CAIRO TRINDADE


Cairo de Assis Trindade, escritor, ministra oficinas literárias há mais de 10 anos no Rio de Janeiro. Tem quatro livros de poesia publicados, duas peças de teatro encenadas, trabalhou como ator nas peças Hair e Hoje é dia de rock. (Informações e poemas obtidos na revista não funciona n. 10.)

???

ela, toda exclamações!!!
ele, sempre reticências...
nunca acertaram os pontos:
a vida foi uma barra /
— cheia de travessões —
até o ponto final

Via-Gen

ávida
a vida havida
— nave navenida —
sem dúvida
nem dívida
é dádiva
di
vi di
da

sintaxe

cansei de ser objeto
hoje sou sujeito
pleno de predicados

Vate em Transe

poema só se faz poesia
se emitir mensagem
se tiver magia
se for viagem

(o poema não é um monte
de palavras vomitadas:
é um vírus visceral
revolucionário)

e um poeta só será poeta
se for fundo, inteiro, intenso
e viver sempre entre
a vertigem e a voragem

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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CARLOS MACHADO


Carlos Machado é editor do boletim poesia.net, um inventário crítico da produção poética de todos os tempos (com destaque para a poesia brasileira contemporânea e moderna). Carlos Machado também é poeta de mão cheia como mostra em seu Pássaro de vidro, que gentilmente me enviou, do qual selecionei os três poemas abaixo. Para conhecer e assinar o boletim poesia.net, clique aqui.

TREM

Meu destino é perder o trem
para Caxambu.

Há muitos anos vivo na estação.
Todos os dias
os comboios passam.
Deixo passar:
ainda não é hora de partir.

Caxambu fica distante
e é preciso esperar
o momento certo para seguir
uma
vontade
súbita
de me pôr nos trilhos.

Hoje decidi: devo embarcar.
Mas descobri que
nenhum trem passa em Caxambu.

ESFINGES

Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?

ALMA DE RELÓGIO (2)

   É na mudança que as coisas
   acham repouso.
     Heráclito


não dormes:
teu único
repouso
é descobrir-te
em cada momento
sempre
desigual a
ti mesmo

CARLOS PENA FILHO

Aldemir Martins, Gatos

Um fenômeno da poesia pernambucana prematuramente falecido aos 31 anos num desastre de automóvel. Segundo Alexei Bueno em Uma história da poesia brasileira, "dos maiores poetas de sua geração e um dos grandes sonetistas brasileiros. Seu Livro geral, de 1959 [...] é um dos mais importantes livros de sua geração."

A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Mais poemas de Carlos Pena Filho em Poesia.Net

CASIMIRO DE ABREU


[Casimiro José Marques de Abreu nasceu em Barra de São João, RJ, em 1839.] Depois dos primeiros estudos, em Friburgo, o pai fê-lo entrar no comércio. Viu-se o jovem poeta diante de uma profissão que detestava. Daí lhe nasceu o desalento, o desencanto da vida, sentimento ampliado por efeito de constituição frágil e demasiado sensível. Passou quatro anos em Portugal, de onde regressou doente, doença que se agravara pela saudade, pela nostalgia. Essa nostalgia, ele a cantou em versos que se tornaram, em grande parte, muito populares. [Morreu em 1860.] (Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, Roteiro literário de Portugal e do Brasil, volume II, brasileiros.)

A VALSA

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...
Calado,
Sozinho

Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

CASTRO ALVES


Em 1868, escreveu Machado de Assis sobre o jovem poeta Castro Alves, de passagem pelo Rio com destino à Academia de São Paulo: "A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria.. Se se adivinha que a sua escola é a de Victor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações [Lamartine]. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas [...]" (R. Magalhães Junior, Vida e obra de Machado de Assis, Volume 2)

ADORMECIDA

UMA NOITE, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente

Estava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos - beijá-la.

Era um quadro celeste!...A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida :
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor da minha vida!..."

TEUS OLHOS (Barcarola)

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,
Ama um canto o pecador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
— Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor,
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

CASTRO MENESES


"A obra deixada por Castro Meneses, apesar de escassa, é uma das mais formosas do nosso momento literário. Entretanto ela está longe, bem longe de representar o que havia de possibilidades naquele espírito excepcional." (Manuel Bandeira em crônica de 1920). Álvaro de Sá Castro Meneses nasceu em Niterói (RJ) em 3 de junho de 1883 e faleceu no Rio de Janeiro a 7 de março de 1920. "Mas como morreste cedo!" (Bandeira). Pertenceu ao grupo simbolista que fundou a revista Rosa Cruz (1901) e a sua principal obra é a Estrada de Damasco (1920).

Calipso

Pela doce paciência de enfermeira
com que procuras encantar-me a vida,
renovando em minha alma a fé perdida
depois de morta a crença derradeira;

Pelo sorriso bom de companheira
que a novas esperanças me convida,
quando vejo, na estrada percorrida
dos meus sonhos a extinta sementeira;

Pela graça de irmã de Caridade
com que teu meigo afeto me persuade
de que lutar confiante é o meu dever;

Bendita sejas Flor de mansuetude,
em cujo seio, finalmente,
pude descansar a cabeça e adormecer...

CECÍLIA MEIRELES


Na Nota Editorial a Flor de poemas, antologia por ele organizada, escreve Paulo Mendes Campos: “Não há poeta moderno em língua portuguesa mais harmonioso do que Cecília Meireles; do princípio ao fim, com o mesmo fino fio de seda a incomparável artífice-e-artista teceu as suas peças inconsúteis [...] Só há uma monotonia em Cecília Meireles: é a inacreditável qualidade de seus versos, é o nítido tecido conjuntivo de toda a sua obra.”

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

O Rei do Mar

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Pescaria

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

CLÁUDIO ARAGÃO


“Quando penso em Cláudio Aragão, vejo um milagre brasileiro que se multiplica por esta terra como pães e peixes bíblicos: é o milagre de Vitalino que veio do nada para tornar-se mago do mundo mítico de barro [...] Cláudio veio em 1963 ao Rio num pau-de-arara, atravessando com um grupo de retirantes paisagens de seca e morte durante duas semanas para instalar-se em seguida com mãe e irmã num sótão de subúrbio e depois numa favela. [...] Terminados os estudos universitários, além de lutar pelo sustento, como infelizmente a maioria dos intelectuais e artistas neste país, dedicou-se à literatura.” (Wira Selanski, Prefácio de Anjo Feio)

Cláudio Aragão
é autor de A história da seleção brasileira em cordel e das histórias de vários times de futebol também em forma de cordel, editadas pela Bom Texto.

POESIA

Pouco sei dos prótons e nêutrons.
Do cálculo binário, da origem do Homem,
das estrelas perdidas, dos planetas distantes.
Posso dizer que não decorei
nenhuma canção de guerra.
Ouvi falar, muito de longe,
dos cossacos e dos Kamikazes
e quando o Homem pisou na lua,
confesso,
eu dormia.

Desprezo profundamente
a arrogância humana,
visto que pouco sei do valor do ouro,
da moeda corrente, das terras usurpadas.
Pouco sei dos novos planos do Homem
para o futuro.
Sei apenas dos raios de sol
furando a floresta, trazendo vida.
Sei apenas dos pássaros
voando mais alto que as balas dos canhões.

(do livro Anjo Feio)

SOBRE AS ÁGUAS DO JORDÃO

Tava sentado no leito do Rio Jordão
2.030 anos atrás
quando vi Cristo ameaçar entrar no mar
caminhar sobre as águas.
— Faz isso não, Mestre!
Essa raça não vale um banho!

Os 12 apóstolos me lançaram
um olhar de reprovação.

Foi quando o Senhor os repreendeu:
— Acalmai vossos pensamentos
e deixar vir a mim os Poetas!

CLÁUDIO FELDMAN

"Poeta, escritor e roteirista, professor aposentado de língua e literatura. Polígrafo!!! Cláudio [Bauru, SP, 29.08.44] é um talento ímpar, prolífico, versátil, divertido, criativo. Merece os adjetivos." (Antonio Miranda)


CAVALOS


Os cavalos brancos dos heróis
Suportaram suas duras nádegas
Em mil campos de batalha
Mas não puderam descansar na morte:
Mumificados em estátuas
Continuam a carregá-los
Eternidade adentro
Com o peso adicional do bronze

CONCEIÇÃO ALBUQUERQUE


Carioca, com formação em Direito, funcionária pública federal aposentada. Conceição recebeu o Prêmio Cecília Meireles em 1996 com o livro de poesias inédito Perfil de sombras, concedido pela UBE. Participou como co-autora do livro Poesia em três tempos, publicado em 2001 pela editora Bom Texto, justamente com Maria Thereza Noronha e Rafael Pitanguy.

ESTAÇÕES

Dias tristes esfrego no tanque
levo ao varal e deixo
que lhes acolha o vento.
Os alegres, diluo-os em água
translúcida e doce, à janela
ao dispor de beija-flores
rumo aos longes, pra voltar.

Assim escrevo:
Inventando outono em qualquer dia:
pra me desfolhar, entrar no rio
e me chover de sol.

Germino, germino sem parar.
Cobrem-me folhas e flores
algum orvalho, nenhum bocejo.
Primavero-me.

Até que o inverno me surpreenda
tênue tal fio de teia
enredando-me em palavras, precisas vias
para alcançar o poema.

CRUZ E SOUZA, JOÃO DA


Nascido em Desterro, atual Florianópolis, em 1861, filho de escravos (pai pedreiro e mãe lavadeira), foi vítima do preconceito racial e teve uma vida infeliz, num ambiente de pobreza. O que não o impediu de se tornar, nas palavras de Alexei Bueno, “um dos poetas formalmente mais perfeitos da poesia brasileira, nada devendo, muito ao contrário, a todos os parnasianos coevos, os grandes propugnadores da perfeição formal” (Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira, p. 214).

Sobre Cruz e Souza, disse Artur da Távola em discurso pronunciado no Senado Federal: "Ele tem a característica simbolista e tem a característica parnasiana pela pureza do verso. Tudo isso saído daquele menino pobre, filho de escravos alforriados, massacrado, que até quando morreu — e nem todos o sabem — sem dinheiro para que se lhe transportasse o corpo de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, teve o seu cadáver jogado em um trem de animais, onde conseguiu uma vaga para transportar o corpo para o Rio de Janeiro, onde foi enterrado."

Três dias antes da morte, aos 36 anos, compôs seu último poema, “Sorriso Interior”, “de placidez quase milagrosa, exemplo sem igual, nas nossas letras, de superação espiritual de uma situação concreta”, nas palavras de Alexei Bueno.

SORRISO INTERIOR

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

VIOLÕES QUE CHORAM...

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar à flor de espumas.

Oh! languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ânsia esquisita
E de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!

Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta
Soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Por lagos encantados adormecem
As pálidas ninféias da Saudade!

Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos...

Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras...

Quanta plebéia castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas.
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias aspérrimas e agudas.

Véus neblinosos, longos véus de viúvas
Enclausuradas nos ferais desterros
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
Sob abóbadas lúgubres de enterros:

Velhinhas quedas e velhinhos quedos
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos
Sepulcros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sozinhos;

E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lívidos defuntos...

E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de Sonambulismos e letargos.

Fantasmas de galés de anos profundos
Na prisão celular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos
Da lembrança fiel de áureos passados;

Meigos perfis de tísicos dolentes
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes
Dos vícios infernais desfalecendo;

Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;

Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Na degenerescência dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;

Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporais o temporal supremo;

Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, cândidos, felizes.

Ébrios antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miséria humana,
Têm nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Bíblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tábidos palhaços
De carapuças, máscaras e gestos
Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
Lembrando a florescência dos incestos;

Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;

Toda essa labiríntica nevrose
Das virgens nos românticos enleios;
Os ocasos do Amor, toda a clorose
Que ocultamente lhes lacera os seios;

Toda a mórbida música plebéia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!!

CYRO DE MATTOS

Cyro de Mattos nasceu em Itabuna, cidade da região cacaueira da Bahia. Poeta, contista e cronista, é autor de 35 livros, entre eles: Os brabos, contos, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras; Vinte poemas do rio, edição bilíngüe em inglês-português, Palimage Editores, Viseu, Portugal; Poemas escolhidos, Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d'Oro, Gênova, Itália; O menino camelô, poesia infantil, Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes; O goleiro Leleta e outras fascinantes histórias de futebol, Prêmio Hors Concours Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores (Rio). É membro da Academia de Letras da Bahia. Seus poemas e contos foram traduzidos e publicados nos Estados Unidos, México, Itália, Rússia, Alemanha e Dinamarca.

ITABUNA

Encontro-me no verde de teus anos,
Como sonho menino nos outeiros,
Afoitas minhas mãos de cata-ventos
Desfraldando estandartes nessas ruas.

São meus todos esses frutos maduros:
Jaca, cacau, mamão, sapoti, manga.
E esta canção que trago na capanga
É o vento soprando nos quintais.

Quem me fez estilingue tão certeiro
Nos verões das caçadas ideais?
Quem nesse chão me plantou com raízes

Fundas até que me dispersem ventos
Da saudade e solidão? Ó poema!
Ó recantos! Ó águas do meu rio!

GALO

Melhor tê-lo no seu clarim da aurora
Anunciando claras madrugadas,
Observá-lo rubro com bico e espora
Nas rações benditas, multiplicadas

Por mãos de orvalho, telúricas na hora
Sem rinha e rude medo das caçadas.
Melhor senti-lo nos quintais de outrora,
Pluma escavando o verde das jornadas

Do que encontrá-lo na multidão rouco,
Incolor pelo alto, no asfalto louco
Ou sabê-lo solitário das noites

Que passam sempre anônimas e tristes.
Vê-lo, assim, emudecido na sorte
Imutável que o tomba para a morte.

Imagem do galo obtida no site de histórias infantis O Sótão da Inês