Esta é a décima vez em minha jornada terrestre que venho a Amsterdam, em média uma a cada sete anos. A primeira foi na excursão que ganhei de bar-mitzva em 1965, quando escrevi no diário de viagem: “[...] passeei a pé pela cidade, que é toda cortada por canais. Cada dia cai um carro num canal.” Agora pequenas amuradas de ferro evitam essas quedas. No meu livro de memórias O RIO, O MUNDO E EU: UMA MEMÓRIA FILOSÓFICA & SENTIMENTAL, vencedor do Prêmio Áureo Nonato em 2022, a ser ainda publicado, narro minhas aventuras de fumador de haxixe no início de 1972 nessa “unofficial capital of the European drug scene”, segundo meu guia da época. Voltei à simpática capital neerlandesa (agora “careta”) em 1984, 1986, 1988, 1996, 2007, 2009, 2014 e 2023. No diário da viagem de 2009 escrevi: “Não posso conceber uma viagem à Europa sem uma peregrinação à velha Amsterdam (cenário de minha aventura hippie em 1972), a cidade mais alto-astral da face da terra [...]”.
A então Câmara Municipal, atual Palácio Real, no Dam em quadro de Gerrit Berckheyde de 1672. À sua direita a Nieuwe Kerk, Igreja Nova, que também continua lá. |
Domingo, 24/9/2023: PARTIDA
O europeu tem a
vantagem de poder visitar a “Europa” sem esse cansativo deslocamento de Sampa
(ou Rio) até lá. No dia da viagem você já acorda tenso. A tensão em casa chega
a um nível tal que você parte para o aeroporto com uma antecedência estúpida
(fomos de Uber) e – tendo passado pela segurança e migração – fica uma
eternidade aguardando a chamada do seu voo. Pelo menos comigo é assim.
No
terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos, embarcamos no voo KL792 com partida às 21:45 e
tempo de voo de umas onze horas e vinte minutos. Ocupamos os assentos 55F e G
quase no fundo da aeronave, lá são mais baratos. Os aviões são cada vez mais apertados e lotados. Numa foto de 2007 eram
quatro assentos centrais e dois de cada lado, totalizando oito por fila. Agora
são três de cada lado, dez por fila.
No voo de ida, o
alto padrão da KLM, que conheço desde os anos 1980, estava irreconhecível:
aeromoças jovens, quase estagiárias, serviço estandardizado, comida sem graça,
como em qualquer outra companhia aérea europeia. Já na volta foi diferente:
aeromoças veteranas e o famoso serviço de bordo holandês com comidinhas,
bebidinhas quase o voo inteiro, como nos velhos tempos.
Segunda-feira. 25/9: CHEGADA
Choque de fuso
horário, cansaço de uma noite mal dormida. Você faz o reconhecimento da cidade.
Em Amsterdam, tudo no mesmo lugar. No centro histórico, nenhum prédio foi demolido, nenhum espigão foi erguido. Tudo igual. Você dorme à força de
sonífero para no dia seguinte, aí sim, começar a sua visita, a sua experiência
de transporte radical para uma nova realidade diferente do seu dia a dia no
qual você já se viciou: morte e renascença, metafisicamente. (Isso para quem
faz da viagem uma experiência radical, como eu; agora se você fica do outro
lado do Atlântico obsessivamente conferindo o Whatsapp, checando o e-mail, falando no telefone, lendo as notícias de nossa porca política, etc., aí seu corpo está do lado de
lá mas sua cabeça continua do lado de cá...)
Desembarcando no
aeroporto de Schiphol, compramos nossas passagens de trem até a Centraal
Station de Amsterdam. Lá chegando, adquiri um cartão de sete dias (7 dagen,
€41) + um de um dia (Dagkaart, € 9, não existe cartão de oito dias) para, com
esse investimento de cem euros, cinquenta por cabeça) usufruir livremente do
transporte público metropolitano, o que proporciona uma mobilidade tremenda.
Pegamos o metrô até a estação Waterlooplein e caminhamos até o nosso hotel, o
IBIS AMSTERDAM CENTRE STOPERA na Valkenburgerstraat 68, que por uma semana
tornou-se nosso endereço temporário. Como no filme, conseguimos A room with
a view.
Aviso aos
navegantes: hotéis no centro histórico de Amsterdam são caros, bem mais que em
outras metrópoles europeias. Nossas oito diárias custaram 1574,73 euros – 197
euros cada. Não há terrenos disponíveis para construir hotéis novos, e a
população crescente de turistas tem que contar sempre com os mesmos, ou pegar
um hotel numa “periferia”(tipo ibis Amsterdam City West) ou cidade vizinha, o que
tira toda a graça e praticidade de uma visita à encantadora Amsterdam.
Vista da janela do hotel, à semelhança do filme A room with a view. |
Terça-feira, 26/9: AMSTERDAM, PRIMEIRO DIA
O pessoal
endinheirado contrata guias turísticos para conduzi-los pelas atrações da
cidade. Eu sou meu próprio guia: antes desta viagem a Amsterdam, li o Guia
Visual da Folha de São Paulo (que é uma tradução do DK Eyewitness Travel Guide
britânico) e consultei sites na Internet para montar um roteiro dia a dia, como
se tivéssemos pegado uma excursão, incluindo algumas tardes livres para dar
margem ao improviso também. Nosso passeio no primeiro dia, todo a pé,
levou-nos aos seguintes locais:
HUIS WILLET-HOLTHUYSEN (Herengracht 605, €12,50, 10-17hrs)
Segundo o Guia Visual (pp. 120-1), “esse museu, cujo nome homenageia os últimos moradores da edificação, oferece ao visitante um vislumbre de como era a vida dos ricos comerciantes instalados à beira do Grachtengordel (Anel de Canais).” A casa pertenceu ao casal Abraham Willet, colecionador de arte e pintor amador, e Louisa Holthuysen. Ao morrer, em 1895, a viúva, sem filhos, legou sua opulenta residência, com a coleção de móveis antigos, prata, cerâmica, esculturas, pinturas e fotos, à cidade de Amsterdã, sob a condição de virar um museu com o nome do casal.
REMBRANDTPLEIN (Praça Rembrandt)
As estátuas em tamanho natural dos integrantes do quadro “A Ronda Noturna” que vimos em 2014 já não estão mais lá, pois a prefeitura da cidade recusou-se a comprá-las ao preço de um milhão e meio de euros exigido pelos escultores.
Rembrandt |
PATHÉ TUSCHINSKI (Reguliersbreestraat 26-34)
Segundo a revista inglesa Time Out, o mais bonito cinema do mundo, combinando vários estilos: Escola de Amsterdam, art nouveau e art déco. Durante a ocupação, os alemães mudaram o nome do cinema para Tivoli, que passou a exibir apenas filmes alemães. O proprietário, Abraham Tuschinski, foi assassinado pelos nacional-socialistas (mais conhecidos como “nazistas”) nas câmaras de gás de Auschwitz.
KATTEN KABINET (Herengracht, 497, na chamada Curva do Ouro, terça a domingo, 12-17hrs, ingressos devem ser comprados previamente no site do museu)
O Katten Kabinet (ou Kattenkabinet, literalmente, “gabinete dos gatos”) é um museu criado por Bob Meijer em 1990 em memória do gato laranja John Pierpont Morgan (1966-1983), nome de um famoso banqueiro americano, que se tornou (o gato, não o banqueiro!) um fiel companheiro no seu tempo de estudante. A cada aniversário do bichano seu dono o presenteava com uma obra de arte de temática felina, o que deu início à coleção. Após a morte do bichinho, Bob, em visita ao Metropolitan Museum of Art de Nova York, deparou com uma exposição temporária de obras do acervo do museu sobre gatos. Daí a ideia de criar um museu em Amsterdam com uma exposição permanente semelhante. Na década de 1980 conseguiu comprar um casarão de 1667 na área do anel de canais, onde instalou o “gabinete dos gatos”. Além de quadros e cartazes de propaganda ostentando esses encantadores felinos, gatos em carne e osso circulam pelas dependências do museu.
gatos em carne e osso circulam pelas dependências do museu |
Poes op stoel, Gato na cadeira, óleo sobre tela de Sal Meijer (1877-1965). |
VLAAMS FRITESHUIS VLEMINCKX (Voetboogstraat, 33)
Assim como a carne que você come na Argentina não tem similar em nenhum outro canto do mundo (outra raça de gado, outros cortes), a batata frita com uma maionese muito especial servida em cones de papelão em três tamanhos (pequeno, médio, grande) que você saboreia na Holanda é uma iguaria inimitável. A Vlaams Friteshuis VleminckX é uma “lojinha” com um balcão na frente, sem mesas, sem nenhum conforto, que vende uma das melhores batatas fritas (friet), se não a melhor, de Amsterdam, que você come de pé na frente da loja ou leva para comer num banco da Koningsplein (praça do rei, plein é praça) próxima, onde de quebra você encontra um quiosque de arenques.
a batata frita com uma maionese muito especial servida em cones de papelão em três tamanhos (pequeno, médio, grande) que você saboreia na Holanda é uma iguaria inimitável |
BEGIJNHOF (entrada pela Gedempte Begijnensloot, veja no Google Maps)
Um hofje era uma comunidade formada por várias casas em torno de um jardim que abrigava pessoas necessitadas. Hoje em dia nessas casas moram pessoas “normais”. O Begijnhof é o maior e mais antigo desses hofjes ainda existentes e, como o nome indica, foi originalmente uma beguinaria (comunidade de beguinas). Recanto tranquilo, casas em torno de um jardim com árvores e gramados, além de uma igreja e capela, aberto à visitação, mas pede-se silêncio aos visitantes, para não incomodar os moradores. Na parede lateral de uma das casas vemos uma série de pedras de fachada em baixo relevo com temas bíblicos, retiradas de casas em outros locais e restauradas. Numa dessas pedras a legenda "De Gloyende Oven", "O Forno Ardente", cena bíblica dos três meninos que se recusaram a adorar a estátua dourada erguida pelo rei Nabucodonosor. Condenados a morrer numa fornalha, foram salvos por um anjo (Daniel 3 vs 1-30).
Um hofje era uma comunidade formada por várias casas em torno de um jardim que abrigava pessoas necessitadas |
Dali descemos até o Dam, com seu icônico monumento nacional em memória aos mortos na Segunda Guerra Mundial – em cujos degraus hippies acampavam na virada no final dos anos 60 e início dos 70 até enfim serem desalojados para que aquilo não virasse uma Praça da Sé – e penetramos no “anel de canais” (Grachtengordel), conjunto de quatro canais concêntricos formando quase um semicírculo: Singel, Herengracht, Keizersgracht e Prinzengracht), aberto no século XVII para a expansão da cidade e reconhecido em 2010 pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.
descemos até o Dam, com seu icônico monumento nacional em memória aos mortos na Segunda Guerra Mundial |
e penetramos no “anel de canais” |
Anel de canais, conjunto de quatro canais concêntricos formando quase um semicírculo: Singel, Herengracht, Keizersgracht e Prinzengracht. Foto de Cor Harteloh. Fonte: site do Museu dos Canais. |
Entramos em dois hofjes, que são casas em torno de um jardim central que no passado abrigavam pessoas necessitadas. É preciso abrir um portão de madeira com uma placa indicando o horário, e você (que mora num país onde nem sempre vale o escrito) fica inseguro, indagando: será que tá aberto mesmo? No Zon’s Hofje (Prinsengracht 159-171), menorzinho, um pouco mal conservado, corredor de acesso cheirando a mofo, deparamos com encantadores gatos pretos. Já o Van Brienenhofje (Prinsengracht 89-133), também conhecido como De Star, nome de uma cervejaria antes lá existente, é um achado: encantador jardim, vasos de flores nas escadinhas em frente das casas e sacadas das janelas, tudo muito primoroso. Um senhor de certa idade morador da periferia de Amsterdam com quem conversamos contou que era a primeira vez que entrava naquele hofje, pois antes não sabia de sua existência. Gentilmente traduziu para nós as informações em holandês da placa na entrada do hofje. No Cafe Winkel 43 (esquina da Prinsengracht com Westerstraat) comemos a melhor torta de maçã da cidade, cuja massa de consistência abiscoitada tem gosto de amêndoas. Fotografamos a Huis met de Hoofden (Keizersgracht, 123, ±altura do Dam), casa com cabeças na fachada, que abriga a Embassy of the Free Mind.
Já o Van Brienenhofje, também conhecido como De Star, nome de uma cervejaria antes lá existente, é um achado |
vasos de flores nas escadinhas em frente das casas e sacadas das janelas |
Huis met de Hoofden (Keizersgracht, 123, ±altura do Dam), casa com cabeças na fachada, que abriga a Embassy of the Free Mind |
Quarta-feira, 27/9: AMSTERDAM, SEGUNDO DIA
MUSEU VAN GOGH (Museumplein 6)
Museu de arte tem que ser o primeiro passeio do dia, curtido
de cabeça fresca. São muitos os museus de arte dignos de visita em Amsterdam,
mas não se deve ver mais de um por dia: beleza em doses cavalares acaba
embotando a sensibilidade (assim como o doce de leite em excesso enjoa).
Atração obrigatória em Amsterdam é o museu que reúne uma parte substancial da
obra do gênio mentalmente perturbado que, sem jamais ter cursado uma academia,
meteu-se a ser pintor, autodidata, de quadros que destoavam dos padrões
estéticos e decorativos da época e que ninguém queria comprar. Matou-se com um
tiro no peito porque achou que seu destino era ser um fracassado e acabou
virando cult, considerado o precursor da arte moderna.
Quando inventarem a máquina do tempo, o valor arrecadado agora com o leilão de
uma única obra sua, devidamente transportado para o passado, fará dele um
milionário.
O Museu Van Gogh não tem bilheteria: você precisa adquirir os ingressos pelo site, marcando data e hora. Não foi a primeira vez que visitei, mas sempre vale a pena repetir a visita.
Talvez o maior museu do mundo dedicado a um único artista – embora algumas obras de outros artistas da época também estejam expostas para comparação – e, paradoxo dos paradoxos, artista que durante sua vida esteve longe do sucesso financeiro de outros artistas como, digamos, Rembrandt. Além da exposição de obras, o museu expõe sua biografia. História de sofrimento, de persistência, de um fracasso em vida transmutado em sucesso estrondoso pós-morte.
Impressionante a imensidão de obras que Van Gogh produziu – 900 quadros e 1200 desenhos, dos quais 200 e 500, respectivamente, compõem o acervo do museu – num espaço inferior a dez anos: mil oitocentos e oitenta e pouco a 1890, quando se suicidou. Sempre ouvimos dizer que Van Gogh não conseguia vender seus quadros. De fato, a arte acadêmica exibida nos salões da época era mais exuberante, decorativa, com motivos orientais, exóticos, ou de interiores suntuosos... Os primeiros quadros de Van Gogh, como Os Comedores de Batatas, são lúgubres, quase monocromáticos. Em Paris, o artista aprende a pintar quadros impressionistas como os que pintores de rua vendem até hoje em Montmartre. Em Arles, Saint-Rémy e Auvers-sur-Oise, desenvolve o estilo turbulento de cores fortes, contrastantes, nem sempre correspondendo à realidade, traços ondulados e contornos fluidos, estilo que o celebrizou.
Os primeiros quadros de Van Gogh, como Os Comedores de Batatas, são lúgubres, quase monocromáticos |
desenvolve o estilo turbulento de cores fortes, contrastantes, nem sempre correspondendo à realidade, traços ondulados e contornos fluidos, estilo que o celebrizou |
* * *
Na saída do museu, a caminho do Vondelpark próximo, fiz esta observação: Em Amsterdam tudo é bonito. Você olha para o chão, como é o chão? Bonito.
Olha para o lado, como é o lado? Bonito.
As casas são bonitas. As pontes, as árvores, o céu, em Amsterdam tudo é bonito.
Aproveitamos a proximidade do Voldelpark, uma espécie de Central Park ou Hyde Park amsterdamês, e o outono ameno (em Londres nesta época alguns anos atrás pegamos um frio de rachar), para fazer um piquenique nesse parque com as saladas que compramos no supermercado Albert Heijn, onipresente em Amsterdam. A natureza sorria exuberante, até as nuvens do céu colaboravam para compor um panorama digno de um pintor impressionista. Só que hoje em dia os pintores cederam lugar aos fotógrafos. Num banco do parque uma placa em memória de Sven Pinck, ex-membro atuante da Associação de Amigos do Vondelpark, falecido em 2022, aos 51 anos: Wees lief en koester elkaar. Vier het leven! - Sejam gentis e valorizem uns aos outros. Celebrem a vida! Enfiamo-nos parque adentro até que resolvemos dar meia-volta e retornar ao ponto de partida. Só que havíamos perdido o senso de direção e, quando achamos que enfim tínhamos atingido a entrada, em verdade havíamos chegado à outra extremidade, o fundo do parque! Parque enorme, vejam no Google Maps!
A natureza sorria exuberante |
um panorama digno de um pintor impressionista |
até as nuvens do céu colaboravam |
Em seu apogeu os Países Baixos contavam com mais de 10 mil moinhos de vento, que ajudavam a combater a escassez de água. Atualmente persistem cerca de mil. Amsterdam ainda preserva nove antigos moinhos, o mais acessível sendo o De Gooyer, na Funenkade 7, a leste do centro. Pegamos a linha de bonde 7 no Leidseplein e saltamos sete estações depois em Hoogte Kadijk. O moinho abriga uma cervejaria onde se podem saborear deliciosas cervejas artesanais, em compridas mesas coletivas ao ar livre, como num Biergarten alemão.
Amsterdam ainda preserva nove antigos moinhos, o mais acessível sendo o De Gooyer |
como num Biergarten alemão |
RIJSTAFFEL NO RESTAURANTE KANTJIL & DE TIJGER (Spuitstraat 291-293 - atrás do Begijnhof)
À noite fomos num restaurante com boa cotação no Google Maps comer o rijsttafel (literalmente, “mesa de arroz”), lauta refeição originária da Indonésia colonial (as Índias Orientais Holandesas) composta de vários pratos com temperos variados, servidos ao mesmo tempo, cada um numa cumbuca ou pratinho separado, lotando a mesa, tendo por acompanhamento arroz enrolado em folha de bananeira. Você gasta o que gastaria em uma churrascaria rodízio cara.
Quinta-feira, 28/9: AMSTERDAM, TERCEIRO DIA
Enquanto o prédio
tradicional do Museu de Amsterdam vem sendo reformado, parte do acervo está
sendo exibido numa ala da extinta “filial” amsterdamesa do Museu Hermitage
russo, à beira do Rio Amstel, perto de Waterlooplein. O museu, além de conduzir
o visitante pela história da cidade, ostenta um bom acervo de pinturas, como
retratos de grupo (de guardas cívicas, por exemplo) e panoramas da cidade. Esta
cresceu espetacularmente durante o
século XVII, de 30 mil habitantes em 1570 a 200 mil em 1700, tornando-se o
centro do comércio mundial, com o comércio colonial assumindo um papel
crescente. A invasão da cidade por tropas napoleônicas levou à coroação de Luís
Bonaparte, irmão de Napoleão, como rei da Holanda em 1806, e Amsterdam deixou
de ser uma cidade-Estado independente. Com a derrota napoleônica, Amsterdam
continuou a capital do agora Reino dos Países Baixos (Koninkrijk der
Nederlanden). No século XX a cidade sofreu a brutal ocupação nazista, e no
pós-guerra protagonizou um fenômeno novo: a contracultura jovem. A ocupação, o
primo de meu pai, Ludwig Hoffman, viu. A onda da contracultura eu vi!
ostenta um bom acervo de pinturas, como retratos de grupo (de guardas cívicas, por exemplo) |
PASSEIO A PÉ PELO JORDAAN E ILHAS OCIDENTAIS
Após o banho de história, passeio “guiado” pelo bairro do Jordaan e Ilhas Ocidentais. Guiado não por um guia em carne e osso, mas por nosso Guia Visual da Folha de São Paulo (pág. 158). Uma oportunidade de conhecer um lado menos turístico, mais bucólico e menos apinhado de Amsterdam, algo que só se pode fazer em cidades seguras, civilizadas. Em Salvador, metade do Centro você não pode percorrer por problemas de segurança. Uma vergonha para os baianos e para o Brasil!
O Jordaan é um bairro gostosinho a oeste do anel de canais. As Ilhas Ocidentais (Westelijke Eilanden) são um conjunto de três ilhotas residenciais quase grudadas umas nas outras, interligadas por pontes. Vejam as fotos.
Em cima: Pedra de fachada em baixo relevo com o tema bíblico da Arca de Noé. |
O Jordaan é um bairro gostosinho a oeste do anel de canais |
As Ilhas Ocidentais são um conjunto de três ilhotas residenciais |
Antigo depósito Vrede (Paz), hoje residencial |
* * *
No final da jornada um chocolate com rum mais panqueca tipo holandesa de amêndoas, maçã e creme de chantilly no Pancakes Amsterdam, anexo à casa Anne Frank.
Sexta-feira, 29/9: AMSTERDAM, QUARTO DIA
Nos meus tempos de porra-louquice em Amsterdam em 1972 de noite me perdia pelos meandros do Paradiso, um então "clube de drogas" numa antiga igreja, com vários ambientes, dois andares, que funciona até hoje. Só que agora virou uma fundação (Stichting) que organiza concertos badalados, com ingressos caros, em diferentes locais (entre eles a sede original na Weteringschans). Senti vontade de entrar lá uma segunda vez, de modo que, antes da viagem, escrevi um e-mail suplicando:
I'm from Brazil. In 1972 when I was 21 years old I spent some time in Amsterdam and went almost every night to Paradiso. It wasn't as expensive as today. Afterwards I've travelled many times to Amsterdam but never entered Paradiso again. I have no interest in the shows from today, musically, besides classical music and Brazilian popular music, I'm still living in the 70's (Pink Floyd, Emerson Lake and Palmer, Jethro Tull etc.)! But if you could allow my entrance for only ten minutes inside Paradiso before the beginning of the shows (for example, early in the morning) only to see it quickly once again and take some photos I would be very grateful!
Ao que me responderam:
We can never guarantee this, but when it’s possible, we
always let people in for a short peep.
The best time is early morning, after 9:00 and before noon. Just ring the bell on the left side of the building and see if we have time.
De modo que resolvi tentar a sorte e, quando me apresentei, uma mulher superatenciosa deixou que eu entrasse e matasse as saudades.
Nos meus tempos de porra-louquice em Amsterdam em 1972 de noite me perdia pelos meandros do Paradiso |
Paradiso bombando. Foto do jornal Het Parool. |
O Rijksmuseum é um desses museus monumentais que você encontra nas metrópoles europeias que abrigaram grandes cortes e dos quais no Brasil só o MASP consegue dar uma pálida ideia. No pavimento 3, arte moderna. No pavimento 2 a Era de Ouro (Gouden Eeuw), 1600 a 1700, com obras de mestres da arte neerlandesa como Rembrandt e Vermeer. Alguns quadros icônicos, como a leiteira de Vermeer, atraem multidões, todo mundo quer fotografar (como você vê na foto abaixo), algo desnecessário, já que dá para fazer download das pinturas no site do museu. Convém uma dose de paciência, você não vai empurrar as pessoas nem se enfiar na frente delas. No pavimento 1, séculos XVIII e XIX. No subsolo, arte medieval e renascentista. Impressionante a biblioteca de história da arte. À semelhança do Louvre, não dá para ver tudo no mesmo dia, a não ser que você veja correndo. Optamos pela Era de Ouro. No último dia da estadia voltamos ao museu para ver o resto.
O Rijksmuseum é um desses museus monumentais que você encontra nas metrópoles europeias que abrigaram grandes cortes |
Alguns quadros icônicos, como a leiteira de Vermeer, atraem multidões, todo mundo quer fotografar |
Impressionante a biblioteca de história da arte |
PASSEIO DE BARCO PELOS CANAIS
Um passeio obrigatório para quem visita Amsterdam e que sempre repetimos: o passeio de barco pelos canais de Amsterdam, com explicações em inglês e alemão, partindo do Damrak.
* * *
E terminamos o dia repetindo a torta de maçã no Cafe Winkel 43 e curtindo o anoitecer
pelos canais amsterdameses.
e curtindo o anoitecer pelos canais amsterdameses |
torta de maçã no Cafe Winkel 43 |
Sábado, 30/9: AMSTERDAM, QUINTO DIA
HUIS BARTOLOTTI (1617) (Herengracht, 170, altura do Dam, €9,5)
Mais uma casa da Era de Ouro (1620) de beira de canal aberta à visitação, suntuosamente mobiliada e decorada, com um agradável jardim. Ao contrário das outras casas visitáveis, aqui você pode se sentar nas poltronas e cadeiras, e na velha cozinha uma senhora simpática, que mais parece voluntária do que funcionária, serve um café com biscoitos e, se você puxar conversa, o papo (em inglês) vai longe. Para nós turistas Amsterdam é a cidade perfeita, mas ela reclamou do excesso de bicicletas e outras “mazelas” locais...
* * *
Hoje é sábado, Amsterdam está fervendo de gente! Lotada!
Sentados à margem de um canal com outras pessoas (tipo uma “amurada da Urca”), fizemos a degustação das bitterballen, uns croquetes de carne, só que redondinhos, em forma de almôndegas. Compramos na Heertje Friet (Herengracht 169), perto da Casa Bartolotti, um fast food de batatas fritas caseiras (huisgemaakte friet), croquetes, bitterballen e outras especialidades locais met liefde gemaakt (preparadas com amor). Vejam o vídeo.
PASSEIO
A PÉ PELOS CANAIS HISTÓRICOS
Em seguida, passeio a pé pelos canais históricos, seguindo um roteiro do nosso Guia Visual da Folha de São Paulo (pág. 160). A caminhada começa na Schreierstoren, “uma antiga torre da muralha medieval que cercava a cidade”, envereda pelo Lastage, bairro sossegado, por onde eu nunca havia passado antes, adjacente ao popular “Red Light District” (a zona de prostituição e shows eróticos), com seus barquinhos, reflexos das casas nas águas, pontes, árvores,, flores, um homem levando para passear seu cão, mas como depois o roteiro se tornasse por demais intricado e eu a toda hora me perdesse, abortei-o nas proximidades de nosso hotel. Mas valeu. Vejam as fotos.
flores |
ponte |
um homem levando para passear seu cão |
reflexos das casas nas águas |
* * *
O restante do dia foi dedicado à gastronomia e à arte de flanar: voltamos ao Heertje Friet, desta feita para comer batatas fritas, bitterballen e croquete (foto), flanamos pelos canais ao entardecer, saboreamos a melhor panqueca da cidade, em The Pancake Bakery (Prinsengracht, 191) e, com o cair da noite, curtimos os canais à luz de “lampiões” – são lâmpadas elétricas mas simulam velhos lampiões, luz tênue, em países onde não impera a lei e a ordem dariam margem a assaltos seriais.
curtimos os canais à luz de “lampiões” – são lâmpadas elétricas mas simulam velhos lampiões |
batatas fritas, bitterballen e croquete |
Domingo, 1/10: AMSTERDAM, SEXTO DIA
PASSEIO
NO BONDE HISTÓRICO
Existe uma associação que preserva bondes antigos pondo-os para funcionar aos domingos, numa antiga linha desativada até Amstelveen, e na linha de bonde normal pelo centro de Amsterdam. Os bondes são operados por motorneiros e cobradores voluntários usando os uniformes de antigamente, e você paga a tarifa dentro do bonde, como era no passado. A linha para Amstelveen, que pegamos, parte de meia em meia hora, entre 11 e 17 horas, da Haarlemmermeerstation. Para chegar lá pegue a linha 2 do bonde convencional, salte na estação Amstelveenseweg e pegue a rua com este nome em direção à praça com as árvores. O passeio de ida e volta custa €7,50 – o passageiro pode saltar em qualquer estação intermediária ou no ponto final, dar um “rolê”, e depois pegar um próximo bonde, de modelo diferente.
uma antiga linha desativada até Amstelveen |
e na linha de bonde normal pelo centro de Amsterdam |
casas à beira de um riacho de águas cristalinas, tudo bem cuidado como em cidades de brinquedo |
onde vimos um antigo moinho restaurado funcionando como restaurante |
casarões de filme de Hollywood sem grades nas janelas nem muros altos impedindo a visão por quem passa pela rua |
* * *
Descansamos no hotel e saímos mais tarde do que de costume para pegar um horário diferente e ver a Amsterdam noturna. Caminhada à luz dos "lampiões", pelos canais (na penumbra sem medo de assalto), da Waterlooplein até o Peppino, restaurante italiano com excelentes pratos de massa, que pode ser acompanhada de um cálice de vinho (não precisa comprar a garrafa inteira), e você tem a opção de se sentar numa mesa ao ar livre – embora corra o risco de ter que aturar algum fumante numa mesa próxima – e ficar acompanhando a muvuca naquela esquina movimentada perto do badalado Leidseplein. Pegamos o bonde até perto do Dam e voltamos ao hotel atravessando o burburinho noturno do bairro da luz vermelha.
Segunda-feira, 2/10: AMSTERDAM, SÉTIMO DIA
Voltamos ao Rijksmuseum para rever a Eregalerij (Galeria de Honra) que reúne os pontos altos do museu (Vermeer, Rembrandt e cia.), no Pavimento 2, e ver o Pavimento 1 (sécs. XVIII e XIX) e subsolo (arte medieval e renascentista) que haviam faltado. Em seguida, repetimos a visita de 2014 ao Museum van Loon, em mansão do século XVII na Keizergracht, com a coleção particular reunida pela família, além da rica decoração e mobília. Depois compramos chocolates e uma camiseta do Bulldog para o Marcinho e degustamos comidinhas (batatas fritas, arenques) e encerramos o sétimo e último dia de nossa gloriosa estadia em Amsterdam no mesmo restaurante italiano do dia anterior. Como dizia a vovó: “Acabou-se o que era doce, quem comeu regalou-se”.
Voltamos ao Rijksmuseum |
Pavimento 1 (sécs. XVIII e XIX): Vista da Floresta, óleo sobre tela de 1848 de de Barend Cornelis Koekkoek. De todos os paisagistas neerlandeses Koekkoek talvez seja o mais romântico. |
subsolo (arte medieval e renascentista: A cozinha bem suprida, óleo sobre painel de 1566 de Joachim Bueckelaer |
UMA REFLEXÃO POLÍTICO-SOCIOLÓGICA
A nova sociedade não se constrói a ferro e fogo. Constrói-se por uma espécie de consenso, de contrato social, em que a totalidade (ou quase) dos cidadãos decide que quer viver em uma sociedade funcional. Você não tem uma minoria açambarcando os recursos que deveriam ser coletivos. A sociedade funciona em cada detalhe: a condução sai em horários regulares e com intervalos curtos, não fica esperando lotar para arrecadar mais dinheiro. Quase todos preferem a bicicleta e assim o trânsito não dá nó. A fila do supermercado avança qual linha de montagem. É o pacto social pela funcionalidade, e todos saem ganhando. Moradores instalam bancos na frente das casas para que o transeunte possa descansar uns momentos. A prostituição é um comércio como outro qualquer, não é praticada às escondidas. Os rios e canais são limpos, ninguém lança esgoto clandestino ou lixo neles. As vitrines ficam expostas à noite sem grades de ferro. As casas não se escondem atrás de altos muros. Não se veem cães ou gatos abandonados pela via pública. Não foi preciso fuzilar ninguém no paredón nem decapitar na guilhotina nem expropriar os bens de capitalistas “gananciosos” para atingir esse avanço social. Não é ideologia nem doutrina, não é de esquerda nem direita, foi o que observei com meus olhos e cérebro. Quem quiser pode ir lá conferir.
Terça-feira, 3/10: VOLTA
Na volta, vale a canção do Lennon: The dream is over. Mas a vida é longa, e voltarei a Amsterdam uma décima primeira vez, nem que seja como fantasma para assombrar os canais.
Um detalhe: no controle de bagagem do aeroporto o scanner separou minha mala para inspeção visual, e os seguranças (sempre gentis) foram diretos (em meio a tanta roupa e tralha) à inocente latinha de polvilho Granado suspeitando que se tratasse de outro tipo de pó!
Ficaram para a próxima viagem: Poezenboot (o barco dos gatinhos; reserva via depoezenboot@gmail.com), Museu dos Canais, Coleção Six e Palácio Real (que admite visitantes quando não está sendo usado em cerimônia oficial).