Em 31 de agosto de 2008 Antonio Carlos Villaça - falecido em 2005 - completaria 80 anos. Esta postagem, com fotos gentilmente enviadas por Carlos Roberto Carvalho, é um presente de aniversário ao grande amigo e escritor.
EM MEMÓRIA DE VILLAÇA
Edmílson Caminha
Tive o privilégio de manter com o escritor Antonio Carlos Villaça uma longa e substanciosa correspondência. Dele recebi 37 cartas, de 1980 a 1991, que agora publicarei no livro O monge do Hotel Bela Vista, para registrar os 80 anos do nascimento desse que é uma das maiores expressões do memorialismo brasileiro.
Em 1990, solicitei-lhe um depoimento sobre O nariz do morto, que alguns consideram sua mais importante obra. Perguntei o que de melhor o livro lhe proporcionara, que importância lhe dava no conjunto da obra que escrevera, e como situava O nariz no panorama do nosso memorialismo. As respostas constam no artigo “Depoimento de Villaça”, que publiquei no Jornal da Manhã, de Teresina-PI, em 22 de novembro de 1990. O livro Degustação, a que faz referência, saiu em 1994; a biografia de José Olympio (O descobridor de escritores) somente foi lançada em 2001. Reproduzo, a seguir, a carta em que Villaça tão gentilmente discorreu sobre O nariz do morto. É uma pequena homenagem ao escritor que fez o mundo melhor e a vida mais bela, pela grandeza humana e pela obra literária com que se tornou digno da nossa admiração e do nosso respeito.
rio, 5 agosto 1990
Querido Amigo,
Aí vai o depoimento que me solicitou. Saudades.
Alegrias. O prêmio Jabuti, de São Paulo. O poema de Drummond - “O Nariz do Morto” - no Jornal do Brasil. Uma carta admirável do músico Leonardo Luz. A amizade tempestuosa de Carlos Lacerda. As críticas. A de Wilson Martins, no Estado de S. Paulo, que incorporei como introdução à terceira edição do Nariz. O artigo de Paulo Rónai, que saiu ainda agora no seu livro Pois É e aparecera no Estado de S. Paulo e no Jornal do Comércio. O artigo do poeta Alberto da Costa e Silva, que ele republicou em seu livro recente, O Vício da África e Outros Vícios, editado em Lisboa. E foi a crítica mais transcrita em jornais. Saiu em oito jornais, até em Lisboa, em A Capital. O artigo de Hélio Pólvora, no Jornal do Brasil, que ele aproveitou numa coletânea de artigos críticos. Outros artigos notáveis - o de Carlos Lacerda, o de Homero Senna, o de Eneida, o de Edson Nery da Fonseca, o de Paulo Hecker Filho. Importância na obra - Foi o primeiro dos meus livros de memórias. O primeiro de uma série. Representou para mim uma catarse, uma libertação, uma renovação de vida, algo novo. Ganhei muitos amigos com o Nariz. O admirável filósofo boliviano Guillermo Francovich, que está fazendo noventa anos e mora em Ipanema, num belo apartamento da Vieira Souto, apaixonado que é pelo Rio, escreveu um artigo em espanhol, “La nariz del muerto”, e o publicou em La Paz. Situação no memorialismo nosso - São mais memórias de ordem espiritual do que de ordem cronológica. Mais um livro interior, uma peregrinação interior, do que um livro exterior. José Guilherme Merquior escreveu, agora me lembro, um belo artigo em que situava o Nariz na memorialística brasileira. Minha Formação, de Nabuco, História da Minha Infância e Minha Formação no Recife, de Gilberto Amado, A Alma do Tempo, de Afonso Arinos, os volumes de Pedro Nava, Minha Vida de Menina, de Helena Morley, Alice Dayrell Caldeira Brant, eis os livros de memórias entre os quais eu gostaria de ficar.
O Anel é mais ousado, mais louco, vai mais longe, tem um ímpeto maior. Gosto mais do Anel. O Livro de Antônio é mais sereno, mais equilibrado, mais pacificado. Menos inquieto. É o encontro com a harmonia. Não sei quando terminarei o volume Degustação. Agora, tenho duas tarefas imediatas. Escrever a história da ACM do Rio, que vai fazer cem anos em 93, e escrever a biografia do José Olympio, para os sessenta anos da Casa, a 29 de novembro de 1991. Já assinei contrato.
Beijos para Ana Maria, Mariana e Ana Carolina. E beijo para o ser que vai chegar tão breve. Felicidades, felicidades.
o Villaça
Villaça em Santa Teresa (década de 1980) |
Villaça in labore, na sua sala no Pen Club |
O NARIZ DE VILLAÇA
Ivo Barroso (crônica publicada no Jornal do Brasil em 4/6/05)
Impressionou-me o laconismo com que a imprensa carioca registrou a morte de Antônio Carlos Villaça - Villaça, o gordo, Villaça, o bom -, ele que se dedicou por algum tempo a escrever obituários sobre mortos ilustres que ainda estavam vivos. O trabalho consistia em manter em estoque nos jornais uma espécie de banco de dados com os traços relevantes das personalidades do momento que, pela idade, pelos boatos ou pelos prognósticos médicos, estivessem, de alguma forma, carimbando passaporte para o undiscover'd country. Era assim uma espécie de cronista do futuro, trabalhando com uma matéria sem risco de obsolescência, já que noticiava o que acabaria certamente por acontecer. Tinha especial preferência pelos acadêmicos, a cujas posses sem falhar comparecia, registrando data, extensão dos discursos, qualidade dos salgadinhos e número de convivas. Fazia as pesquisas em estado de excelente humor, sem agouros nem torcidas subreptícias para que seus escolhidos fossem premiados, tanto que chegou a fazer seu próprio obituário, que, no entanto, ficou esquecido, como se viu, nos arquivos hoje eletrônicos de alguma redação.
Dono de gigabites de memória, sabia de cor trechos de milhares dos livros que lera, desde os tempos de seminário e de suas passagens pelos claustros de algumas ordens monásticas que não chegaram a preencher totalmente o seu anseio de eternidade.
Foi em 1970 que se sentiu em plena euforia com a publicação de O nariz do morto, um de seus primeiros livros de memórias, em que regurgitavam citações, comentários, retratos contemporâneos, revelações surpreendentes, lembranças arrasadoras. O sucesso do livro levou-o a se aprofundar no filão confessional, publicando em 1972 O anel e em 1974 O livro de Antônio, em que relata, entre outras peripécias, sua ''aventura em Paraty'', navegando a bordo de uma lancha adoidada. Never a dull moment ...
Convivia com sua espantosa gordura sempre num clima de arejado humor. Numa viagem de avião, fora obrigado a ocupar duas poltronas e teve enorme dificuldade em entrar e sair do táxi que o transportou ao hotel. Dizia que costumava fazer uma pequena refeição (um franguinho!) antes de seguir para os jantares a que era convidado para não dar o vexame de exagerar na hora da refeição. Mas, apesar de seu tamanho Orson Welles, era homem fino à mesa, dono absoluto da conversação, encanto de todas as ilustres senhoras presentes. Nascera para ser conferencista.
Por algum tempo viveu na sede do PEN Club (do qual era vice-presidente), na Praia do Flamengo, mas sua grande realização como homem de saber foi em Faxinal do Céu, no Estado do Paraná, onde foi realizada uma interessante experiência na área da educação: uma pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores, que aí moravam freqüentando cursos e conferências de extensão cultural. Villaça foi dos mestres quem mais se distinguiu: sabia transmitir, além dos ensinamentos múltiplos com que a voracidade da leitura o cumulara, uma filosofia de vida meio zen, que fazia a mente de seus alunos, futuros professores.
De lá voltou com mais dois livros, que agregou à sua produção já bastante vasta: Os saltimbancos da Porciúncula, de 1996, e Diário de Faxinal do Céu, de 1998, em que nos dá, além do relato de sua experiência pedagógica, deliciosos flashes íntimos de personalidades como Juscelino e Drummond.
Pois lá se foi o nosso Villaça, um dos homens mais cultos do país, carregando toda a sua sabedoria sem precisar agora ocupar duas poltronas nem se espremer num táxi para o Além.
Impressionou-me o laconismo com que a imprensa carioca registrou a morte de Antônio Carlos Villaça - Villaça, o gordo, Villaça, o bom -, ele que se dedicou por algum tempo a escrever obituários sobre mortos ilustres que ainda estavam vivos. O trabalho consistia em manter em estoque nos jornais uma espécie de banco de dados com os traços relevantes das personalidades do momento que, pela idade, pelos boatos ou pelos prognósticos médicos, estivessem, de alguma forma, carimbando passaporte para o undiscover'd country. Era assim uma espécie de cronista do futuro, trabalhando com uma matéria sem risco de obsolescência, já que noticiava o que acabaria certamente por acontecer. Tinha especial preferência pelos acadêmicos, a cujas posses sem falhar comparecia, registrando data, extensão dos discursos, qualidade dos salgadinhos e número de convivas. Fazia as pesquisas em estado de excelente humor, sem agouros nem torcidas subreptícias para que seus escolhidos fossem premiados, tanto que chegou a fazer seu próprio obituário, que, no entanto, ficou esquecido, como se viu, nos arquivos hoje eletrônicos de alguma redação.
Dono de gigabites de memória, sabia de cor trechos de milhares dos livros que lera, desde os tempos de seminário e de suas passagens pelos claustros de algumas ordens monásticas que não chegaram a preencher totalmente o seu anseio de eternidade.
Foi em 1970 que se sentiu em plena euforia com a publicação de O nariz do morto, um de seus primeiros livros de memórias, em que regurgitavam citações, comentários, retratos contemporâneos, revelações surpreendentes, lembranças arrasadoras. O sucesso do livro levou-o a se aprofundar no filão confessional, publicando em 1972 O anel e em 1974 O livro de Antônio, em que relata, entre outras peripécias, sua ''aventura em Paraty'', navegando a bordo de uma lancha adoidada. Never a dull moment ...
Convivia com sua espantosa gordura sempre num clima de arejado humor. Numa viagem de avião, fora obrigado a ocupar duas poltronas e teve enorme dificuldade em entrar e sair do táxi que o transportou ao hotel. Dizia que costumava fazer uma pequena refeição (um franguinho!) antes de seguir para os jantares a que era convidado para não dar o vexame de exagerar na hora da refeição. Mas, apesar de seu tamanho Orson Welles, era homem fino à mesa, dono absoluto da conversação, encanto de todas as ilustres senhoras presentes. Nascera para ser conferencista.
Por algum tempo viveu na sede do PEN Club (do qual era vice-presidente), na Praia do Flamengo, mas sua grande realização como homem de saber foi em Faxinal do Céu, no Estado do Paraná, onde foi realizada uma interessante experiência na área da educação: uma pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores, que aí moravam freqüentando cursos e conferências de extensão cultural. Villaça foi dos mestres quem mais se distinguiu: sabia transmitir, além dos ensinamentos múltiplos com que a voracidade da leitura o cumulara, uma filosofia de vida meio zen, que fazia a mente de seus alunos, futuros professores.
De lá voltou com mais dois livros, que agregou à sua produção já bastante vasta: Os saltimbancos da Porciúncula, de 1996, e Diário de Faxinal do Céu, de 1998, em que nos dá, além do relato de sua experiência pedagógica, deliciosos flashes íntimos de personalidades como Juscelino e Drummond.
Pois lá se foi o nosso Villaça, um dos homens mais cultos do país, carregando toda a sua sabedoria sem precisar agora ocupar duas poltronas nem se espremer num táxi para o Além.
Villaça com Carlos Roberto e filho Carlos Eugênio na varanda do Pen Club (1987) |
Villaça e a profª Miriam dos Santos no hotel em Santa Teresa (1982) |
GRANDE VILLAÇA
Ivo Korytowski
Conheci o Villaça em 1992 quando ganhei um prêmio literário da UBE — Villaça fez parte da banca de jurados. Dias depois da premiação, telefonei para ele (eu já havia lido O nariz do morto), meio que inseguro: será que um escritor da fama do Villaça vai dar bola a um ilustre desconhecido como eu? Às primeiras palavras minhas, Villaça já se mostrou receptivo: "Ora viva! Ora viva!" Saudação que era a marca do Villaça. Combinamos almoço em restaurante do Catete.
Villaça era corpulento, devia ter uns 160 quilos, entrar no carro e sair, operação delicada. Eu, aspirante a escritor, diante de "monumento" da literatura, precisava impressionar, ostentar minha "cultura". Falei falei de um fôlego só. Na hora do cafezinho, Villaça educadamente deu a entender: aquele bombardeio deixara-o meio atordoado. Grande Villaça!
Em agosto Villaça comemorava o aniversário, sempre em algum restaurante. Villaça, apetite pantagruélico — desfia rosário de restaurantes e pratos suculentos em capítulo do Degustação: "Filé de peixe com molho de camarão, pirão de batata, filé mignon com fritas. Vinho português. Pêssego em calda com queijo. Ou torta. Licor." Vinha um monte de gente ao aniversário do Villaça, ala inteira do restaurante tinha que ser reservada, cada qual pagava sua conta.
Lembra-me o aniversário de 1995, numa Parmê que existiu alguns anos na Rua das Laranjeiras. Nos jornais, manchetes garrafais e fotos (horripilantes) do massacre de Vigário Geral. Anotei na agenda (eu que não tenho nem um por cento da memória fotográfica do Villaça) os nomes de meus companheiros de mesa: Sinésio Pires Cavalcanti, autor de Lembranças de um fuzileiro naval. Leandro Tocantins, autor de Formação histórica do Acre e de dois livros de memórias. Nilsson Pena (assim anotei na agenda, não sei se escrevi certo), cenógrafo, amigo de Bidu Saião, freqüentador dos saraus de Laurinda Santos Lobo. Incrível a capacidade de fazer amigos do Villaça. Quantos terão ido ao seu sepultamento? Eu próprio não fui — vim a saber de sua morte com dias de atraso.
Na época em que convivi com Villaça, residia ele na sede do Pen Clube (do qual era vice-presidente), à Praia do Flamengo. Passava os dias na biblioteca, cercado de livros, o paraíso de Borges (e de todo amante da literatura). "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar". Visitei-o várias vezes no mirante.
Certa vez, eu e um amigo desatamos a questionar, como é que Deus permite tanto mal no mundo, tantas doenças, crimes, Holocausto? (Afinal, Villaça passara período da vida no convento, em busca de Deus). Ao cabo de nossa diatribe, Villaça simplesmente retruca: "Vocês estão querendo fazer o inventário do mundo!" E propôs que descêssemos a paragens mais amenas.
Mas o grande Villaça não estava alheio ao problema da teodicéia. No Degustação, escreve: "A presença do sofrimento no mundo sempre me pareceu uma provocação, um desafio. O sofrimento não é um problema: é um mistério." E mais adiante prossegue: "Eu me pergunto: como afirmar que Deus é bom, quando entramos num hospital? Como falar do amor de Deus a uma mulher cujo filho é idiota, simplesmente porque a mãe contraiu rubéola durante a gravidez? Como falar de Deus a este rapaz que a poliomielite transformou num paralítico? Como falar do amor diante de um campo de concentração? Diante de um hospício? Diante da morte?"
Sua memória, prodigiosa. Eu gostava de levá-lo a passear em meu automóvel pela Zona Sul do Rio de Janeiro. Passávamos por um edifício e o Villaça lembrava: aqui morou (digamos) Carlos Lacerda no período de não sei quando. E assim ia ele apontando as ex-moradas terrenas de homens ilustres que agora habitavam a morada celeste. Villaça dispensava as agendas. As anotações. O computador. A Villaça, bastavam-lhe a velha máquina de escrever e a memória.
Sua pobreza, franciscana. Villaça, tipo do homem que dedicou a vida às coisas do espírito. "A grande experiência da literatura é a experiência da liberdade. A literatura para mim é a liberdade. Ser escritor é, antes e acima de tudo, uma posição diante da vida." Não constituiu família, não amealhou bens. Parecia-me que usava sempre o mesmo terno, surrado — ou seriam vários ternos de mesma aparência? À semelhança do Quintana, morou anos num hotel, o Hotel Bela Vista, em Santa Teresa.
Por ironia do destino, quase ao final da vida, em 2003, ganhou um prêmio polpudo, o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. Apesar da bolada, terminou os dias "despejado" (?) do Pen Clube, em Casa de Repouso no Caju, vítima de depressão... Onde foi parar aquela dinheirama toda?
Em fevereiro de 1996, Villaça telefonou, convidou-me para almoçar, e frisou: hoje eu pago a conta. Estava irritado, inseguro. Por dinheiro (contou-me) aceitara ficar mês e meio enfurnado numa universidade no interior do Paraná pra proferir uma série de palestras a professores — "uns crédulos, acreditam em tudo que a gente diz".
O mês e meio na Universidade do Professor, em Faxinal do Céu, Paraná, "pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores" (nas palavras de Ivo Barroso na bela crônica-necrológio sobre o Villaça), acabou se estendendo por alguns anos (com idas e vindas), e aquela acabaria se revelando (volto a dar a palavra ao meu xará) "sua grande realização como homem de saber".
Escreveu Affonso Romano de Sant'ana em crônica-depoimento sobre Faxinal do Céu: "Num dos intervalos de conferências fui visitar Antonio Carlos Villaça, essa viva e modesta memória de nossa cultura. Ele sabe tudo, todos os detalhes não só das obras mas dos próprios autores. É a História viva, contada fraternalmente."
Escreveu Villaça em Diário de Faxinal do Céu: "Aqui é tão tranqüilo, tão sereno, tão quieto. Apenas o canto harmonioso dos pássaros. Apenas. E há os grilos, mais insistentes no inverno. E há a grande paz silenciosa da mata."
Repouse em paz, amigo Villaça!
Antonio Carlos Villaça e o acadêmico Marcos Almir Madeira, no Pen Club |
Com Carlos R. Carvalho em 2002, "já debilitado, vislumbrando o fim, e entristecendo" (segundo depoimento do próprio Carlos) |