, onde encontra o ambiente ideal para o estudo e as longas conversas eruditas. A saúde frágil, porém, perturba-lhe a tranquilidade, e crises de cálculo renal obrigam-no a longas horas de repouso. Erasmo reage ao mal por meio do recurso que lhe servia até como remédio: escrever. Nasce assim uma obra-prima da literatura de todos os tempos e de todas as línguas: O Elogio da Loucura.

Apenas sete dias bastaram para escrever a obra, graças à absoluta liberdade de concepção e total ausência de compromissos. Não se tratava de trabalho feito sob encomenda ou programado para obtenção urgente de dinheiro para subsistência. Era uma brincadeira para passar o tempo, mas quem assim brincava tinha atrás de si toda uma vida dedicada à melhor literatura clássica e mais as experiências de um homem voltado inteiramente para as coisas do espírito.

Erasmo tinha sofrido todas as agruras da pobreza e da bastardia e tinha convivido com príncipes e poderosos. Tinha passado pelos rigores da vida monacal e vira bispos comprazerem-se no luxo e na libertinagem. Fora testemunha do furor criminoso dos príncipes da Itália em guerra e vira a miséria aflitiva do povo. Tudo isso soava-lhe profundamente estúpido e ao mesmo tempo a própria estultícia parecia ser o motor dessas ações absurdas. Passou-lhe então pela cabeça, pouco antes de chegar à Inglaterra, atravessando os Alpes, a ideia de colocar isso tudo no papel. As crises de cálculo renal, na casa do amigo More, forneceram-lhe as circunstâncias propícias para fazer a Loucura subir ao púlpito, sempre acompanhada pela Lisonja e pelo Amor-Próprio, e elogiar a si mesma.

O resultado foi a crítica impiedosa dos juristas minuciosos, dos filósofos escolásticos, dos nobres arrogantes, dos bispos luxuriosos, dos negociantes sórdidos e estúpidos, dos militares que julgavam ser suficiente atirar uma moeda numa bandeja para adquirir a indulgência que os deixaria puros e limpos como quando nasceram.

Todo o Elogio da Loucura é uma mascarada, mantida viva pela ambiguidade estrutural que anima a crítica aos costumes e aos poderosos, e pela inspiração vibrante vestida de admirável roupagem estilística. A opinião pessoal do autor permanece inacessível e, se alguém se atrevesse a discutir com ele por causa do sarcasmo e das críticas que distribui generosamente, poderia responder, tranquilo, que não foi ele quem disse isso, mas Dona Estultícia. E quem deve tomar a sério a loucura?

O próprio livro nada tinha de louco e, muito embora tudo parecesse brincadeira para homenagear o anfitrião Thomas More (em grego, loucura é moria), a pequena sátira obteve imediatamente enorme sucesso e desempenhou papel fundamental na eclosão da Reforma protestante. A maior parte daquilo que os reformadores objetavam à Igreja encontrava-se criticado por Erasmo. O Elogio da Loucura, sob a aparência de festivo fogo de artifício, foi uma das obras que mais abalaram seu tempo, funcionando como verdadeiro panfleto revolucionário. Constituindo a mais ousada e a mais artística obra de sua época, era consumida amplamente por aqueles que voltavam de Roma irritados com os desregramentos de papas e cardeais, a viver a vida suntuosa de príncipes, em contradição com os preceitos do cristianismo original. Os revoltados reclamavam uma reforma geral da Igreja e alimentavam-se ideologicamente das críticas do brilhante humanista Erasmo de Rotterdam.

 

Liberdade ou servidão?

As críticas aos costumes e às instituições, escritas em 1509, vinham-se juntar a uma nova concepção da vida cristã, tal como Erasmo tinha exposto no Manual do Cristão Militante (1501). Nessa obra sonhava com um ideal religioso ao alcance de todos, uma religião interiorizada e humanizada, sem os excessos místicos de boa parte da Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico. Aliam-se também a seu trabalho como filólogo, preocupado com revisar os erros da vulgata e dedicado a uma nova tradução, para o latim, de todo o Novo Testamento. Isso sem contar as inúmeras edições críticas, que preparou, das obras dos primeiros padres da Igreja, especialmente as de São Jerônimo.

Há muito, portanto, Erasmo estava procedendo a uma eficaz reforma da doutrina cristã, ao atacar o pensamento medieval em suas bases. Não possuía, contudo, aquele grão de loucura que ele mesmo achava necessário para fazer o mundo caminhar mais depressa. Não era um revolucionário que pegasse em armas para atacar violentamente o adversário e tentar derrotá-lo em pouco tempo. Não era um condutor de massas, muito embora sua pena tivesse a força de muitos exércitos. Preferia atacar o mal de maneira sutil, pela ironia e pela vivacidade de espírito, dirigidas aos mais inteligentes. Solapava as bases do pensamento da época sem fazer nenhum estardalhaço. Era muito diferente daquele outro frade agostiniano, Martinho Lutero (1483-1546), que estava prestes a irromper como um furacão para mudar toda a ordem econômica, política e religiosa da Europa.

Em abril de 1511, Erasmo deixou a casa de Thomas More, sem ter conseguido obter a esperada pensão de Henrique VIII, cujo amor ao humanismo já tinha sido substituído pelo amor às intrigas da corte e à glória nos campos da batalha. Viaja então até Paris, a fim de publicar Elogio, e retorna à Inglaterra, onde passa a ensinar grego e teologia na universidade de Cambridge. Em 1512 o arcebispo de Canterbury consegue-lhe um reitorado em Kent, com pensão anual de 20 libras, pagáveis inclusive no exterior, mesmo que deixasse de exercer as funções. Dois anos depois Erasmo transfere-se para Basileia, na Suíça, tendo, pouco antes, redigido uma sátira contra o papa Júlio II (1443-1513).

Em Basileia liga-se ao editor Frobenius (1460-1517) e trabalha junto com os operários da tipografia, cuidando do texto grego e latino, além de apreciações críticas, do Novo Testamento e das Cartas de São Jerônimo. Liga-se também ao pintor Holbein (1497-1543) que o retrata várias vezes, e desenha ilustrações para o Elogio da Loucura.

Em meio aos trabalhos eruditos, Erasmo entra em contato, pela primeira vez, com Lutero, através de uma carta de Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. O diplomata, entre outros assuntos, fala-lhe do jovem frade, que sente por ele a mais alta estima, mas não concorda com sua concepção sobre o pecado original. Não adota a opinião de Aristóteles, segundo o qual é justo aquele que procede com justiça. Para Lutero, só se é justo quando se está em estado de justiça. Em outros termos, Lutero acha que primeiro é preciso que o indivíduo seja transformado interiormente; justificado por Deus (Se apropriando, assim, da justiça divina por imputação); as obras viriam depois.

Nessa pequena discordância filosófica estavam contidas todas as diferenças entre os dois reformadores. Erasmo era um humanista no mais completo sentido, que acreditava integralmente nas possibilidades de a razão humana distinguir claramente entre o bem e o mal, e colocava no livre-arbítrio de cada um a fonte de todo autêntico pensamento religioso e da opção moral. Lutero esposava o agostinismo mais extremado, segundo o qual o homem é um miserável ser, condenado ao pecado e à degradação, da qual só pode ser salvo pela graça divina; o homem não pode por si só atingir a beatitude eterna mediante aquilo que faça; é preciso antes entregar-se a Deus pela fé e esperar pacientemente pela misericórdia divina. Erasmo procura a reforma pelo esclarecimento racional, Lutero afirma, antes de tudo, o poder da fé.

A fé remove montanhas, a razão não; pelo menos é no que acreditavam as massas camponesas da época, crença que interessava aos príncipes alemães, preocupados em libertar-se do jugo econômico do Vaticano. Assim, a Reforma seguiu o caminho de Lutero e incendiou o continente, a partir das famosas 95 teses redigidas e afixadas na porta da igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.

 

Entre dois fogos

A história posterior a essa data é marcada pelos insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores, no sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas, pois afinal todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre humanista seria uma arma decisiva na luta, com toda sua cultura e erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro lado ocorre o mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as teses de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de cardeal. Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com nenhum dos lados. A Igreja lhe parece podre e a exigir profundas modificações, mas os reformadores eram, a seu ver, bárbaros e fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar absoluta independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que poderia parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada convicção de que os dois lados estavam errados e o verdadeiro caminho deveria ser criado pelo homem enquanto ser inteligente e livre.

As paixões a seu redor o aborreciam, mas apesar disso continuava a executar seu trabalho intelectual. Em 1517 vem à luz a Questão da Paz, onde advoga o ideal de uma Europa unida e sem fronteiras nacionais. O próprio Erasmo não queria ser holandês, francês, inglês, italiano ou suíço, como realmente não foi, mas tão-somente um cidadão do mundo, e isso ele o foi com coerência e lucidez. Em 1522 publica uma nova edição ampliada dos Colóquios, na qual apresenta uma sociedade justa e racional, verdadeiramente cristã e amiga da paz, que julga possível existir no futuro. Em 1524 é a vez do pequeno tratado Sobre o Livre Arbítrio, contestado dois anos depois pelo Servo Arbítrio, de Lutero. Como se tudo isso não bastasse, continua a trabalhar nas edições críticas dos textos originais dos primeiros padres da Igreja.

Em 1529 Basileia deixa de ser um refúgio tranquilo, e os conflitos religiosos eclodem. Em fevereiro o culto católico é oficialmente abolido, os mosteiros são expropriados, cerram-se as portas da universidade. Erasmo é obrigado a partir. Refugia-se na cidade de Friburgo e continua a escrever: A Amável Concórdia da Igreja, uma nova tradução do Ecclesiastes e quatro volumes sobre a arte da pregação, dedicados ao bispo Fisher, que logo depois seria condenado à morte por não aceitar a autoridade de Henrique VIII em matéria religiosa.

A saúde, entretanto, está abalada. O reumatismo e as dores de estômago são insuportáveis. Mas o remédio contra os males do corpo e do espírito continua à mão: escrever. E viajar também. Projeta voltar à terra natal, para onde é chamado insistentemente pelo bispo de Brabante. Vai antes, contudo, para Basileia, onde deveria esperar o degelo da primavera. Alguns fiéis o retêm por mais algum tempo e cuidam dele carinhosamente. Visita a tipografia de Frobenius para supervisionar a edição do Ecclesiastes e escreve ainda um Comentário ao Salmo XIV, que há muito prometera a um amigo humilde chamado Eschenfelder. Foi o último trabalho.

Em junho de 1536 Erasmo está tão fraco que já não consegue ler, e um mês depois, exatamente no dia 12 de julho, pronuncia as últimas palavras de sua vida, Lieve God (em holandês: Bom Deus) e exala o último suspiro. Deixava como herança a ideia de que a razão deve combater todos os fanatismos e que acima de todos os valores deve estar o homem, sobretudo enquanto ser de inteligência livre. 

SE ISTO É UM POVO (WHETHER THIS IS A PEOPLE), de MIGUEL GRANJA

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL OBSERVADOR DE PORTUGAL


ARTICLE ORIGINALLY PUBLISHED IN THE PORTUGUESE NEWSPAPER  OBSERVADOR. FOR THE ENGLISH TEXT (IN BLUE), SEE BELOW.




Das centenas de disputas territoriais actualmente em curso no mundo, apenas aquela que envolve Israel surge sempre, e não por acaso, enquadrada em termos legais. Mais do que enquadrada – reduzida a, e armadilhada em, termos legais. Em nenhum outro conflito ou disputa a questão legal é tão central e invariável: o conflito em Caxemira, que envolve a Índia e o Paquistão, nunca é qualificado em termos da sua legalidade: Caxemira é “disputada”. Ponto final. Não há registos, por exemplo, de grandes manifestações em Londres e Paris contra a ilegalidade da ocupação turca do norte de Chipre, e o conflito curdo-iraquiano não desperta o mínimo interesse, nem legal nem outro, na opinião pública ou publicada. Se na maior parte dos casos as esferas do direito e da geopolítica são totalmente distintas e autónomas, e analisadas tendo como pressuposto essa distinção e essa autonomia, no caso de Israel elas são praticamente fundidas até à total indistinção. A forma como enquadramos um conflito também é parte do conflito.

 

O actual conflito na Ucrânia permite uma comparação oportuna. As análises ao exercício de legítima defesa da Ucrânia nunca incluem, por parte dos “especialistas”, recomendações a Zelensky sobre “proporcionalidade” e prelecções sobre a inocência dos civis russos. José Milhazes, por exemplo, é capaz de ir à rádio de manhã defender que a Ucrânia está a travar uma guerra defensiva e, portanto, todos os meios de defesa de que se sirva são legítimos contra a agressão russa (“a Ucrânia tem direito a defender-se com os mesmos meios que a Rússia emprega”) – e à noite estar numa televisão a fazer a defesa de que Israel, travando uma guerra defensiva contra uma organização terrorista que usa os seus próprios civis como escudos humanos e hospitais como centros de comando (admitido pelo próprio), não tem legitimidade de se defender plenamente (“Esta ofensiva de Israel irá despertar um espírito anti-israelita nos países árabes e em algumas capitais europeias”).

 

Israel tem, pois, todo o direito de travar uma única guerra, que é ao mesmo tempo uma guerra única: a guerra em que ninguém morre, a não ser judeus; em que ninguém sofre, a não ser judeus; em que ninguém é desalojado ou hospitalizado, a não ser judeus. Em que a parte agredida tem como responsabilidade primeira a de proteger a parte agressora mais do que a parte agredida que está à sua responsabilidade; em que Israel tem mais deveres de protecção da população de Gaza do que o Hamas que a governa; em que Israel é obrigado a preservar intactos os hospitais, as escolas e as mesquitas que o Hamas armadilha e a partir dos quais ataca Israel. De acordo com o enquadramento legal vigente que rege estas matérias sensíveis, a guerra que não existe é a única guerra que Israel pode travar pela sua existência. Israel tem todo o direito de travar uma guerra impossível – e nenhuma outra.

 

No caso (sempre único e isolado) de Israel, o especialista em relações internacionais, tornado advogado instantâneo, suspende o seu ofício de compreensão do mundo e activa o seu anseio de transformá-lo: não há “análise” (que é a designação que actualmente a propaganda atribui à propaganda) que não se sirva de expressões como “direito internacional”, “proporcionalidade”, “crimes de guerra”. Obviamente que o uso destas expressões, fortemente armadilhadas para paralisar a compreensão, se dirige apenas a Israel e à sua acção, nunca aos seus agressores e às suas agressões. Esta hiper-juridificação do conflito não é, no entanto, acidental. Ela é essencial ao seu propósito, o qual visa sobretudo um duplo condicionamento: (1) condicionar Israel à absoluta inacção – em termos práticos, à capitulação – perante as agressões de que é vítima e (2) condicionar os “analistas” à escolha entre duas escolas: a da cobardia e a da indecência. Ou seja, ou a equivalência moral entre bebés degolados e degoladores de bebés (em termos musicais, “Imagine there’s no heaven”) ou a superioridade moral dos degoladores de bebés (em termos musicais, “From the river to the sea”).

 

A partir da articulação deste duplo condicionamento, é possível construir a percepção generalizada de que tudo aquilo que é feito a Israel é legítimo, mesmo que ilegal (como degolar bebés), e de que tudo aquilo que Israel faz é ilegal, mesmo que legítimo (como punir a degolação de bebés). Israel tem toda a legitimidade de se defender, obviamente – desde que não se defenda. Porque defender-se é simultaneamente um direito e um crime: exercer o direito é, ipso facto, cometer o crime; a única forma de não cometer o crime é não exercer o direito. Maravilhoso Catch-22. É o direito como criminalização do próprio exercício do direito. É o direito como criminalização daquilo mesmo que o direito tem como função assegurar. É o direito como impossibilidade de exercer o direito. O nome deste direito anti-direito, esplendorosamente orwelliano, é “direito internacional”.

 

Quando incide sobre Israel, o direito internacional – raramente especificado e invariavelmente distorcido – constitui a própria abolição do direito. Na medida em que visa a proscrição de um único povo e a sua remoção da família dos povos, actuando assim como um instrumento de discriminação legalizada, o “direito internacional” são as Leis de Nuremberga das nações. Israel não é uma nação, é o Untermensch das nações, é o dhimmi das nações, criatura de classe inferior e proibida, agora como outrora, de se defender: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris). O acto de atirar pedras aos judeus por parte das crianças muçulmanas tem raízes muito anteriores ao surgimento do corrente conflito. Constitui, como conta Bernard Lewis em The Jews of Islam (1984), um velho fenómeno relatado por vários observadores: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth to offer to strike a Mahommedan”. A “dhimmização” de Israel, essa sim, não acontece num vácuo.

 

Décadas de desumanização dos israelitas por parte da imprensa ocidental conduziram à absoluta dormência moral relativamente ao sofrimento de um dos lados do conflito. Desumanização que persiste, mesmo após o pogrom de 7 de Outubro. Quem se der ao trabalho de fazer um levantamento das primeiras páginas do Público dedicadas ao conflito desde o passado 8 de Outubro, verá que nem por uma vez o sofrimento israelita é captado e transmitido. Em Israel, que não passa de uma grotesca abstração militar, não existem humanos, apenas soldados; não existem casas, apenas tanques; não existem mortos, apenas estatísticas. Todas as crianças apresentadas, mortas ou aterrorizadas, são palestinianas. Não há mater dolorosa israelita neste conflito: toda a Pietà é palestiniana. Os bebés israelitas carbonizados e mutilados, as raparigas israelitas violadas e desfiladas, os idosos israelitas mortos e humilhados nunca fazem primeira página. Não se vêem nem se ouvem. É como se nunca tivessem morrido. É como se nunca tivessem sequer existido. É como se fossem apenas, de novo, cinza cuspida da chaminé de um crematório nazi e levada pelo vento: “nem os mortos estarão em segurança”, alertou, não há muito, Walter Benjamin.

 

É uma segunda morte em cima da primeira. Um novo rapto a somar ao velho. A inexistência de fotos na imprensa não é, no essencial, moralmente diferente da nova moda que consiste em rasgar e deitar ao lixo os cartazes com as fotos dos sequestrados em Gaza. O sofrimento judaico não pode ser visto nem exposto em público. Sob pena de começarmos a colocar a nós mesmos a eterna questão de Shylock: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?

 

Nem uma foto dos reféns. Nem uma foto dos bebés mortos. Nem uma foto das jovens violadas. Se compararmos esta ocultação deliberada com as famosas fotos da guerra no Vietname, teremos uma ideia, ainda que vaga, do ponto a que a nossa imprensa desceu. Expor o monge budista que se auto-imola numa rua de Saigão (World Press Photo of the Year, 1963), ou o tiro na cabeça de um suspeito vietcong por parte de um oficial vietnamita (World Press Photo of the Year, 1968), ou a menina aterrorizada que foge, completamente nua, de um ataque acidental de napalm (World Press Photo of the Year, 1973), era revelar à opinião pública “the terror of war”. Onde está a menina israelita? A menina nua, aterrorizada, sequestrada, violada, morta? Não existe. Nunca existiu. Todas as meninas são palestinianas. Em casa, em agonia, não há nenhuma mãe à espera da menina israelita. Porque, como as meninas, todas as mães à espera em casa e em agonia são palestinianas. As primeiras páginas não mentem: a menina israelita, já morta ou ainda sequestrada, não existe. Nunca existiu.

 

Este conflito não é, na sua essência, sobre território. É sobre esta menina. Não é um conflito imobiliário. Não é um conflito geográfico. Numa coisa os anti-sionistas (isto é, os anti-semitas, de esquerda e de direita, cada vez menos envergonhados) têm razão: este é um conflito sobre o direito. Não sobre o direito internacional, mas sobre o direito de existir. Sobre o direito, portanto, de que dependem todos os outros. Sobre a existência, o direito à existência, daquela menina nua que não existe. Os milhares (milhões?) que hoje gritam nas ruas “From the river to the sea”, não disfarçam já que é – sempre foi e sempre será – sobre o direito de existir. Quem viu o pogrom daquela manhã sabe que o 7 de Outubro não é apenas mais um episódio do longo conflito. Não é parte do conflito: é onde o conflito se parte. O 7 de Outubro não é mais um capítulo da história do conflito – é o instante, paradoxalmente sombrio e luminoso, crepuscular e amanhecente, em que todo o conflito se suspende, se confessa e expõe, de uma vez por todas, o terrível segredo da sua origem e perpetuação: se isto é um povo.


WHETHER THIS IS A PEOPLE (Portuguese text by Miguel Granja, English translation by Myrna Herzog)


Of the hundreds of territorial disputes currently taking place around the world, only the one involving Israel always appears, and not by chance, framed in legal terms. More than framed – reduced to, and trapped in, legal terms. In no other conflict or dispute is the legal question so central and invariable: the conflict in Kashmir, which involves India and Pakistan, is never qualified in terms of its legality: Kashmir is “disputed”. Full stop. There are no records, for example, of large demonstrations in London and Paris against the illegality of the Turkish occupation of northern Cyprus, and the Kurdish-Iraqi conflict does not arouse the slightest interest, whether legal or otherwise, in public or published opinion. If in most cases the spheres of law and geopolitics are totally distinct and autonomous, and analyzed based on the assumption of this distinction and autonomy, in the case of Israel they are practically merged until total indistinction. How we frame a conflict is also part of the conflict.

The current conflict in Ukraine allows for a timely comparison. Analytics of Ukraine's exercise of self-defense never include, on the part of the “experts”, recommendations to Zelensky on “proportionality” and lectures on the innocence of Russian civilians. José Milhazes, for example, is capable of going on the radio in the morning to argue that Ukraine is fighting a defensive war and, therefore, all means of defense it uses are legitimate against Russian aggression (“Ukraine has the right to defend itself with the same means that Russia employs”) – and at night be on television making the case that Israel, waging a defensive war against a terrorist organization that uses its own civilians as human shields and hospitals as centers of command (self-admitted), does not have the legitimacy to fully defend itself (“This Israeli offensive will awaken an anti-Israeli spirit in Arab countries and in some European capitals”).

Israel therefore has every right to fight a single war, which is at the same time a unique war: the war in which no one dies except Jews; in which no one suffers except Jews; in which no one is displaced or hospitalized except Jews. In which the attacked party has the primary responsibility to protect the aggressor more than the attacked party who is under their responsibility; in which Israel has more duties to protect the population of Gaza than the Hamas that governs it; in which Israel is obliged to preserve intact the hospitals, schools and mosques that Hamas traps and from which it attacks Israel. According to the current legal framework that governs these sensitive matters, the war that does not exist is the only war that Israel can fight for its existence. Israel has every right to fight an impossible war – and no other.

In the (always unique and isolated) case of Israel, the specialist in international relations, turned instant lawyer, suspends his task of understanding the world and activates his desire to transform it: there is no “analysis” (which is the designation that currently propaganda attributes to propaganda) that does not use expressions such as “international law”, “proportionality”, “war crimes”. Obviously, the use of these expressions, heavily crafted to paralyze understanding, is only directed at Israel and its actions, never at its aggressors and their aggressions. This hyper-juridification of the conflict is not, however, accidental. It is essential to its purpose, which aims above all at a double conditioning: (1) to condition Israel to absolute inaction – in practical terms, to capitulation – in the face of the aggressions of which it is a victim and (2) to condition the “analysts” to the choice between two schools: that of cowardice and that of indecency. In other words, either the moral equivalence between beheaded babies and baby beheaders (in musical terms, “Imagine there’s no heaven”) or the moral superiority of baby beheaders (in musical terms, “From the river to the sea”).

From the articulation of this double conditioning, it is possible to construct the widespread perception that everything that is done to Israel is legitimate, even if illegal (such as beheading of babies), and that everything that Israel does is illegal, even if legitimate (such as punishing the beheading of babies). Israel has every right to defend itself, obviously – as long as it doesn't defend itself. Because defending oneself is simultaneously a right and a crime: exercising the right is, ipso facto, committing the crime; The only way not to commit the crime is not to exercise the right. Wonderful Catch-22. It is law as a criminalization of the exercise of law itself. It is the law as criminalization of the very thing that the law has the function of ensuring. It is the right as the impossibility of exercising the right. The name of this splendidly Orwellian anti-law is “international law”.

When it affects Israel, international law – rarely specified and invariably distorted – constitutes the abolition of law itself. Insofar as it seeks to ban a single people and remove them from the family of peoples, thus acting as an instrument of legalized discrimination, “international law” is the Nuremberg Laws of nations. Israel is not a nation, it is the Untermensch of nations, it is the dhimmi of nations, a creature of an inferior class and prohibited, now as before, from defending itself: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris) . The act of throwing stones at Jews by Muslim children has roots long before the emergence of the current conflict. It constitutes, as Bernard Lewis says in The Jews of Islam (1984), an old phenomenon reported by several observers: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth offering to strike Mahommedan”. The “dhimmization” of Israel does not happen in a vacuum.

Decades of dehumanization of Israelis by the Western press have led to absolute moral numbness regarding the suffering on one side of the conflict. Dehumanization that persists, even after the pogrom of October 7th. Anyone who cares to survey the front pages of the Público newspaper dedicated to the conflict since October 8th will see that not once is Israeli suffering captured and transmitted. In Israel, which is nothing more than a grotesque military abstraction, there are no humans, only soldiers; there are no houses, only tanks; there are no dead people, just statistics. All the children shown, whether dead or terrified, are Palestinian. There is no Israeli Mater Dolorosa in this conflict: the entire Pietà is Palestinian. The burned and mutilated Israeli babies, the raped and paraded Israeli girls, the dead and humiliated Israeli elderly people never make the front page. They are not seen nor heard. It's as if they never died. It's as if they never even existed. It's as if they were just, once again, ash spit from the chimney of a Nazi crematorium and carried by the wind: “not even the dead will be safe”, Walter Benjamin warned not long ago.

It's a second death on top of the first. A new kidnapping to add to the old one. The lack of photos in the press is, in essence, not morally different from the new fashion that consists of tearing up and throwing away posters with photos of those kidnapped in Gaza. Jewish suffering cannot be seen or exposed in public. Under penalty of starting to ask ourselves Shylock's eternal question: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?”

Not even one photo of the hostages. Not even one photo of the dead babies. Not even one photo of the raped young women. If we compare this deliberate concealment with the famous photos from the war in Vietnam, we will have an idea, albeit vague, of the point to which our press has sunk. Exposing the Buddhist monk who self-immolates on a Saigon street (World Press Photo of the Year, 1963), or the shooting in the head of a Viet Cong suspect by a Vietnamese officer (World Press Photo of the Year, 1968), or the terrified girl who flees, completely naked, from an accidental napalm attack (World Press Photo of the Year, 1973), was to reveal to public opinion “the terror of war”. Where is the Israeli girl? The naked, terrified, kidnapped, raped, dead girl? She does not exist. She never existed. All the girls are Palestinian. At home, in agony, there is no mother waiting for the Israeli girl. Because, like the girls, all the mothers waiting at home in agony are Palestinian. The first pages don't lie: the Israeli girl, already dead or still kidnapped, doesn't exist. She never existed.

This conflict is not, in essence, about territory. It's about this girl. It's not a real estate conflict. It is not a geographic conflict. In one thing the anti-Zionists (that is, the anti-Semites, left and right, who are increasingly less ashamed) are right: this is a conflict over rights. Not about international law, but about the right to exist. On the right, therefore, on which all others depend. About the existence, the right to existence, of that naked girl who doesn't exist. The thousands (millions?) who today shout in the streets “From the river to the sea”, do not hide the fact that it is – always has been and always will be – about the right to exist. Anyone who saw the pogrom that morning knows that October 7th is not just another episode in the long conflict. It is not part of the conflict: it is where the conflict breaks out. The 7th of October is no longer a chapter in the history of the conflict – it is the moment, paradoxically dark and luminous, twilight and dawn, in which the entire conflict is suspended, confessed and exposed, once and for all, the terrible secret of its origin and perpetuation: whether this is a people.

UMA SEMANA EM AMSTERDAM

Esta é a décima vez em minha jornada terrestre que venho a Amsterdam, em média uma a cada sete anos. A primeira foi na excursão que ganhei de bar-mitzva em 1965, quando escrevi no diário de viagem: “[...] passeei a pé pela cidade, que é toda cortada por canais. Cada dia cai um carro num canal.” Agora pequenas amuradas de ferro evitam essas quedas. No meu livro de memórias O RIO, O MUNDO E EU: UMA MEMÓRIA FILOSÓFICA & SENTIMENTAL, vencedor do Prêmio Áureo Nonato em 2022, a ser ainda publicado, narro minhas aventuras de fumador de haxixe no início de 1972 nessa “unofficial capital of the European drug scene”, segundo meu guia da época. Voltei à simpática capital neerlandesa (agora “careta”) em 1984, 1986, 1988, 1996, 2007, 2009, 2014 e 2023. No diário da viagem de 2009 escrevi: “Não posso conceber uma viagem à Europa sem uma peregrinação à velha Amsterdam (cenário de minha aventura hippie em 1972), a cidade mais alto-astral da face da terra [...]”.

A então Câmara Municipal, atual Palácio Real, no Dam em quadro de Gerrit Berckheyde de 1672. À sua direita a Nieuwe Kerk, Igreja Nova, que também continua lá.
 

Domingo, 24/9/2023: PARTIDA

O europeu tem a vantagem de poder visitar a “Europa” sem esse cansativo deslocamento de Sampa (ou Rio) até lá. No dia da viagem você já acorda tenso. A tensão em casa chega a um nível tal que você parte para o aeroporto com uma antecedência estúpida (fomos de Uber) e – tendo passado pela segurança e migração – fica uma eternidade aguardando a chamada do seu voo. Pelo menos comigo é assim. 

No terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos, embarcamos no voo KL792 com partida às 21:45 e tempo de voo de umas onze horas e vinte minutos. Ocupamos os assentos 55F e G quase no fundo da aeronave, lá são mais baratos. Os aviões são cada vez mais apertados e lotados. Numa foto de 2007 eram quatro assentos centrais e dois de cada lado, totalizando oito por fila. Agora são três de cada lado, dez por fila.

No voo de ida, o alto padrão da KLM, que conheço desde os anos 1980, estava irreconhecível: aeromoças jovens, quase estagiárias, serviço estandardizado, comida sem graça, como em qualquer outra companhia aérea europeia. Já na volta foi diferente: aeromoças veteranas e o famoso serviço de bordo holandês com comidinhas, bebidinhas quase o voo inteiro, como nos velhos tempos.

 

Segunda-feira. 25/9: CHEGADA

Choque de fuso horário, cansaço de uma noite mal dormida. Você faz o reconhecimento da cidade. Em Amsterdam, tudo no mesmo lugar. No centro histórico, nenhum prédio foi demolido, nenhum espigão foi erguido. Tudo igual. Você dorme à força de sonífero para no dia seguinte, aí sim, começar a sua visita, a sua experiência de transporte radical para uma nova realidade diferente do seu dia a dia no qual você já se viciou: morte e renascença, metafisicamente. (Isso para quem faz da viagem uma experiência radical, como eu; agora se você fica do outro lado do Atlântico obsessivamente conferindo o Whatsapp, checando o e-mail, falando no telefone, lendo as notícias de nossa porca política, etc., aí seu corpo está do lado de lá mas sua cabeça continua do lado de cá...)

Desembarcando no aeroporto de Schiphol, compramos nossas passagens de trem até a Centraal Station de Amsterdam. Lá chegando, adquiri um cartão de sete dias (7 dagen, €41) + um de um dia (Dagkaart, € 9, não existe cartão de oito dias) para, com esse investimento de cem euros, cinquenta por cabeça) usufruir livremente do transporte público metropolitano, o que proporciona uma mobilidade tremenda. Pegamos o metrô até a estação Waterlooplein e caminhamos até o nosso hotel, o IBIS AMSTERDAM CENTRE STOPERA na Valkenburgerstraat 68, que por uma semana tornou-se nosso endereço temporário. Como no filme, conseguimos A room with a view.

Aviso aos navegantes: hotéis no centro histórico de Amsterdam são caros, bem mais que em outras metrópoles europeias. Nossas oito diárias custaram 1574,73 euros – 197 euros cada. Não há terrenos disponíveis para construir hotéis novos, e a população crescente de turistas tem que contar sempre com os mesmos, ou pegar um hotel numa “periferia”(tipo ibis Amsterdam City West) ou cidade vizinha, o que tira toda a graça e praticidade de uma visita à encantadora Amsterdam.

Vista da janela do hotel, à semelhança do filme A room with a view.

Terça-feira, 26/9: AMSTERDAM, PRIMEIRO DIA

O pessoal endinheirado contrata guias turísticos para conduzi-los pelas atrações da cidade. Eu sou meu próprio guia: antes desta viagem a Amsterdam, li o Guia Visual da Folha de São Paulo (que é uma tradução do DK Eyewitness Travel Guide britânico) e consultei sites na Internet para montar um roteiro dia a dia, como se tivéssemos pegado uma excursão, incluindo algumas tardes livres para dar margem ao improviso também. Nosso passeio no primeiro dia, todo a pé, levou-nos aos seguintes locais:

 

HUIS WILLET-HOLTHUYSEN (Herengracht 605, €12,50, 10-17hrs)

Segundo o Guia Visual (pp. 120-1), “esse museu, cujo nome homenageia os últimos moradores da edificação, oferece ao visitante um vislumbre de como era a vida dos ricos comerciantes instalados à beira do Grachtengordel (Anel de Canais).” A casa pertenceu ao casal Abraham Willet, colecionador de arte e pintor amador, e Louisa Holthuysen. Ao morrer, em 1895, a viúva, sem filhos, legou sua opulenta residência, com a coleção de móveis antigos, prata, cerâmica, esculturas, pinturas e fotos, à cidade de Amsterdã, sob a condição de virar um museu com o nome do casal.


REMBRANDTPLEIN (Praça Rembrandt)

As estátuas em tamanho natural dos integrantes do quadro “A Ronda Noturna” que vimos em 2014 já não estão mais lá, pois a prefeitura da cidade recusou-se a comprá-las ao preço de um milhão e meio de euros exigido pelos escultores.

Rembrandt
 

PATHÉ TUSCHINSKI (Reguliersbreestraat 26-34)

Segundo a revista inglesa Time Out, o mais bonito cinema do mundo, combinando vários estilos: Escola de Amsterdam, art nouveau e art déco. Durante a ocupação, os alemães mudaram o nome do cinema para Tivoli, que passou a exibir apenas filmes alemães. O proprietário, Abraham Tuschinski, foi assassinado pelos nacional-socialistas (mais conhecidos como “nazistas”) nas câmaras de gás de Auschwitz.

 

KATTEN KABINET (Herengracht, 497, na chamada Curva do Ouro, terça a domingo, 12-17hrs, ingressos devem ser comprados previamente no site do museu)

O Katten Kabinet (ou Kattenkabinet, literalmente, “gabinete dos gatos”) é um museu criado por Bob Meijer em 1990 em memória do gato laranja John Pierpont Morgan (1966-1983), nome de um famoso banqueiro americano, que se tornou (o gato, não o banqueiro!) um fiel companheiro no seu tempo de estudante. A cada aniversário do bichano seu dono o presenteava com uma obra de arte de temática felina, o que deu início à coleção. Após a morte do bichinho, Bob, em visita ao Metropolitan Museum of Art de Nova York, deparou com uma exposição temporária de obras do acervo do museu sobre gatos. Daí a ideia de criar um museu em Amsterdam com uma exposição permanente semelhante. Na década de 1980 conseguiu comprar um casarão de 1667 na área do anel de canais, onde instalou o “gabinete dos gatos”. Além de quadros e cartazes de propaganda ostentando esses encantadores felinos, gatos em carne e osso circulam pelas dependências do museu.

gatos em carne e osso circulam pelas dependências do museu

Poes op stoel, Gato na cadeira, óleo sobre tela de Sal Meijer (1877-1965).


VLAAMS FRITESHUIS VLEMINCKX (Voetboogstraat, 33)

Assim como a carne que você come na Argentina não tem similar em nenhum outro canto do mundo (outra raça de gado, outros cortes), a batata frita com uma maionese muito especial servida em cones de papelão em três tamanhos (pequeno, médio, grande) que você saboreia na Holanda é uma iguaria inimitável. A Vlaams Friteshuis VleminckX é uma “lojinha” com um balcão na frente, sem mesas, sem nenhum conforto, que vende uma das melhores batatas fritas (friet), se não a melhor, de Amsterdam, que você come de pé na frente da loja ou leva para comer num banco da Koningsplein (praça do rei, plein é praça) próxima, onde de quebra você encontra um quiosque de arenques.

a batata frita com uma maionese muito especial servida em cones de papelão em três tamanhos (pequeno, médio, grande) que você saboreia na Holanda é uma iguaria inimitável
 

BEGIJNHOF (entrada pela Gedempte Begijnensloot, veja no Google Maps)

Um hofje era uma comunidade formada por várias casas em torno de um jardim que abrigava pessoas necessitadas. Hoje em dia nessas casas moram pessoas “normais”. O Begijnhof é o maior e mais antigo desses hofjes ainda existentes e, como o nome indica, foi originalmente uma beguinaria (comunidade de beguinas). Recanto tranquilo, casas em torno de um jardim com árvores e gramados, além de uma igreja e capela, aberto à visitação, mas pede-se silêncio aos visitantes, para não incomodar os moradores. Na parede lateral de uma das casas vemos uma série de pedras de fachada em baixo relevo com temas bíblicos, retiradas de casas em outros locais e restauradas. Numa dessas pedras a legenda "De Gloyende Oven", "O Forno Ardente", cena bíblica dos três meninos que se recusaram a adorar a estátua dourada erguida pelo rei Nabucodonosor. Condenados a morrer numa fornalha, foram salvos por um anjo (Daniel 3 vs 1-30).

Um hofje era uma comunidade formada por várias casas em torno de um jardim que abrigava pessoas necessitadas

Numa dessas pedras a legenda "De Gloyende Oven", "O Forno Ardente", cena bíblica dos três meninos que se recusaram a adorar a estátua dourada erguida pelo rei Nabucodonosor. Condenados a morrer numa fornalha, foram salvos por um anjo.

 

ANEL DE CANAIS

Dali descemos até o Dam, com seu icônico monumento nacional em memória aos mortos na Segunda Guerra Mundial – em cujos degraus hippies acampavam na virada no final dos anos 60 e início dos 70 até enfim serem desalojados para que aquilo não virasse uma Praça da Sé – e penetramos no “anel de canais” (Grachtengordel), conjunto de quatro canais concêntricos formando quase um semicírculo: Singel, Herengracht, Keizersgracht e Prinzengracht), aberto no século XVII para a expansão da cidade e reconhecido em 2010 pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. 

descemos até o Dam, com seu icônico monumento nacional em memória aos mortos na Segunda Guerra Mundial

e penetramos n“anel de canais”

Anel de canais, conjunto de quatro canais concêntricos formando quase um semicírculo: Singel, Herengracht, Keizersgracht e Prinzengracht. Foto de Cor Harteloh. Fonte: site do Museu dos Canais.

Entramos em dois hofjes, que são casas em torno de um jardim central que no passado abrigavam pessoas necessitadas. É preciso abrir um portão de madeira com uma placa indicando o horário, e você (que mora num país onde nem sempre vale o escrito) fica inseguro, indagando: será que tá aberto mesmo? No Zon’s Hofje (Prinsengracht 159-171), menorzinho, um pouco mal conservado, corredor de acesso cheirando a mofo, deparamos com encantadores gatos pretos. Já o Van Brienenhofje (Prinsengracht 89-133), também conhecido como De Star, nome de uma cervejaria antes lá existente, é um achado: encantador jardim, vasos de flores nas escadinhas em frente das casas e sacadas das janelas, tudo muito primoroso. Um senhor de certa idade morador da periferia de Amsterdam com quem conversamos contou que era a primeira vez que entrava naquele hofje, pois antes não sabia de sua existência. Gentilmente traduziu para nós as informações em holandês da placa na entrada do hofje. No Cafe Winkel 43 (esquina da Prinsengracht com Westerstraat) comemos a melhor torta de maçã da cidade, cuja massa de consistência abiscoitada tem gosto de amêndoas. Fotografamos a Huis met de Hoofden (Keizersgracht, 123, ±altura do Dam), casa com cabeças na fachada, que abriga a Embassy of the Free Mind.

Já o Van Brienenhofje, também conhecido como De Star, nome de uma cervejaria antes lá existente, é um achado

vasos de flores nas escadinhas em frente das casas e sacadas das janelas

Huis met de Hoofden (Keizersgracht, 123, ±altura do Dam), casa com cabeças na fachada, que abriga a Embassy of the Free Mind
 

Quarta-feira, 27/9: AMSTERDAM, SEGUNDO DIA

 

MUSEU VAN GOGH (Museumplein 6)

Museu de arte tem que ser o primeiro passeio do dia, curtido de cabeça fresca. São muitos os museus de arte dignos de visita em Amsterdam, mas não se deve ver mais de um por dia: beleza em doses cavalares acaba embotando a sensibilidade (assim como o doce de leite em excesso enjoa). Atração obrigatória em Amsterdam é o museu que reúne uma parte substancial da obra do gênio mentalmente perturbado que, sem jamais ter cursado uma academia, meteu-se a ser pintor, autodidata, de quadros que destoavam dos padrões estéticos e decorativos da época e que ninguém queria comprar. Matou-se com um tiro no peito porque achou que seu destino era ser um fracassado e acabou virando cult, considerado o precursor da arte moderna. Quando inventarem a máquina do tempo, o valor arrecadado agora com o leilão de uma única obra sua, devidamente transportado para o passado, fará dele um milionário.

O Museu Van Gogh não tem bilheteria: você precisa adquirir os ingressos pelo site, marcando data e hora. Não foi a primeira vez que visitei, mas sempre vale a pena repetir a visita.

Talvez o maior museu do mundo dedicado a um único artista – embora algumas obras de outros artistas da época também estejam expostas para comparação – e, paradoxo dos paradoxos, artista que durante sua vida esteve longe do sucesso financeiro de outros artistas como, digamos, Rembrandt. Além da exposição de obras, o museu expõe sua biografia. História de sofrimento, de persistência, de um fracasso em vida transmutado em sucesso estrondoso pós-morte.

Impressionante a imensidão de obras que Van Gogh produziu – 900 quadros e 1200 desenhos, dos quais 200 e 500, respectivamente, compõem o acervo do museu – num espaço inferior a dez anos: mil oitocentos e oitenta e pouco a 1890, quando se suicidou. Sempre ouvimos dizer que Van Gogh não conseguia vender seus quadros. De fato, a arte acadêmica exibida nos salões da época era mais exuberante, decorativa, com motivos orientais, exóticos, ou de interiores suntuosos... Os primeiros quadros de Van Gogh, como Os Comedores de Batatas, são lúgubres, quase monocromáticos. Em Paris, o artista aprende a pintar quadros impressionistas como os que pintores de rua vendem até hoje em Montmartre. Em Arles, Saint-Rémy e Auvers-sur-Oise, desenvolve o estilo turbulento de cores fortes, contrastantes, nem sempre correspondendo à realidade, traços ondulados e contornos fluidos, estilo que o celebrizou.

Os primeiros quadros de Van Gogh, como Os Comedores de Batatas, são lúgubres, quase monocromáticos

desenvolve o estilo turbulento de cores fortes, contrastantes, nem sempre correspondendo à realidade, traços ondulados e contornos fluidos, estilo que o celebrizou

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Na saída do museu, a caminho do Vondelpark próximo, fiz esta observação: Em Amsterdam tudo é bonito. Você olha para o chão, como é o chão? Bonito.


Olha para o lado, como é o lado? Bonito.


As casas são bonitas. As pontes, as árvores, o céu, em Amsterdam tudo é bonito.


Aí alguém dirá: tá, você estava no centro histórico, lá tudo é bonito, mas e a periferia? Viajamos no bonde histórico (ver “Domingo”) de Amsterdam à cidade vizinha de Amstelveen, o correspondente a ir do Rio à vizinha Nova Iguaçu ou de Sampa à vizinha Guarulhos e... tudo também bonito. E os rios não eram poluídos.


VONDELPARK

Aproveitamos a proximidade do Voldelpark, uma espécie de Central Park ou Hyde Park amsterdamês, e o outono ameno (em Londres nesta época alguns anos atrás pegamos um frio de rachar), para fazer um piquenique nesse parque com as saladas que compramos no supermercado Albert Heijn, onipresente em Amsterdam. A natureza sorria exuberante, até as nuvens do céu colaboravam para compor um panorama digno de um pintor impressionista. Só que hoje em dia os pintores cederam lugar aos fotógrafos. Num banco do parque uma placa em memória de Sven Pinck, ex-membro atuante da Associação de Amigos do Vondelpark, falecido em 2022, aos 51 anos: Wees lief en koester elkaar. Vier het leven! - Sejam gentis e valorizem uns aos outros. Celebrem a vida! Enfiamo-nos parque adentro até que resolvemos dar meia-volta e retornar ao ponto de partida. Só que havíamos perdido o senso de direção e, quando achamos que enfim tínhamos atingido a entrada, em verdade havíamos chegado à outra extremidade, o fundo do parque! Parque enorme, vejam no Google Maps!

A natureza sorria exuberante
 
um panorama digno de um pintor impressionista

até as nuvens do céu colaboravam

MOINHO DE GOOYER

Em seu apogeu os Países Baixos contavam com mais de 10 mil moinhos de vento, que ajudavam a combater a escassez de água. Atualmente persistem cerca de mil. Amsterdam ainda preserva nove antigos moinhos, o mais acessível sendo o De Gooyer, na Funenkade 7, a leste do centro. Pegamos a linha de bonde 7 no Leidseplein e saltamos sete estações depois em Hoogte Kadijk. O moinho abriga uma cervejaria onde se podem saborear deliciosas cervejas artesanais, em compridas mesas coletivas ao ar livre, como num Biergarten alemão.

Amsterdam ainda preserva nove antigos moinhos, o mais acessível sendo o De Gooyer

como num Biergarten alemão
 

RIJSTAFFEL NO RESTAURANTE KANTJIL & DE TIJGER (Spuitstraat 291-293 - atrás do Begijnhof)

À noite fomos num restaurante com boa cotação no Google Maps comer o rijsttafel (literalmente, “mesa de arroz”), lauta refeição originária da Indonésia colonial (as Índias Orientais Holandesas) composta de vários pratos com temperos variados, servidos ao mesmo tempo, cada um numa cumbuca ou pratinho separado, lotando a mesa, tendo por acompanhamento arroz enrolado em folha de bananeira. Você gasta o que gastaria em uma churrascaria rodízio cara.

 

Quinta-feira, 28/9: AMSTERDAM, TERCEIRO DIA

 

AMSTERDAM MUSEUM

Enquanto o prédio tradicional do Museu de Amsterdam vem sendo reformado, parte do acervo está sendo exibido numa ala da extinta “filial” amsterdamesa do Museu Hermitage russo, à beira do Rio Amstel, perto de Waterlooplein. O museu, além de conduzir o visitante pela história da cidade, ostenta um bom acervo de pinturas, como retratos de grupo (de guardas cívicas, por exemplo) e panoramas da cidade. Esta cresceu espetacularmente durante o século XVII, de 30 mil habitantes em 1570 a 200 mil em 1700, tornando-se o centro do comércio mundial, com o comércio colonial assumindo um papel crescente. A invasão da cidade por tropas napoleônicas levou à coroação de Luís Bonaparte, irmão de Napoleão, como rei da Holanda em 1806, e Amsterdam deixou de ser uma cidade-Estado independente. Com a derrota napoleônica, Amsterdam continuou a capital do agora Reino dos Países Baixos (Koninkrijk der Nederlanden). No século XX a cidade sofreu a brutal ocupação nazista, e no pós-guerra protagonizou um fenômeno novo: a contracultura jovem. A ocupação, o primo de meu pai, Ludwig Hoffman, viu. A onda da contracultura eu vi!

 

ostenta um bom acervo de pinturas, como retratos de grupo (de guardas cívicas, por exemplo)
...e panoramas da cidade: Gerrit Berckheyde, A Curva no Herengracht vista da ponte de Vijzelstraat. Observe que na época ainda não havia árvores plantadas à beira do canal. Embaixo o mesmo local visto atualmente.


PASSEIO A PÉ PELO JORDAAN E ILHAS OCIDENTAIS

Após o banho de história, passeio “guiado” pelo bairro do Jordaan e Ilhas Ocidentais. Guiado não por um guia em carne e osso, mas por nosso Guia Visual da Folha de São Paulo (pág. 158). Uma oportunidade de conhecer um lado menos turístico, mais bucólico e menos apinhado de Amsterdam, algo que só se pode fazer em cidades seguras, civilizadas. Em Salvador, metade do Centro você não pode percorrer por problemas de segurança. Uma vergonha para os baianos e para o Brasil!

O Jordaan é um bairro gostosinho a oeste do anel de canais. As Ilhas Ocidentais (Westelijke Eilanden) são um conjunto de três ilhotas residenciais quase grudadas umas nas outras, interligadas por pontes. Vejam as fotos.

Em cima: Pedra de fachada em baixo relevo com o tema bíblico da Arca de Noé.

Jordaan é um bairro gostosinho a oeste do anel de canais

As Ilhas Ocidentais são um conjunto de três ilhotas residenciais

Antigo depósito Vrede (Paz), hoje residencial

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No final da jornada um chocolate com rum mais panqueca tipo holandesa de amêndoas, maçã e creme de chantilly no Pancakes Amsterdam, anexo à casa Anne Frank.


Sexta-feira, 29/9: AMSTERDAM, QUARTO DIA

 

PARADISO

Nos meus tempos de porra-louquice em Amsterdam em 1972 de noite me perdia pelos meandros do Paradiso, um então "clube de drogas" numa antiga igreja, com vários ambientes, dois andares, que funciona até hoje. Só que agora virou uma fundação (Stichting) que organiza concertos badalados, com ingressos caros, em diferentes locais (entre eles a sede original na Weteringschans). Senti vontade de entrar lá uma segunda vez, de modo que, antes da viagem, escrevi um e-mail suplicando:

 

I'm from Brazil. In 1972 when I was 21 years old I spent some time in Amsterdam and went almost every night to Paradiso. It wasn't as expensive as today. Afterwards I've travelled many times to Amsterdam but never entered Paradiso again. I have no interest in the shows from today, musically, besides classical music and Brazilian popular music, I'm still living in the 70's (Pink Floyd, Emerson Lake and Palmer, Jethro Tull etc.)! But if you could allow my entrance for only ten minutes inside Paradiso before the beginning of the shows (for example, early in the morning) only to see it quickly once again and take some photos I would be very grateful!

 

Ao que me responderam:

 

We can never guarantee this, but when it’s possible, we always let people in for a short peep.

The best time is early morning, after 9:00 and before noon. Just ring the bell on the left side of the building and see if we have time.

 

De modo que resolvi tentar a sorte e, quando me apresentei, uma mulher superatenciosa deixou que eu entrasse e matasse as saudades.

Nos meus tempos de porra-louquice em Amsterdam em 1972 de noite me perdia pelos meandros do Paradiso

 

Paradiso bombando. Foto do jornal Het Parool.

 

RIJKSMUSEUM

O Rijksmuseum é um desses museus monumentais que você encontra nas metrópoles europeias que abrigaram grandes cortes e dos quais no Brasil só o MASP consegue dar uma pálida ideia. No pavimento 3, arte moderna. No pavimento 2 a Era de Ouro (Gouden Eeuw), 1600 a 1700, com obras de mestres da arte neerlandesa como Rembrandt e Vermeer. Alguns quadros icônicos, como a leiteira de Vermeer, atraem multidões, todo mundo quer fotografar (como você vê na foto abaixo), algo desnecessário, já que dá para fazer download das pinturas no site do museu. Convém uma dose de paciência, você não vai empurrar as pessoas nem se enfiar na frente delas. No pavimento 1, séculos XVIII e XIX. No subsolo, arte medieval e renascentista. Impressionante a biblioteca de história da arte. À semelhança do Louvre, não dá para ver tudo no mesmo dia, a não ser que você veja correndo. Optamos pela Era de Ouro. No último dia da estadia voltamos ao museu para ver o resto.

Rijksmuseum é um desses museus monumentais que você encontra nas metrópoles europeias que abrigaram grandes cortes

Alguns quadros icônicos, como a leiteira de Vermeer, atraem multidões, todo mundo quer fotografar

Impressionante a biblioteca de história da arte
 

PASSEIO DE BARCO PELOS CANAIS

Um passeio obrigatório para quem visita Amsterdam e que sempre repetimos: o passeio de barco pelos canais de Amsterdam, com explicações em inglês e alemão, partindo do Damrak. 

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E terminamos o dia repetindo a torta de maçã no Cafe Winkel 43 e curtindo o anoitecer pelos canais amsterdameses.

 

e curtindo o anoitecer pelos canais amsterdameses

torta de maçã no Cafe Winkel 43

Sábado, 30/9: AMSTERDAM, QUINTO DIA

 

HUIS BARTOLOTTI (1617)  (Herengracht, 170, altura do Dam, €9,5)

Mais uma casa da Era de Ouro (1620) de beira de canal aberta à visitação, suntuosamente mobiliada e decorada, com um agradável jardim. Ao contrário das outras casas visitáveis, aqui você pode se sentar nas poltronas e cadeiras, e na velha cozinha uma senhora simpática, que mais parece voluntária do que funcionária, serve um café com biscoitos e, se você puxar conversa, o papo (em inglês) vai longe. Para nós turistas Amsterdam é a cidade perfeita, mas ela reclamou do excesso de bicicletas e outras “mazelas” locais...                                                                           

                                                                         * * *

Hoje é sábado, Amsterdam está fervendo de gente! Lotada! 


BITTERBALLEN NA HEERTJE FRIET

Sentados à margem de um canal com outras pessoas (tipo uma “amurada da Urca”), fizemos a degustação das bitterballen, uns croquetes de carne, só que redondinhos, em forma de almôndegas. Compramos na Heertje Friet (Herengracht 169), perto da Casa Bartolotti, um fast food de batatas fritas caseiras (huisgemaakte friet), croquetes, bitterballen e outras especialidades locais met liefde gemaakt (preparadas com amor). Vejam o vídeo.

 

PASSEIO A PÉ PELOS CANAIS HISTÓRICOS

Em seguida, passeio a pé pelos canais históricos, seguindo um roteiro do nosso Guia Visual da Folha de São Paulo (pág. 160). A caminhada começa na Schreierstoren, “uma antiga torre da muralha medieval que cercava a cidade”, envereda pelo Lastage, bairro sossegado, por onde eu nunca havia passado antes, adjacente ao popular “Red Light District” (a zona de prostituição e shows eróticos), com seus barquinhos, reflexos das casas nas águas, pontes, árvores,, flores, um homem levando para passear seu cão, mas como depois o roteiro se tornasse por demais intricado e eu a toda hora me perdesse, abortei-o nas proximidades de nosso hotel. Mas valeu. Vejam as fotos.

flores

ponte

um homem levando para passear seu cão

reflexos das casas nas águas

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O restante do dia foi dedicado à gastronomia e à arte de flanar: voltamos ao Heertje Friet, desta feita para comer batatas fritas, bitterballen e croquete (foto), flanamos pelos canais ao entardecer, saboreamos a melhor panqueca da cidade, em The Pancake Bakery (Prinsengracht, 191) e, com o cair da noite, curtimos os canais à luz de “lampiões” – são lâmpadas elétricas mas simulam velhos lampiões, luz tênue, em países onde não impera a lei e a ordem dariam margem a assaltos seriais.

curtimos os canais à luz de “lampiões” – são lâmpadas elétricas mas simulam velhos lampiões

batatas fritas, bitterballen e croquete


Domingo, 1/10: AMSTERDAM, SEXTO DIA

 

PASSEIO NO BONDE HISTÓRICO

Existe uma associação que preserva bondes antigos pondo-os para funcionar aos domingos, numa antiga linha desativada até Amstelveen, e na linha de bonde normal pelo centro de Amsterdam. Os bondes são operados por motorneiros e cobradores voluntários usando os uniformes de antigamente, e você paga a tarifa dentro do bonde, como era no passado. A linha para Amstelveen, que pegamos, parte de meia em meia hora, entre 11 e 17 horas, da Haarlemmermeerstation. Para chegar lá pegue a linha 2 do bonde convencional, salte na estação Amstelveenseweg e pegue a rua com este nome em direção à praça com as árvores. O passeio de ida e volta custa €7,50 – o passageiro pode saltar em qualquer estação intermediária ou no ponto final, dar um “rolê”, e depois pegar um próximo bonde, de modelo diferente. 

uma antiga linha desativada até Amstelveen

e na linha de bonde normal pelo centro de Amsterdam

O percurso atravessa uma aprazível área de bosque (Het Amsterdamse Bos), casas à beira de um riacho de águas cristalinas, tudo bem cuidado como em cidades de brinquedo. Devido a uma obra, o bonde não está chegando ao centro de Amstelveen, parando num bairro residencial, onde vimos um antigo moinho restaurado funcionando como restaurante, um parque, flores nos postes e casarões de filme de Hollywood sem grades nas janelas nem muros altos impedindo a visão por quem passa pela rua.

casas à beira de um riacho de águas cristalinas, tudo bem cuidado como em cidades de brinquedo

onde vimos um antigo moinho restaurado funcionando como restaurante

casarões de filme de Hollywood sem grades nas janelas nem muros altos impedindo a visão por quem passa pela rua

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Descansamos no hotel e saímos mais tarde do que de costume para pegar um horário diferente e ver a Amsterdam noturna. Caminhada à luz dos "lampiões", pelos canais (na penumbra sem medo de assalto), da Waterlooplein até o Peppinorestaurante italiano com excelentes pratos de massa, que pode ser acompanhada de um cálice de vinho (não precisa comprar a garrafa inteira), e você tem a opção de se sentar numa mesa ao ar livre – embora corra o risco de ter que aturar algum fumante numa mesa próxima e ficar acompanhando a muvuca naquela esquina movimentada perto do badalado Leidseplein. Pegamos o bonde até perto do Dam e voltamos ao hotel atravessando o burburinho noturno do bairro da luz vermelha.

 Segunda-feira, 2/10: AMSTERDAM, SÉTIMO DIA

Voltamos ao Rijksmuseum para rever a Eregalerij (Galeria de Honra) que reúne os pontos altos do museu (Vermeer, Rembrandt e cia.), no Pavimento 2, e ver o Pavimento 1 (sécs. XVIII e XIX) e subsolo (arte medieval e renascentista) que haviam faltado. Em seguida, repetimos a visita de 2014 ao Museum van Loon, em mansão do século XVII na Keizergracht, com a coleção particular reunida pela família, além da rica decoração e mobília. Depois compramos chocolates e uma camiseta do Bulldog para o Marcinho e degustamos comidinhas (batatas fritas, arenques) e encerramos o sétimo e último dia de nossa gloriosa estadia em Amsterdam no mesmo restaurante italiano do dia anterior. Como dizia a vovó: “Acabou-se o que era doce, quem comeu regalou-se”.

Voltamos ao Rijksmuseum


Pavimento 1 (sécs. XVIII e XIX): Vista da Floresta, óleo sobre tela de 1848 de de Barend Cornelis Koekkoek. De todos os paisagistas neerlandeses Koekkoek talvez seja o mais romântico.

subsolo (arte medieval e renascentista: A cozinha bem suprida, óleo sobre painel de 1566 de Joachim Bueckelaer

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UMA REFLEXÃO POLÍTICO-SOCIOLÓGICA

A nova sociedade não se constrói a ferro e fogo. Constrói-se por uma espécie de consenso, de contrato social, em que a totalidade (ou quase) dos cidadãos decide que quer viver em uma sociedade funcional. Você não tem uma minoria açambarcando os recursos que deveriam ser coletivos. A sociedade funciona em cada detalhe: a condução sai em horários regulares e com intervalos curtos, não fica esperando lotar para arrecadar mais dinheiro. Quase todos preferem a bicicleta e assim o trânsito não dá nó. A fila do supermercado avança qual linha de montagem. É o pacto social pela funcionalidade, e todos saem ganhando. Moradores instalam bancos na frente das casas para que o transeunte possa descansar uns momentos. A prostituição é um comércio como outro qualquer, não é praticada às escondidas. Os rios e canais são limpos, ninguém lança esgoto clandestino ou lixo neles. As vitrines ficam expostas à noite sem grades de ferro. As casas não se escondem atrás de altos muros. Não se veem cães ou gatos abandonados pela via pública. Não foi preciso fuzilar ninguém no paredón nem decapitar na guilhotina nem expropriar os bens de capitalistas “gananciosos” para atingir esse avanço social. Não é ideologia nem doutrina, não é de esquerda nem direita, foi o que observei com meus olhos e cérebro. Quem quiser pode ir lá conferir.

 

Terça-feira, 3/10: VOLTA

Na volta, vale a canção do Lennon: The dream is over. Mas a vida é longa, e voltarei a Amsterdam uma décima primeira vez, nem que seja como fantasma para assombrar os canais.

Um detalhe: no controle de bagagem do aeroporto o scanner separou minha mala para inspeção visual, e os seguranças (sempre gentis) foram diretos (em meio a tanta roupa e tralha) à inocente latinha de polvilho Granado suspeitando que se tratasse de outro tipo de pó!

Ficaram para a próxima viagem: Poezenboot (o barco dos gatinhos; reserva via depoezenboot@gmail.com), Museu dos Canais, Coleção Six e Palácio Real (que admite visitantes quando não está sendo usado em cerimônia oficial).